Eco

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     Senti como se estivesse me desprendendo de um casulo, de uma casca, de uma carcaça pesada e sufocante que me espremeu para dentro de mim mesma a ponto de eu esquecer quem sou. Ou quase esquecer. Uma força estranha, e ainda sim mais familiar do que tudo, tomou conta do meu ser de dentro para fora e eu não fui capaz de contê-la. Essa força sou eu. A eu que eu havia enterrado e esquecido e que durante dez anos se fortaleceu em silêncio.

     Memórias de milênios voltam aos meus pensamentos como se eu abrisse um álbum de lembranças que achava que havia esquecido, mas que estão todas aqui. Eu, Yonmirei, a Guardiã mais nova que juntamente com meus irmãos Donmirei e Benmirei mantém o equilíbrio da vida na dimensão de Centelha do Norte, estou de volta. Meus últimos esforços para destruir aquela legião de Sombrios e salvar a vida de Prosper, o herdeiro do trono de Nobre Vida, não só foram bem sucedidos, como me deram a chance de sobreviver ao sacrifício que fiz. A última memória que tenho é de minha energia vital escapando de meu corpo e buscando um refúgio suficientemente poderoso para recobrar as forças: Prosper, o último Iluminado de linhagem nobre. Eu devo minha vida, minha própria existência a ele.

     Quando abro olhos que agora realmente me pertencem, ele é a primeira coisa que vejo. Está deitado no chão ao meu lado, desacordado e ferido, o rosto a centímetros do meu. Estendo minha mão e toco sua bochecha, sentindo como é tocá-lo pela primeira vez. Deslizo meus dedos pelos contornos de seu rosto cuidadosamente e, de repente, ele é puxado para longe de mim por braços finos, mas fortes. Ergo o rosto para ver a quem eles pertencem e não consigo evitar o arrepio que percorre todo o meu corpo num segundo. É Effy, a Cinzenta. A julgar por sua postura e a expressão em seu rosto, ela quer proteger Prosper de mim - como se eu, de todas as pessoas, fosse capaz de machucá-lo! Effy parece mais assustada do que nunca e, ao olhar ao nosso redor rapidamente, noto que o cômodo onde estamos está repleto de chamas.

     - Faça isso parar! Faça parar! - grita Effy, puxando Prosper para si.

     Só então me dou conta de que as chamas vêm de mim. Elas são belas e hipnotizantes, mas podem ferir Prosper, então eu as apago com um ligeiro gesto de mão e todo o cômodo perde o brilho verde que ostentava até agora. Eu me ergo do chão e fito Effy e Prosper de cima. Quero tirá-lo dos braços dela e levá-lo a um lugar onde ela não possa nos encontrar.

     - O que é você? - Effy pergunta de maneira retórica. Sei que ela sabe exatamente quem eu sou.

     - Pode soltá-lo - eu ordeno, gesticulando para Prosper. 

     Effy o agarra ainda mais, olhando com hostilidade para mim. Fico ofendida.

     - Eu nunca o machucaria - rosno.

     - Você já o machucou - ela rebate.

     Olho para o rosto dele e o vejo cheio de hematomas e cortes. Eu fiz isso?

     - N-não foi proposital - eu me pego gaguejando.

     - Você estava dentro dele, não estava? - Effy olha acusadoramente para mim, como se tivesse autoridade suficiente para me repreender. - Sabe o quanto isso o machucou? Sabe o quanto suas ações o atormentaram?

     - Sei - respondo. - E por isso eu precisava sair. Agora que estou de volta, não permitirei que nada e nem ninguém ameace meu Prosper.

     Uma risada áspera escapa da boca da Cinzenta.

     - Seu? Prosper não pertence a ninguém. Ele está destinado a ser nosso rei, como dizem as profecias.

     É minha vez de rir.

     - O que uma Cinzenta imunda acha que sabe sobre profecias? - dou um passo para mais perto dos dois. - Parece que você se esqueceu de qual é o seu lugar depois de passar tantos anos na Terra, não é? Eu poderia transformá-la em cinzas só por essa sua petulância e insistência em me contradizer. 

     Effy hesita. Ela sabe que estou certa. Sabe que é a criatura mais inferior de Centelha do Norte e que eu sou a autoridade máxima aqui. Em outros tempos, ela teria sido morta por apenas olhar para mim.

     - Vou curar Prosper e levá-lo a um lugar seguro - mudo de assunto, pois realmente não pretendo gastar tempo e energia educando uma Cinzenta rebelde. - Sinto as forças das Sombras nos cercando.

     - Uma legião de Sombrios invadiu o palácio quando você começou a se libertar e os mais próximos de Prosper foram mortos quando você saiu de dentro dele - diz Effy. - Mas sei que há mais deles por aqui, apenas esperando a oportunidade de matar o único herdeiro ao trono de Nobre Vida.

     - Eu matarei todos eles.

     Sem perder mais tempo, abro a porta do cômodo e me deparo com um lance de escadas completamente ocupado por Sombrios de todos os tipos e tamanhos, portando armas dos mais variados formatos. Parece que eles estavam esperando que alguém abrisse a porta para que pudessem atacar e correm em minha direção logo que me veem, como os animais selvagens que são. Quase que por instinto, minha mão conjura meu mais antigo e favorito artefato de guerra e eu o admiro em completo deleite. É minha velha amiga, chamada por muitos de a Trompa Dourada da Calamidade. Segurá-la novamente após tantos anos me faz sentir ainda mais eu mesma.

     Os Sombrios estão a menos de três metros de distância de onde estou parada. Olho ligeiramente por cima do ombro para Effy segurando Prosper atrás de mim e sussurro:

     - Cubra os ouvidos.

     Encho meus pulmões de ar e sopro minha trompa como jamais soprei antes. O som feito por ela e ecoado por todo o palácio é o da verdadeira calamidade e completo desespero. Todos os Sombrios que tentam investir contra mim param imediatamente no meio do caminho e cortam as próprias gargantas, pulsos, cabeças e corações ao ouvirem a melodia de minha arma. Nenhum deles é capaz de resistir. Um por um, seus corpos caem, flagelados. Sangue escuro e quente se espalha pelo chão e escorre pelos degraus da escadaria até lá embaixo, como uma cascata de horror. Eu assisto a tudo sem conseguir piscar e finalmente sinto que estou vivendo outra vez.

     Eu voltei.

     E nada é capaz de me parar agora.


















A Ruína de Ricky Prosper (VOLUME 2)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora