Segredos Inabitáveis

By HeloisaBernardelli

3.9K 254 277

Naquela terça-feira, dia 05 de Abril de 2016, Olivia Harding foi atacada na porta de seu apartamento. Teve su... More

Apresentação
Prólogo
Primeira Parte - Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e Um
Segunda Parte - Vinte e Dois
Vinte e Três
Vinte e Cinco
Vinte e Seis - Final
Epílogo

Vinte e Quatro

164 7 55
By HeloisaBernardelli

Caleb ligou para Henry dezenas de vezes na manhã do dia seguinte, quase como se quisesse dar à ele a chance de evitar aquela intrusão – não só pelo irmão, sabia disso. Estava, ele próprio, receoso. Não, não era bem receoso a palavra. Ele estava mesmo era apavorado. Não sabia o que ia encontrar, e menos ainda se queria encontrar algo. Estava confortável com a ideia de nunca saber sobre a saúde mental de seu irmão, e os motivos que o levaram a mergulhar num mar de psicotrópicos.

Mal dormiu aquela noite, mas não tinha sono quando despertou. Cansado, talvez, mas um tipo de cansaço que não resolveria com uma noite de sono. Era um cansaço que vinha trazendo pela vida. Um peso que nunca deixava seus ombros, e só parecia dar alguma folga quando Caleb desenhava, ou tatuava. Pensou tê-lo sentido ceder um pouquinho também aquela noite em que vira Olivia pela última vez, enquanto caminhavam em silêncio, se esbarrando aqui e ali a caminho da casa dela. Tão bonita que ele nunca conseguiu desenhá-la. Sua arte não parecia alcança-la. Talvez ela fosse arte, por si própria.

- Bom dia. – Lars saudou logo que Caleb saltou para dentro do carro.

- Hey, bom dia... – E não sentiu-se desconfortável, embora tudo sobre aquela situação fosse estranho – Desculpa o inconveniente...

- Que isso... – Lars tirou a mão do volante para abaná-la no ar, como quem não se importa. Aproveitou para trocar a música antes de sair da vaga onde estava estacionado – E então, Cambridge, é isso?

- Sim. – Caleb aclarou a garganta e esfregou as pernas ansiosamente, olhando o bairro familiar pela janela – Cambridge.


 Caleb esperou pelo momento em que Lars perguntaria o que havia lá. Afinal, quem aceitaria atravessar 180 quilômetros de estrada com um completo estranho sem questionar suas razões? Lars aceitaria. Ao invés disso, perguntou sobre Caleb, se era originalmente de Wolverhampton, com que trabalhava, contou um pouco sobre o próprio curso e sobre a cidade Natal.

Chegaram à Cambridge por volta das nove e meia da manhã, e em silêncio seguiram as instruções do GPS até a clínica de Dr. Brunell. Caleb disse à Lars que ele poderia esperar por ali, caso preferisse, e Lars estudou por um momento a proposta antes de recusá-la.


- Ahn, oi... Com licença... – Caleb parou no balcão da recepção. Não levava muito jeito com pessoas, e talvez por isso atraísse olhares tão cansados quanto os seus.

- Bom dia.

- Bom dia... Eu... Precisava falar com o doutor Dominic Brunell... – Falou, apoiando os antebraços na bancada de mármore.

- Qual seu nome, por favor? – O secretário perguntou.

- Caleb O'Malley. – E Caleb sabia que havia algo errado quando o rapaz abriu uma das agendas sobre sua mesa – Ah... Eu não... Não tenho horário marcado. Não agendei. – Os olhos do secretário se ergueram lentamente na direção dele.

- Sinto muito, senhor, sem horário marcado infelizmente não posso te ajudar.

- Não, eu... – Caleb respirou fundo – Não é uma consulta, eu não... É sobre meu irmão, ele faz... Tratamento... com o Dr. Brunell, e eu precisava mesmo tirar algumas dúvidas. – Mas viu nos olhos do secretário que seu discurso não estava funcionando muito antes de terminar.

- Sinto muito, senhor... – Caleb soltou todo seu ar em uma golfada, depois enfiou a cabeça nas mãos e se concentrou em um plano. Mas não havia um plano.

- Tem algum horário disponível para o doutor Brunell hoje? – Ele ouviu quando Lars perguntou, parado ao seu lado.

- Não, senhor.

- Amanhã?

- Não, senhor, só na próxima semana.

- Olha... – Lars suspirou – Nós viemos de Wolverhampton, será que você não consegue conversar com ele, e explicar a situação? Podemos pagar a consulta...

- Eu posso ver o que consigo, mas vocês vão ter que esperar... – O secretário disse, sem muita gentileza – Se algum paciente desmarcar ou se houver tempo suficiente entre um atendimento e outro... Eu vejo se ele atende vocês.

- Ok, muito obrigado. – Lars agradeceu.

- Qual o nome do seu irmão? – Caleb notou que a pergunta havia sido direcionada à ele.

- Henry. Henry O'Malley.


  Sentaram-se lado a lado na sala de espera. Assistiram em silêncio enquanto pacientes chegavam e iam embora, ouviram conversas paralelas e observaram o filme que estava passando na TV muda. Vez ou outra Lars se levantava para buscar água, ou café. Comeram alguns dos biscoitos de nata quando a fome começou a incomodar.

Havia passado do meio dia quando, do outro lado do balcão, perceberam o secretário conversar num tom inaudível com outro homem. Ele não usava jaleco ou um crachá de identificação, mas Caleb soube imediatamente quem era. Não só pela obviedade da situação, mas porque já o tinha visto antes, se lembrou.

Caleb já estava imaginando o homem acenar com a cabeça em resposta ao secretário e sair pela porta, deixando para o funcionário a tarefa de dizer que ele não poderia atendê-los. Ao invés disso, o médico se acercou e, cordialmente, estendeu sua mão para Lars primeiro.


- Boa tarde... – Disse, num tom baixo – Quem de vocês é o Caleb?

- Sou eu. – Caleb se identificou, enquanto retribuía o aperto de mão. O homem forçou um sorriso breve.

- E você é?

- Lars, amigo da família. – Adiantou-se o outro, enfiando as mãos no bolso do casaco.

- Caleb, Lars, eu tenho uma urgência para resolver no hospital psiquiátrico agora, mas eu estarei aqui por volta das duas... – Ele explicou, dando uma olhadela em seu relógio de pulso – Se puderem esperar, irei atendê-los.

- Ok. – Caleb concordou primeiro – Nós estaremos aqui.

- Muito bem... Nos falamos em breve, então. – O médico acenou em despedida, e deu mais uma olhada no rosto de Caleb, como se tentasse se recordar de algo nele.

- E aí, o que acha de irmos almoçar? Tem um McDonald's na esquina.


 "Seu menino mais novo... Ele não faz nenhum tipo de tratamento?"
, Caleb recordou, e aos poucos reconstruiu a cena. Henry e o pai sentados em poltronas paralelas, em frente à mesa do médico. Caleb sozinho em uma mesa para crianças, ainda pintando na folha que havia ganhado para brincar. "Não, ele está bem".

Mas Caleb não estava bem.

Com seis anos, quase não se comunicava com qualquer pessoa para além de Georgia, sua babá. Ainda chupava chupeta e às vezes choramingava até conseguir uma mamadeira de leite quente. Precisava de ajuda para tomar banho, e só pegava no sono depois de ser ninado, assim como um recém-nascido. Na escola, chorava do momento em que chegava, até o momento em que ia para casa. Não fazia grandes escândalos, não protestava ou tentava se rebelar, mas os professores podiam notar seus olhos sempre encharcados e as gotas que pingavam incessantes em seu caderno.

As reclamações chegavam, e junto delas as ameaças de Samuel. Se Caleb não se comportasse, Georgia seria demitida e eles nunca mais se veriam outra vez. Sua adorada Gigi, a figura mais próxima que Caleb tivera de uma mãe, com seus olhos sempre preocupados e atenciosos, com sua confiança de que ele, em algum momento, conseguiria se desenvolver. Gigi, ainda hoje, fora uma dentre as poucas pessoas que acreditaram em Caleb. Oh, e Deus sabe o quanto Caleb precisava de alguém que apostasse nele, porque na maioria dos dias ele próprio sentia que seus passos sempre tão débeis não o levariam a lugar algum.

Quando se mudaram para Wolverhampton, Caleb adoeceu. De forma tão abrupta e penosa que os médicos pelos quais fora consultado consideravam doenças raras e, quase sempre, terminais. Samuel contratou então Lucinda, e atribuiu à ela a tarefa de cuidar do menino, dar banho e alimentá-lo, contar histórias antes de dormir, e garantir que ele tivesse alguma qualidade de vida pelo tempo que restava, assim como um paciente paliativo.

Lucinda, porém, não se conformou com aquele diagnóstico em aberto, com a falta de esclarecimentos a respeito da condição de Caleb, e seus sintomas sempre tão instáveis e confusos. Começou fazendo com que ele se levantasse da cama, ao invés de carrega-lo para o banheiro. Ele podia andar, ela garantiu. E ele podia, de fato. Teve alguma dificuldade em fazê-lo comer qualquer coisa que não fossem os mingais e as mamadeiras de leite quente, e foi ainda mais trabalhoso tirá-lo das fraldas que passara a usar, mas insistiu, e de pouco em pouco, Caleb foi se recuperando.

"É um milagre", diziam os médicos. "De certo...", concordava Samuel, sem a alegria que se esperava de um pai ao assistir seu filho se recuperar de uma condição que supostamente o levaria a óbito.

Lucinda, por sua vez, não estava satisfeita. Não. Não era só porque Caleb havia ganhado alguns quilos e alguma cor nas bochechas que ela passaria a considera-lo saudável. Havia uma distância incalculável entre Caleb e o bem-estar que ela esperava ver em uma criança de oito anos. Ela não era tão doce quando Gigi, oh, não, Lucinda era firme e autoritária. "Levante-se daí agora, venha desenhar", "acabou o leite, coma o purê", "se você não tomar banho sozinho, então vai ficar sujo". Ela quem ajudou Caleb a aceitar seu crescimento. Levou tempo, mas ele se deu conta de que seus comportamentos, ainda que não fossem previamente planejados ou mesmo intencionais, não geravam nada de positivo. Sua mãe não iria voltar. Seu pai não poderia se importar menos. Era hora de crescer.

Intransigente, Lucinda o forçou a caminho da autonomia e independência. Ao contrário de Gigi – que estava sempre o colocando em seu colo e se esforçando apenas para fazê-lo sentir amado e benquisto, em um ambiente em que claramente Caleb não tinha nada disso –, Lucinda mostrou que, assim como em sua casa, Caleb poderia encontrar solidão e mal estar também lá fora. E ela tinha razão. Lucinda tinha razão, ele concluiu muito rápido.


- Eu acho que meu pai e meu irmão podem estar envolvidos, de alguma forma, com o desaparecimento da Olivia. – Contou, de uma vez, quando se sentaram na calçada em frente ao consultório, depois de almoçarem dois lanches cada. Lars não disfarçou a surpresa e confusão, estava tudo ali, em seus olhos arregalados e sobrancelhas reunidas. Caleb tragou o cigarro mais uma vez antes de continuar.

- Por que você acha isso?

- Ela e meu irmão ficaram juntos por um tempo... – Comentou, olhando o caminhar apressado de todo mundo que passava por eles – Eles terminaram porque Henry descobriu que eu tinha tatuado ela anos atrás, e achou que tivéssemos tido um caso...

- Uow!

- Eu fui viajar para a Califórnia em Março, e cheguei essa semana... – Continuou, e agora mal tinha certeza de quanto tempo fazia que estava na Inglaterra, ou a ordem da sequência de fatos. Estava tão cansado e assustado, mas havia era algo tranquilizante compartilhar aquilo com alguém – E desde então Olivia está supostamente morta, meu pai e meu irmão sumiram, e tinha essa mensagem do Henry no meu celular, dizendo que precisava muito falar comigo, que estava com medo, e ele citava meu pai... – Caleb respirou fundo, tentando não parecer tão afoito quanto se sentia. Gostava de parecer estar no controle da situação, mesmo quando estava tão longe disso – Ontem eu entrei na casa dele, e peguei um dos diários que ele costumava escrever, e depois que ele e Olivia terminaram... Haviam esses desenhos, e folhas rabiscadas, rasgadas... Ele fez uns comentários muito bizarros e... – Então deu de ombros, escorando a testa no antebraço – Eu não sei... – Ele ergueu a cabeça outra vez, os ombros chacoalhando com impotência – Eu não sei o que isso tudo significa... Tudo o que eu sei é que ela não está morta, e que por hora, Henry era a única pessoa que tinha qualquer coisa contra ela.

- Você sabe que isso tudo pode ser só uma coincidência, certo? – Lars arriscou, soando cuidadoso – Quer dizer, eu também quero saber o que houve com a Olivia, ela merece alguma justiça, mas não sei se podemos apostar todas as fixas nisso...

- É, eu sei... – Caleb deu de ombros e apagou o cigarro na sola de seu tênis – Mas por hora é o que temos, não é?


 Sim, era o que tinham.

Já passava das três da tarde quando Dominic Brunell retornou para o consultório. Caleb já havia ido e voltado do banheiro pelo menos três vezes, folheado quatro ou cinco revistas da pilha na mesinha de centro, inventando diálogos inteiros em sua cabeça para personagens da TV muda.

Se pelo menos pudesse fumar ali dentro.

A sala do médico era diferente do que Caleb se lembrava – talvez houvesse uma sala específica para atender crianças e adolescentes, ele pensou, enquanto se acomodava em uma das duas poltronas confortáveis dispostas em frente à uma mesa de madeira. Do outro lado, Dr. Brunell preparava um chá para cada um, sem perguntar se Caleb bebia chá.


- Caleb O'Malley... – O homem murmurou, melodioso, como se estivesse tendo boas recordações com aquele nome – Você esteve aqui algumas vezes, era ainda muito pequeno, se lembra? – Caleb aceitou a xícara de chá.

- Obrigado. – Disse, baixo e contido – Lembro de ter estado aqui uma vez. – O homem concordou com a cabeça, se sentando em sua cadeira, do outro lado da mesa.

- Em que posso te ajudar, Caleb? – Dr. Brunell perguntou, sabia perceber pessoas como ninguém, e aquela urgência nos olhos do rapaz não lhe deixavam outra escolha se não ir direto ao ponto.

- Eu... Ahn... Não sei bem por onde começar. – Caleb esfregou as palmas em seu jeans, como se elas estivessem suadas, mas não estavam – Meu irmão, Henry... Eu não consigo entrar em contato com ele desde que cheguei de viagem... Ele não atende aos meus telefonemas, e o bistrô dele está fechado para reforma... A proprietária da casa onde ele mora disse que não o vê há meses, embora ele continue depositando o valor do aluguel na conta dela... – Caleb despejou, sem grandes pausas para respirar – Então fui até a casa do meu pai, e bem, descobri que meu pai também não esteve lá ultimamente, as flores estão todas mortas, e o jardim abandonado, e essa porta... Um desses... Um desses alçapões de porão, ele costumava ficar lá, mas agora foi cimentado, coberto com cimento, e pedriscos, e eu achei um caderno do Henry... Quando entrei na casa dele, eu achei um daqueles diários que ele escrevia... Eu achei vários, mas eu peguei só um... Só o mais recente, e ele é perturbador! Ele é... Henry parecia estar enlouquecendo nos últimos meses, ele... Ele falava da ex-namorada, e do papai e da mamãe, e tinham esses desenhos bizarros, que... Não importa, ele me ligou... Ele me ligou, mas eu já tinha ido para a Califórnia, e só ouvi essa semana quando cheguei... Ele me disse que tinha esses sonhos, ou lembranças, ele falou algo sobre o papai e a mamãe, e sobre não saber com quem conversar... Ele disse que estava com medo, e agora ele desapareceu. E meu pai desapareceu. E a Olivia também desapareceu, e está difícil me convencer de que tudo isso não está relacionado, por outro lado eu não sei por onde começar... Eu não sei... O que fazer. – E então ele parou, e por um momento pensou que aquele havia sido seu maior monólogo durante toda a sua vida. Nunca, sob nenhuma outra situação, Caleb havia falado tanto de uma só vez. O médico o observava em silêncio, os cotovelos apoiados nas bordas da cadeira, uma mão apoiada sobre o queixo enquanto esfregava distraidamente os lábios com o indicador. Caleb se empertigou na cadeira, ansioso. Tomou um gole pequeno do chá, apenas para umedecer a boca e a garganta, ambas igualmente ressecadas.

- Caleb... – Ele chamou, e aclarou a garganta enquanto desenrolava sua coluna e apoiava os antebraços na mesa – O que exatamente você espera de mim? – Caleb não respondeu imediatamente. Abriu e fechou os lábios, como se estimulasse seu cérebro a pinçar algumas palavras, mas nada lhe ocorreu.

- Eu não sei. – Admitiu, por fim – Ele faz tratamento há anos com o senhor, e tem esses medicamentos... Talvez eu só... Se o senhor pudesse me dizer qual a condição clínica dele, tentar me ajudar a dar algum sentido para as coisas que eu encontrei...

- Ok, veja bem... – O médico respirou fundo – Eu não posso falar sobre isso com ninguém sem a permissão de Henry, Caleb, mesmo você... A menos que você pudesse me provar que ele está correndo risco ou colocando a vida de alguém em risco...

- E como sabemos que ele não está? – Caleb disparou, seu tom ansioso e quase agressivo.

- Eu ainda não tinha terminado... – Dr. Brunell esclareceu – Existe a possibilidade de podermos conversar sobre isso, mas antes eu sou obrigado a entrar em contato com a Royal College of Psychiatrists, porque eu posso precisar de respaldo caso Henry em algum momento queira me processar por divulgar informações estritamente confidenciais. – O corpo de Caleb caiu pesado contra o encosto da cadeira. De olhos fechados, e tomado de frustração, respirou fundo – Me desculpa, Caleb, eu entendo sua preocupação, mas estamos falando sobre leis muito sérias aqui.

- Ok. – O rapaz respondeu – Quanto tempo leva até você conseguir conversar com esse pessoal aí? – O médico reprimiu um riso e aclarou a garganta.

- Provavelmente amanhã ou depois eu consigo um documento, e aí podemos conversar outra vez.

- Ok, obrigado. – Caleb empurrou a poltrona para se levantar, mas foi antes do médico intervir.

- Por que não termina seu chá? – Perguntou – Enquanto me conta um pouco mais sobre esses desenhos.


 Caleb se acomodou outra vez, se deixando revisitar os desenhos de Henry – dos mais simples aos mais perturbadores, arrependido por não ter trazido o diário. Contou também a respeito das frases soltas, das folhas rabiscadas, rasgadas. Dr. Brunell preparou outra xícara de chá para cada, então conversaram mais um pouco. Sobre Olivia, sobre a relação de Henry com o pai, sobre os medicamentos controlados que administrava desde a adolescência.

Uma hora depois, quando Caleb já havia se despedido e combinado de reencontrá-lo dentro de dois dias, caminhou até a porta. Havia essa sensação de frustração, mas havia também algum alívio, como se estivesse finalmente chegando a qualquer lugar. Pelo menos tinha um plano.


- Caleb... – O médico o chamou, num tom baixo e rendido. Caleb olhou para atrás e o assistiu se aproximar, alguma urgência em seus olhos – Quando conversei com seu pai pela primeira vez, antes de conhecer Henry, ele me disse que o filho precisava de tratamento porque acabara de perder a mãe, e não estava sendo um processo muito fácil de aceitação... – As palavras se espremiam entre seus lábios quase fechados, tão apressadas que se atropelavam – Disse, também, que Henry nunca tinha feito tratamento nenhum antes... Essa foi só a primeira mentira que seu pai me contou, mas definitivamente não a última. – Caleb percebeu que, até ali, não estivera respirando. Agora o fazia sem muito ritmo ou fôlego – Henry citou o nome desse homem, Finn Weaver, em sua primeira sessão, e quando eu perguntei a ele de quem se tratava, ele me disse que era um homem como eu... Com quem ele conversava às vezes. – Dr. Brunell pausou e respirou, profunda e ruidosamente – Eu pesquisei, e descobri que Finn Weaver era psicólogo, e quando entrei em contato, ele disse que não conhecia seu pai, ou Henry... Mais tarde, dois ou três dias depois, ele me ligou... – Caleb sentia os músculos rígidos e sua mão estava tão fortemente agarrada à maçaneta que o sangue lhe fugira das juntas – Henry tinha acompanhamento semanal desde os quatro anos, e a última vez que Weaver o vira, havia sido na semana da morte de sua mãe, pouco antes de deixarem a cidade, e antes também de Samuel o ameaçar caso ele dissesse qualquer coisa a qualquer um sobre as sessões de Henry... – Dr. Brunell abaixou ainda mais o tom de sua voz antes de continuar – Ele me enviou cópia de alguns arquivos naquela época, e me pediu para desaparecer com eles tão logo eu terminasse de ler, e foi exatamente o que eu fiz... Eu li, e queimei tudo...

- O que diziam? O que tinha lá? – Caleb perguntou, sob o fôlego.

- Henry falava sobre esses sonhos... Sonhos onde ele estava assistindo seu pai e sua mãe... Sonhos eróticos, agressivos... – O coração de Caleb seguiu aos tropeços, desequilibrado – Weaver achava que não eram sonhos... – Por um instante tudo o que se ouvia era a respiração errática dos dois, escapando em lufadas pesadas e ansiosas – Ele achava que eram lembranças.


 Caleb não tinha certeza sobre o significado daquela confidência, e pensou até que se tivesse sido trazida à baila em outro momento, de forma mais casual e desinteressada, talvez ele não daria a mínima importância. Henry viu os pais transando, e daí? Não é o tipo de situação que acidentalmente acontece com uma boa parte das crianças? Todas elas estão caminhando em direção aos psicotrópicos por isso?

Mas não. Não.

Havia algo não dito, algo que não precisava ser verbalizado para dar àquela revelação um aspecto inquietante, relevante. Algo que explicava aquela mensagem de voz confusa e apavorada de Henry, e talvez também esclarecesse seu desaparecimento. Mas como? Como uma coisa poderia ter levado à outra? E por que depois de tanto tempo? O que Olivia tinha a ver com isso?


- Você já procurou por eles em Rye? – Dr. Brunell perguntou, resgatando Caleb da confusão que, por um segundo, havia feito de si mesmo.

- Não. – Ele respondeu, desorientado – Você acha que...

- Não sei. – O médico chacoalhou os ombros com o que parecia descaso, seus olhos, porém, não demonstravam a mesma imparcialidade – Finn Weaver ainda deve viver lá... Eu posso até ter o endereço dele em algum lugar por aqui.


 E se aquela mensagem de Henry significasse que ele finalmente tinha se dado conta de que seus sonhos, ou o que antes pensava serem sonhos, eram na realidade lembranças de situações que havia experienciado quando muito pequeno? E se, no auge de sua desordem interna, tivesse procurado por Samuel e perguntado à ele? E então, da mesma forma que ameaçara Finn Weaver décadas atrás, ele tivesse ameaçado Henry? Explicaria o desaparecimento de ambos, mas não o de Olivia.

Talvez, Caleb precisava admitir, fossem mesmo situações desvinculadas. Talvez Olivia tivesse de fato passado por algum tipo de crise aquela madrugada, depois da ligação que fez para ele e antes de embarcar para a Califórnia, e decidido não ir. Decidido não ficar, também. Talvez desaparecer tenha sido a melhor de suas opções, Caleb não a conhecia o suficiente para saber.


- Hey! – Lars exclamou, se levantando de sua cadeira na recepção. Caleb fez um gesto simples com a cabeça antes de se empurrar para fora do consultório, em direção à rua – Como foi lá? – O outro perguntou, soando preocupado e confuso. Caleb puxou sua carteira de cigarros, se pudesse teria acendido três de uma vez só. Um parecia longe do suficiente.

- Confuso. – Murmurou.

- Esclareceu alguma de suas dúvidas, pelo menos? – Lars insistiu, se sentando ao lado dele no degrau. Caleb deu de ombros.

- Talvez.


 Caleb sabia que talvez estivesse sendo injusto. Lars havia sido uma boa companhia até ali. Se quer pestanejara antes de aceitar deslocar-se naquela viagem, sem quaisquer informações básicas que fossem. Poderia ter feito daquelas três horas de estrada um grande interrogatório, mas nem se quer tentara. Ainda assim, custava para ele compartilhar algo que parecia tão pessoal com alguém tão distante de seu convívio.


- Você sabe onde fica a estação? – Caleb perguntou, depois de finalizar seu segundo cigarro.

- Ahn... Não. – Lars deu de ombros – Mas podemos encontrar...

- Será que você pode me dar uma carona até lá?

- Para onde você vai?

- Rye. – Caleb respondeu, e seus olhos examinaram rapidamente a confusão no rosto de Lars – É minha cidade Natal... Dr. Brunell acha que eu talvez possa encontrar algo relevante lá.

- Ok, eu te levo até Rye. – Lars decidiu, desenrolando seu corpo em um salto e puxando as chaves do carro de seu bolso.

- Não... – Caleb começou, desconcertado – Eu agradeço ter me trazido até aqui, Lars...

- Eu não conheço Rye... – Lars comentou, caminhando em direção ao carro e induzindo Caleb a segui-lo – Mas eu tenho certeza que deve ter algum bar onde você possa me comprar uma cerveja... Você sabe, como recompensa.


 Há apenas três quilômetros e meio do mar, Rye.

Pequena e pitoresca, com seus quatro mil e quinhentos habitantes e ruelas em paralelepípedo, especialmente íngremes e estreitas.

Em alta temporada, a cidade costumava receber um número generoso de turistas. Para além do porto, do centro agrícola e artesanatos em cerâmica, o turismo se tornou parte essencial na sustentação da economia do vilarejo. Mas era Dezembro, e ninguém queria visitar o mar, então as ruas estavam quietas e solitárias no fim daquela quarta-feira, quando Lars e Caleb chegaram.

Estacionaram no alto da rua The Mint para atualizar o GPS com informações sobre o endereço de Finn Weaver. Não estavam longe, descobriram, então decidiram ir caminhando até lá, os dois ansiosos para esticar as pernas depois das últimas horas de estrada.

O sol que se escondia timidamente entre as nuvens quando adentraram a cidade, agora já se punha. As ruas mergulharam na iluminação artificial e amarelada dos postes de energia, e continuavam absolutamente graciosas – apesar de um pouco sinistras, na opinião de Lars.

Subiram preguiçosamente uma viela ladeirenta, com o fôlego escasso que não poderia significar outra coisa, se não o sedentarismo de ambos. Pararam juntos para examinar mais uma das construções de tijolos avermelhados. Pareciam todas iguais, mas era aquela, em específico, que procuravam. Tinha uma porta pequena e verde, ao seu lado uma placa de metal.


Finn E. Weaver

Psicólogo Clínico

Com uma determinação atípica, Caleb se acercou e tocou a campainha. Esperaram em silêncio, mas nada aconteceu, então ele tocou mais uma vez. Esperaram mais um pouco. Na terceira tentativa, os dois já sabiam que não seriam atendidos, mas não queriam admitir que talvez aquela viagem tivesse sido ainda menos proveitosa que a visita à Cambridge.

Desceram a ladeira sem trocar uma só palavra. A frustração de Caleb quase podia ser palpada, Lars pensou enquanto caminhava ao seu lado. Ele próprio estava desapontado e desesperançoso. Aquela investigação toda parecia fadada ao fracasso, e de repente, quando se sentaram no balcão daquele bar que não tinha um nome na fachada, sentiram-se idiotas.


- Uma vez, quando criança, eu e meu grupo de amigos fomos passar a noite em uma casa que diziam ser mal assombrada... – Lars comentou de repente, depois de seu primeiro gole de cerveja – Foi a madrugada mais longa da minha vida, porque, você sabe, nós queríamos encontrar alguma coisa... Nós queríamos acreditar que era assombrada, e aí teríamos uma história para contar depois... Então qualquer barulho, qualquer vento mais forte, qualquer sombra estranha, era suficiente para morrermos de medo... Na manhã seguinte, sob a luz do dia, era uma casa perfeitamente normal... – E deu de ombros, com um sorriso nostálgico estampando seus lábios – Eu me senti idiota.

- Crianças são idiotas. – Caleb disse, desatento. Lars riu, concordando com a cabeça antes de encher a boca com cerveja outra vez.

- Eu encontrei Yvonne tentando encontrar Olivia. – Ele sentiu o olhar atônito de Caleb sobre si. Sabia que deveria ter contado antes, e tivera tempo e oportunidade para isso, mas a verdade era que detestava pensar sobre isso, e falar só parecia tornar ainda mais real e excruciante – Quando eu soube da morte da Olívia, assim como você, eu achei tudo muito estranho e mal contado... Quer dizer, não havia um corpo, como poderiam se convencer tão fácil de que ela tinha mesmo se matado? – Lars deu de ombros e respirou fundo, ganhando tempo antes de continuar – Dias depois, me lembrei de uma situação estranha de quando nos conhecemos, Olivia recebeu flores e havia um cartão que foi supostamente assinado por mim... Ela me ligou, ela estava assustada, eu percebi... Ela perguntou onde eu havia conseguido seu endereço, e eu pedi a ela para procurar a polícia naquela época, porque eu não havia enviado aquelas flores... – Caleb queria interromper, porque sua urgência pelo fim da história era tão grande que ele queria dizer à Lars para pular os entremeios – Eu não sabia bem por onde começar a pesquisar sobre isso, porque, bem... Já tinha três ou quatro meses, e eu não podia ir em todas as floriculturas de Wolverhampton para quem sabe, com sorte, conseguir qualquer informação... Eu nem sabia quais eram as flores que tinham sido enviadas... – Caleb aguardou, impaciente, pelo porvir – Eu entrei em contato com o pessoal do trabalho dela, e falei com uma moça... Amy, Amber, eu não lembro... Perguntei se alguém tinha acesso ao apartamento de Olivia, inventei que éramos amigos, e que eu tinha deixado a chave do meu flat com ela, para que ela cuidasse da minha gata naquele fim de semana antes da morte dela, e que eu precisava pegar... Então ela me colocou em contato com Gracie... Gracie morava com Olivia. Ela estava se mudando, porque não tinha coragem de entrar lá, mas me emprestou a chave... – Lars pausou outra vez, e Caleb se empertigou, precisou se controlar para não pedir que ele, pelo amor de Deus, resumisse o que ia dizendo – Gracie disse que algumas coisas haviam sido levadas pela polícia, para investigar, e outras haviam sido levadas pelos pais e amigos, então eu não estava muito esperançoso... Ainda assim eu olhei por tudo, e eu encontrei o cartão que acompanhara as flores, estava servindo de marca página para um exemplar de "O Sol É Para Todos"... – Lars contou, e pelo seu tom de voz, Caleb sabia que ele estava concluindo – Era minha letra, Caleb... E só tinha uma pessoa que reproduzia minha letra melhor do que eu mesmo... Yvonne.

- Puta merda... – Caleb soprou.

- Eu não sabia o motivo, mas eu sabia que ela quem tinha enviado as flores para Olivia... – Lars continuou – E para isso ela precisava estar viva... Supõe-se que sim, pelo menos... – Brincou, bem humorado. Caleb, por sua vez, continuava estarrecido ao seu lado – Então eu procurei o pai dela, a minha intenção era que ele se animasse outra vez com as buscas, porque àquela altura o caso já tinha sido abandonado... Ao invés disso, ele ficou muito irritado, digo... Eu achei que ele fosse me bater... – Lars revisitou a cena, o sangue correndo quente em suas veias, seu coração tomado outra vez daquela cólera que ele escolhera não sentir, mas que às vezes o surpreendia. Mais viva. Mais forte. Ele tomou um gole de sua cerveja antes de continuar – Ele mandou que eu parasse de investigar, que Yvonne estava morta, e que cada vez que alguém tentava reativar as buscas, a melancolia de Patrice piorava... E eu não sei se foi o tom de voz dele, ou alguma coisa nos olhos, sua agressividade e desespero, mas eu sabia... Eu sabia que havia algo de errado, algo que ele não estava me contando... Então eu fui falar com Troy, eu inventei uma história, disse que eu já sabia de tudo, que havia encontrado o bilhete de Yvonne e que havia confrontado Hammond, e que ele confirmara que Yvonne estava viva, e havia inclusive me sugerido que nós dois juntos culpássemos Troy pelo desaparecimento dela... – Lars deu de ombros – Troy é tão forte quanto burro, ele entregou tudo imediatamente... Yvonne estava grávida, não sabia de quem era o filho... Se era meu ou de Troy... Hammond escolheu Troy, porque ele tem mais dinheiro, e os dois planejaram tudo... Desde identidade falsa até um casa campestre impressionante no litoral...

- Que desgraçados! – Caleb resmungou.

- Yvonne não queria ir, ela tentou desistir quando eu a pedi em casamento, e na mesma noite ela procurou Troy na festa de Ano Novo do campus, disse para ele que não ia mais, que o filho era provavelmente meu e que iriamos nos casar no ano que vem, quando eu me graduasse... – A voz de Lars, que ia baixando de pouquinho em pouquinho, desapareceu. Caleb o assistiu tamborilar os dedos na caneca de cerveja, com o rosto baixo e o maxilar rígido. Torceu, desesperado, para que Lars não começasse a chorar, embora soubesse que aquele era um bom motivo para isso. Nunca sabia o que fazer com pessoas chorosas, e certamente inventaria que precisava ir ao banheiro logo na primeira lágrima – Ele ligou para Hammond, que deu a ordem... Eles sequestraram ela... Eles a levaram a força e a mantiveram sob vigilância 24 horas por dia durante duas semanas inteiras até terem convencido Yvonne de que aquela havia sido a escolha certa... Ela me disse que não sabia que eu tinha sido acusado... Que Troy disse à ela que eu estava saindo com uma jornalista... E ela enviou as flores porque ficou com ciúmes e queria afastar Olivia de mim... – Lars respirou fundo, tentado recobrar a estabilidade de sua voz e de seu coração – Mas tanto faz o que ela disse...

- E o que aconteceu depois que você a encontrou? Quer dizer, você foi a polícia? Troy e Hammond, eles estão pagando por isso? – Lars olhou para Caleb com um sorriso gentil, apesar de amargo.

- Ela não quis denunciar. – Ele encolheu os ombros, com clara impotência – Ela estava grávida de seis meses na época, e disse que não estava disposta a enfrentar situações como essas... Eu não sei bem como eles a convenceram disso, mas ela acredita que eles fizeram isso para proteger o bebê, e a ela. – Caleb negou com a cabeça – Pelo menos Patrice agora sabe de tudo, ela e Hammond se separaram e ela vive com Yvonne e Callum em Dorset.

- Callum?

- Meu filho. – Lars contou, e pela primeira vez viu Caleb se expressar sem nenhum comedimento. Olhos arregalados, lábios entreabertos. Absolutamente chocado.

- Seu filho? Então não era de Troy. – Lars negou com a cabeça – E como é isso? Vocês têm algum contato?

- Eu visitei ele duas vezes depois que ele nasceu, em Agosto... Mas ainda é muito difícil... É só... Muito difícil.

- Sinto muito, Lars.

- Eu também.

- Terminaram? – Uma voz feminina os atraiu, e era como se tivesse estourado a atmosfera de tensão e cumplicidade entre eles – Ótimo... Então já podem me explicar o que estavam fazendo na porta do escritório do meu pai...


 A dona da voz estava parada ao lado de Lars, e se curvou ligeiramente em direção ao balcão, apoiando seus antebraços sobre ele. Nenhum dos dois disse nada, mas foram igualmente atravessados de deslumbre. Admiraram em silêncio seus lábios cheios e olhos curiosos, seus cabelos desordenados e sua postura austera. Tão pequena, e ainda assim tão maior que eles.


- E então? – Ela exigiu, com as sobrancelhas arqueadas.

- Quem é você? – Caleb perguntou, e sua voz soou rouca e tímida, quase como se tivesse acabado de acordar. Ele aclarou discretamente a garganta.

- Aurora Weaver...

- Oh! – Os dois exclamaram, e ela empurrou a bochecha com a língua, claramente impaciente.

- Eu sou Lars, esse é Caleb... – Lars se adiantou, estendendo a mão para ela. Aurora pareceu considerar um ou dois segundos antes de cumprimentá-los – Nós... Estávamos querendo conversar com seu pai... Sobre um paciente, um antigo paciente dele.

- Ah... – Aurora fez, e emudeceu novamente em seguida, como se esperasse mais informações.

- Meu irmão... – Caleb disse, então – Ele fazia terapia com seu pai há uns 25 anos atrás, e agora... Bem, ele... Ele está meio que desaparecido, e eu pensei que seu pai poderia contribuir com alguma informação.

- Sinto muito pelo seu irmão. – Aurora disse, depois acenou para o barman do outro lado do balcão, pedindo uma caneca de cerveja para si – Onde você conseguiu o endereço do meu pai? Quer dizer, você não parece existir há vinte e cinco anos, então não acho que tenha se lembrado disso sozinho...

- Tem razão, eu existo há vinte e quatro anos... – Caleb contou, sem saber ao certo o porquê – Mas não vem ao caso... Depois do seu pai, meu irmão continuou o tratamento em Cambridge, com um psiquiatra, ele e seu pai tiveram algum contato na época... Você sabe, troca de informações... Ele passou o endereço do seu pai, e disse que ele talvez pudesse ajudar.

- O que ele não sabe é que meu pai morreu... – Aurora contou, sem pestanejar, depois bebeu um sorvo de sua cerveja. Lars e Caleb endireitaram a postura, seus músculos enrijecendo em resposta à surpresa.

- Ele foi assassinado? – Caleb perguntou e Lars virou abruptamente em sua direção, olhos arregalados e repressivos – O que?

- Não. – Aurora disse, confusa – Infarto.

- Ah... – Caleb fez, e os três ficaram um instante em silêncio antes de começarem a rir.

- Caralho, você é esquisito. – Aurora comentou, entre risos.

- Você não imagina o quanto. – Lars acrescentou, e Caleb o encarou, surpreso pela confissão repentina.

- Você também não é lá uma figura muito normal, se quer saber. – Falou, chacoalhando os ombros e erguendo sua caneca de cerveja até a boca.

- Agora vocês entendem porque eu me preocupei quando vi vocês lá em casa... – Aurora comentou. Passou um segundo antes deles voltarem a rir – Então vocês são o que? Amigos?

- Amigos de uma pessoa em comum... – Lars explicou.

- O irmão desaparecido?

- Ah, não... – O rapaz continuou – A ex-namorada do irmão desaparecido... Que, por sinal, também está desaparecida...

- Oh, uau! – Aurora fez, e chacoalhou a cabeça como se tentasse organizá-la com isso – Vocês estão inventando isso para me fazer de idiota?

- Não. – Os dois responderam juntos.

- Ok... – Ela bebeu mais um sorvo de sua cerveja antes de continuar – Vocês moram onde?

- Wolverhampton. – Caleb disse.

- Vocês vieram de Wolverhampton para falar com meu pai?

- Na verdade estávamos em Cambridge, foi onde o psiquiatra sugeriu que viéssemos até aqui – Lars explicou.

- Entendi... – Aurora murmurou, e olhou para Caleb – Você é daqui?

- Eu nasci aqui, mas fomos embora para Cambridge logo em seguida... – Ele contou, casualmente – Meu irmão tinha algo como seis anos na época...

- Como é seu sobrenome?

- O'Malley.

- Oh... – A moça fez, e Caleb estranhou aquele ar de compreensão, como se já tivesse ouvido falar sobre ele.

- Você conhece alguém com esse sobrenome por aqui?

- Não... Só a casa de vocês.

- Nossa casa? – Caleb estranhou, e Aurora pareceu ainda mais confusa do que ele.

- É, a casa perto do porto... – Ela arriscou, mas Caleb nunca tinha ouvido falar sobre casa alguma. Achou que todas aquelas vezes que Henry e Samuel viajavam para Rye, ficavam em hotéis ou pousadas.

- Você sabe o endereço? Quer dizer, você sabe exatamente onde fica? – Caleb perguntou, empertigando-se.

- Sei...

- Você pode nos levar? – Era Lars, tão afoito quanto o rapaz ao seu lado.

- Posso... – Aurora deu de ombros – Landon... – Ela chamou o barman, que se acercou imediatamente – Separa um fardo de Budweiser para viagem... – Caleb se adiantou em tirar a carteira do bolso, mas ao invés de pegar o dinheiro que ele estendia, o barman olhou para Aurora – É por minha conta, rapazes...

- Não, eu faço questão... – Caleb insistiu.

- Meu bar, minhas regras... – Ela disse, saltando do banco onde estava sentada – Vamos lá!


 Lars dirigiu cerca de vinte minutos, de uma ponta a outra da cidade, antes de começarem a se afastar dela para tomarem uma vereda de solo rochoso, margeada por árvores grandes e cheias que os impedia de ver qualquer coisa ao redor.

E se eles estivessem lá? Caleb considerou, inevitavelmente. E se por algum motivo tivessem decidido passar uma temporada em Rye, ou, quem sabe, se mudarem de vez para o vilarejo. Samuel parecia gostar dali, e Henry sempre falava com muito carinho do porto. E se todas aquelas coincidências estranhas não passassem disso, coincidências? Assim como a casa assombrada que Lars visitara quando criança. Talvez Caleb estivesse olhando para tudo aquilo sob a luz de sua preocupação. Talvez estivesse tomando qualquer coisa como pista, como algo a ser investigado para, no fim das contas, descobrir que era só um mal entendido.

O caminho foi se abrindo e dando espaço para um terreno arenoso e espaçoso. Caleb se endireitou no banco traseiro, se acercando o máximo que pôde dos assentos da frente, com a cabeça entre Lars e Aurora. Conforme se aproximavam, o portão parecia se erguer diante de seus olhos, cada vez maior e mais imponente. Se Samuel fosse um portão, ele certamente se pareceria com aquele, Caleb pensou quando saltou do carro.

As luzes de dentro estavam apagadas, mas haviam postes ao redor que iluminavam debilmente o jardim – curiosamente, ele parecia muito mais bem cuidado do que o da Pool Hall.


- Bem... É aqui. – Aurora disse, e Caleb se aproximou um pouco mais dos portões, examinando o cadeado pesado que o mantinha trancado – Não parece ter ninguém, de qualquer forma – Lars chacoalhou as grades e observou o design cheio de curvas e arabescos.

- Eu acho que dá para pular... – Cogitou, apoiando o pé em uma volta da grade e se erguendo contra ela para testar.

- Vocês não estão falando sério, estão? – Aurora perguntou, de olhos assombrados – Oh, meu Deus, que péssima ideia! – A moça murmurou consigo mesma enquanto assistia Lars escalar cuidadosamente o portão sob o olhar atento de Caleb – Deve ter algum alarme, não seria tão fácil entrar se não tivesse um alarme... – Lars passou de um lado para o outro, e começou sua descida, passando ligeiramente de uma curva à outra até saltar contra o gramado.

- Vamos lá, agora vocês...

- Ok, se vamos fazer isso, vou pegar aquelas cervejas.


 Caleb insistiu para que Aurora fosse primeiro, assim teria apoio dos dois lados, caso precisasse. Apesar de contrariada, ela subiu e desceu muito mais rápida e habilmente que Lars, o que fez Caleb rir debochado antes de passar todas as longnecks pela grade e começar a sua própria escalada.

Caminharam sorrateiros pelo jardim em direção à casa que, assim como o portão, tinha um aspecto sóbrio e autoritário, quase como se quisesse expulsá-los dali por conta própria.

Caleb se perguntou se era ali que seus pais viviam. Se sua mãe havia algum dia caminhado por aquele jardim, e se acomodado naquelas poltronas da varanda. Imaginou sua figura dócil lhe sorrindo daquela janela de vidro no alto, e flagrou-se saudoso – como se sentisse falta dos braços nos quais nunca teve a chance de se aninhar.


- Trancado... – Lars murmurou depois de testar a porta da frente – Vamos dar uma olhada nos fundos...

- Por que você acha que alguém deixaria uma casa como essa destrancada? – Aurora perguntou, seguindo apressada atrás do rapaz. Caleb vinha por último, tentando lidar com a fragilidade repentina.

- Não custa verificar. – Lars disse, contornando a construção até a porta dos fundos – Ok, trancada também... E as janelas têm grade... – O rapaz ponderava, com as mãos na cintura.

- As portas da sacada são de vidro... – Aurora considerou – Mas teríamos que dar um jeito de subir até lá, e... Bem, teríamos que quebrar o vidro... Não tenho certeza de quanto tempo de cadeia pegaríamos por isso...

- Caleb é filho do dono, acho que podemos conseguir uma boa justificativa para a invasão... – Lars planejava e, quando se deram conta, Caleb já estava agarrado ao pilar que sustentava o teto da varanda, se arrastando inabilmente para cima.

- Caleb, cuidado... – Aurora pediu quando ele soltou uma mão do pilar para alcançar o beiral do telhado. Caleb ficou um tempo parado, e nenhum dos três estava respirando enquanto ele se preparava. Acontece que uma única mão não era suficiente para sustentar seu peso, e o que veio a seguir foi o baque surdo de seu corpo contra o gramado junto a um coro de palavrões diversos – Tudo bem? Você está bem?

- Sim. – Ele soprou, em uma lufada – Estou bem.

- É melhor irmos embora... – Aurora sugeriu quando ela e Lars ergueram Caleb do chão. O rapaz limpou rapidamente as mãos e a roupa, suas costas reclamando da queda – Não vamos conseguir entrar.

- A menos que... – Lars começou – Tem aquela basculante, deve ser do banheiro – Ele comentou, apontando para uma janela menor e mais alta do que as outras – Talvez um de nós pudesse tentar entrar, e abrir a porta por dentro...

- Eu já entendi. – Aurora resmungou – E a resposta é: absolutamente não.

- Aurora, você é a mais leve de nós, podemos te erguer e você entra...

- Eu não vou entrar aí sozinha... – Ela protestou – Eu nem conheço vocês, e se vocês nem souberem quem diabos é o dono dessa casa, e só quiserem me colocar aí dentro e ir embora! – Lars deitou a cabeça para trás.

- Aqui... – Caleb disse, abrindo a carteira e retirando sua identidade de lá, para que ela conferisse seu sobrenome.

- A resposta ainda é não... – Ela disparou, depois de conferir.

- Toma, fica com todos os nossos documentos... – Lars sugeriu, retirando sua carteira de motorista e identidade de dentro da carteira para entregar à ela – Não vamos a lugar nenhum sem eles. – Caleb o imitou, e Aurora respirou fundo, observando em silêncio tudo o que tinha em mãos – Vamos lá! O cara não tem notícias do irmão, nem da garota por quem está apaixonado...

- O que? – Caleb exclamou – Não! Eu não estou apaixonado pela Olivia...

- Ok. – Aurora suspirou – Eu entro...


 Ergueram Aurora em uma altura suficiente para que ela conseguisse abrir a janela e se espremer por entre o espaço limitado que tinha para entrar, entre palavrões e discursos de ódio que, na maioria das vezes, envolvia o nome deles, mas às vezes também a si mesma, por ter deixando que eles a convencessem.

Ouviram, com um sobressalto, o despencar do corpo dela lá dentro, mas antes que pudessem perguntar se ela estava bem, Aurora os certificou disso com um grito de que os odiava. Quando mais calma, disse que iria procurar uma maneira de abrir as portas e deixá-los entrar.


- Eu não estou apaixonado por Olivia. – Caleb reafirmou assim que soltou seu corpo no gramado, ao lado de Lars. O outro sorriu discretamente, estendendo uma das garrafas de cerveja que acabara de abrir – Quer dizer, eu mal a conhecia, nós nos víamos sempre no ônibus, mas conversamos duas ou três vezes...

- Ok... – Lars murmurou dentro da própria garrafa antes de entorna-la.

- É sério... – O outro começou a rir.

- Por que está tão preocupado em me convencer, Caleb? – Perguntou – Ou está tentando convencer a si mesmo?

- Cala a boca... – Resmungou Caleb, subitamente mal humorado. Lars estava tentando conter o riso quando teve sua atenção atraída para as luzes que se acenderam dentro da casa. Caleb se levantou em um salto, se aproximando da varanda dos fundos onde, pouco depois, Aurora apareceu.

- Bem-vindos a mansão Jude's Garden.


Jude's Garden.

Caleb repetiu para si mesmo, em uma tentativa irracional de verificar a veracidade dos fatos, quase como se estivesse em um sonho esquisito e quisesse de alguma maneira se convidar à realidade. Bem, aquela era a realidade.

Seu pai mantinha uma casa em sua cidade Natal, com o nome de sua mãe, da qual ele havia sido privado nos últimos 24 anos. Não era de todo surpreendente, Caleb pensou. Ele sempre tivera essa impressão de estar do lado de fora, assistindo à Samuel e Henry através de janelas de vidro. Nunca havia sido convidado para os fins de semana em Rye. Verdade seja dita, nunca havia sido convidado para nada. Uma barreira intransponível entre ele e aquela que deveria ser sua família.

Um pária.


- Você não vem?


 Ele observou o rosto de Aurora por dois ou três segundos, ainda julgando-se incapaz de carregar seu corpo para dentro. Agitou a cabeça num gesto irrefletido e, com o sangue correndo frio em suas veias, forçou sua entrada pela porta entreaberta, fechando-a atrás de si logo em seguida.

Aurora e Lars haviam acendido as luzes, e ao contrário do que Caleb temia, não havia uma atmosfera pesada ou sombria. Era uma belíssima casa. Claramente antiga, com aparência clássica e desatualizada, ainda assim inesperadamente acolhedora.

Caleb atravessou a cozinha, rodeando a ilha no meio, observou o jogo de panelas pendurado em um suporte que descia do teto – pareciam nunca ter sido usadas, como se colocadas ali para decoração, mas contrariando todas as imagens que ele havia criado ainda do lado de fora, elas estavam brilhando. Tudo estava limpíssimo. Era inegável, alguém estivera ali há pouco tempo.

Vasculhou cada compartimento dos armários e dentro da geladeira, mas não havia comida em parte alguma. Embora parecesse pouco provável que alguém estivesse vivendo ali, ainda era possível. A verdade é que, àquela altura, estava difícil desconsiderar qualquer coisa, menos plausível que fosse.

No corredor, seguiu pelo lado direito, percorrendo o caminho até a sala de jantar. A mesa no centro não era muito grande, e o corpo de Caleb estremeceu em um espasmo quando foi levado para dentro de uma memória inventada de seus pais e Henry ocupando aquelas cadeiras em um jantar em família do qual ele nunca tivera a chance de participar – mesmo em sua imaginação.

Atravessou o cômodo até o balcão que ocupava duas das quatro paredes. Observou todas aquelas portas e gavetas, certo de que tudo estaria trancado, mas não estava. Talvez porque não tivesse nada a ser visto, também. Vasculhou cada espaço vazio, e havia essa combinação de frustração e alívio a cada coisa não encontrada.

Encontrou Aurora e Lars na sala de TV, um ao lado do outro, eles observavam em silêncio qualquer coisa sobre a lareira. Caleb não demorou a descobrir que era um conjunto de porta-retratos, possivelmente colocados em ordem cronológica – uma foto do casamento de Jude e Samuel, seguida de uma em que eles dois estavam na maternidade com um Henry recém-nascido nos braços. A próxima era do filho, já um pouco maior, três ou quatro anos, no porto de Rye. A quarta, e última, era de Jude no jardim. Não parecia ter notado a presença de outra pessoa, esticada em uma espreguiçadeira, seu rosto parcialmente escondido pelo livro que lia, sua barriga cheia e arredondada, onde Caleb crescia diariamente.

Ele pôde ouvir Aurora perguntar, num tom baixo e receoso, se aquela era sua mãe, mas não encontrou sua voz para responder, então apenas meneou a cabeça, alcançando o porta-retratos sobre a lareira e trazendo-o para mais perto. Apreciou a mansidão da imagem – do rosto distraído de sua mãe, ao cenário que a rodeava. O verão estava claramente se aproximando, o sol banhando o gramado muito verde, arbustos graciosamente estampados com flores. Caleb quase podia sentir o calor, e o cheiro da terra úmida. Era injusto que aquela fosse provavelmente sua única foto com sua mãe, ao mesmo tempo estava feliz que houvesse uma, e que fosse tão bonita.

Sem mais delongas, retirou a fotografia do porta-retratos e enfiou no bolso do casaco. A ideia de poder olhar para ela todos os dias fez com que Caleb se sentisse algo mais otimista.


- Que bizarro... – Aurora murmurou, os olhos espiando para dentro de um dos quartos do piso superior. Lars se apressou em sua direção, empurrando um pouco mais da porta para que conseguisse, ele próprio, ver alguma coisa. Os dois se voltaram então para Caleb, que estava parado no corredor, a meio caminho deles, ainda decidindo se queria ou não saber o que havia lá dentro.

- O que foi? – Perguntou, e mesmo Caleb, que tinha uma vida inteira de indiferença em seu tom de voz, soou apreensivo. Lars e Aurora não se entreolharam, mas gostariam, se pudessem. Impaciente, Caleb se acercou em poucos passos, adentrando o quarto.

Seu quarto.

Seus olhos correram ao redor, examinando o cenário a sua disposição – o berço de madeira, acompanhando de um móbile de pequenos ursinhos e o dossel de renda branca, que fora instalado no alto da parede e cobria todo o berço. Na quina do cômodo, próximo às portas da sacada, havia uma poltrona florida em tons pastéis e um abajur longo. Há alguns centímetros de distância, uma cômoda de madeira sustentava uma luminária de porcelana, sua base era a imagem de um anjo e, ao seu lado, um urso branco que agora tinha um aspecto velho e amarelado, apesar da tentativa de conservação. Na parede, logo acima da cômoda, havia um conjunto de letras grandes, num tom pálido de verde, que diziam "Reino do Caleb".

Havia tanto cuidado e afeto em cada detalhe que, ao contrário de Aurora, Caleb não conseguiu encontrar o aspecto bizarro. Por um breve instante se deixou dominar pelo sentimento infantil de querer ficar. Como gostaria de não precisar nunca mais sair dali. De seu reino, tão carinhosamente preparado por sua mãe, para sua chegada.

Ali, talvez pela primeira vez em sua vida, Caleb se sentiu benquisto.


- Pelo menos não tem um daqueles cavalos de balanço... – Ele ouviu Lars sussurrar para Aurora.

- Meu Deus, cala a boca... – Ela pediu, num tom ainda mais baixo. Caleb riu pelo nariz, depois se virou em direção a eles, encontrando dois pares de olhos grandes e curiosos – Você quer ficar sozinho um pouco? Nós podemos continuar...

- Não, tudo bem. – Caleb deu mais uma olhadela no quarto, por cima do próprio ombro, enquanto fazia seu caminho até a porta.

- É um belo quarto, cara. – Lars arriscou, e Caleb concordou em silêncio, encostando a porta atrás de si.


A próxima porta dava acesso ao quarto que um dia pertencera a Henry, e assim como todas as vezes que Caleb hesitou se acercar de qualquer coisa que pertencesse ao irmão, ali também sentiu-se coibido, quase como se houvesse uma barreira impalpável velando a entrada, o expulsando ao mínimo sinal de invasão.

Curiosa que era, Aurora foi a primeira a entrar.

Caleb observou o cômodo desde a porta. A cama coberta por uma colcha palha, acompanhada de um baú de madeira aos seus pés. A escrivaninha complementada com uma cadeira. A cômoda não tão grande, logo ao lado de uma espécie de barraca de tecido.

Ele foi entrando, ainda tentando lidar com a sensação de não ser bem-vindo ali, e examinou mais de perto os móveis e detalhes. Lutando contra seu acovardamento, abriu o baú. Não havia muito mais do que alguns bichos de pelúcia, que ele imaginou que Henry não havia feito questão de levar consigo para Cambridge, quando se mudaram.

Passaram por um banheiro e uma espécie de escritório – que continha apenas algumas poltronas, escrivaninha e uma estante com livros. Vasculharam as gavetas e portas, mas estava tudo vazio.

No fim do corredor, abaixo da grande janela de vidro, havia disposta uma maquete da casa. Eles gastaram algum tempo observando os cômodos de cima, e exceto pelo quarto ao lado e o porão, que eles descobriram só então que existia, já haviam visitado todos os outros espaços.

Lars empurrou a porta da suíte, dando espaço para que Aurora e Caleb entrassem. Os três pararam, um ao lado do outro, e analisaram o ambiente ao redor. Os móveis pareciam fazer parte de um mesmo conjunto, erguidos em uma madeira escura e avermelhada. A cama ficava de frente para a porta, encostada à parede, com uma cabeceira grande e um chaise aos seus pés. A mesinha ao lado servia de base para um abajur dourado.

Havia ainda uma penteadeira grande, acompanhada de um espelho amplo e arredondado. No canto próximo à porta, duas poltronas, uma mesa redonda e uma espécie de aparador pequeno, com um jogo de chá com peças de porcelana branquíssimas, que provavelmente nunca tinham sido usadas.

Enquanto Lars e Aurora passeavam, procurando qualquer coisa, embora não fizessem ideia do quê, Caleb se aproximou da cama. Havia algo sobre ela que fez o coração dele se encolher, mas o que?

Analisou a colcha floral em tons muito claros de rosa e coral, mesma cor dos lençóis. Os travesseiros igualmente altos. A cabeceira bonita, com curvas algo românticas. A mesinha ao lado, sustentando o abajur simples. O que? O que poderia ser?


- Está trancada... – Caleb murmurou para si mesmo quando girou a maçaneta da porta que dava acesso ao porão.

- Um porão trancado, ótimo. – Aurora disse – Essa é a nossa deixa, pessoal...

- Vamos tentar abrir... – Lars sugeriu – Vou ver se tem alguma chave no molho que está na cozinha...

- Ok... – Caleb concordou, forçando um pouco mais a maçaneta, na esperança de estar só emperrado.

- Vocês sabem porque pessoas trancam portas? – Aurora perguntou, seu corpo escorado na parede – Porque elas não querem que outras pessoas entrem...

- Ou saiam... – Caleb lembrou, e percebeu que Aurora não respirou pelos próximos segundos.

- Você acha que seu irmão tá aí dentro? – A moça sussurrou, com olhos perigosamente arregalados.

- Testa essas... – Lars propôs, entregando o molho de chaves à Caleb.


Os dedos trêmulos de Caleb selecionavam as chaves, uma a uma, colecionando tentativas frustradas de abrir a porta, revisitando de hora em hora a lembrança do quarto dos pais, aquela cama. O que havia naquela cama?

Clic.


- Gente... – Aurora arfou, com a mão no peito – Por favor, não entrem aí, eu não quero entrar aí...

- Espera aqui... – Lars aconselhou, enquanto seguia Caleb.

- Droga, vocês são tão teimosos, por que são tão teimosos? – A moça protestou.

- E você é curiosa. – Lars acusou num sussurro.

- Não dá para ver nada. – Caleb comentou, as mãos se arrastando pelo corrimão, os pés testando degrau por degrau antes de soltar o peso do corpo.

- Mais um motivo pelo qual deveríamos voltar e ir embora daqui...

- Não se preocupe... – Lars começou – Não tem cheiro de gente morta, se por um acaso tiver alguém aqui, está vivo...

- Você é um idiota. – Aurora rosnou.

- Porra... – Ouviram Caleb reclamar – Cuidado, tem uma parede rente ao último degrau...

- Você está bem?

- Sim... – Ele soprou, caminhando às cegas, os braços estendidos na tentativa de identificar qualquer obstáculo à sua frente. Andou, devagar e sem direção específica, até encontrar a parede mais próxima – Precisamos tentar encontrar o interruptor... – Ele quase foi interrompido pelo grito alarmado de Lars.

- Sou eu! – Aurora se revelou, bem humorada e antes mesmo que Lars pudesse se manifestar outra vez, as luzes se acenderam. Os três semicerraram os olhos, tentando lidar com a claridade súbita antes de examinarem o espaço ao redor. Para além das pilastras aqui e ali, sustentando o teto, e o carpete marrom avermelhado, havia apenas uma estante com caixas de ferramentas velhas e enferrujadas.

- Eu sinto muito, cara. – Lars suspirou depois de terem vasculhado, uma por uma das dezenas de caixas. Apertou amigavelmente o ombro de Caleb, numa tentativa débil de apoio.

- Tudo bem.


 Enquanto Lars os dirigia, alameda acima, de volta ao centro da cidade, Caleb descansou sua cabeça contra o encosto do carro, fechando seus olhos. Era fato que aquela visita não havia contribuído ou direcionado suas buscas, ainda assim, havia essa sensação de agrado escondida em uma esquina de seu coração, como se algo dentro dele, há muito tempo quebrado, tivesse sido reparado.

Sabia que mais tarde talvez se sentisse ainda mais culpado pela morte da mãe, depois de ter entrado em contato com seu próprio quarto, no qual ela havia investido todo seu carinho por ele. Mas por hora, desfrutou do sentimento de ter sido tão querido por ela.

Ele tinha razão, teriam se dado bem.

Seriam um ótimo time.


- Valeu... – Ele murmurou para Aurora, que lhe estendia uma xícara de chá.

- E então, quem é Olivia, pela qual você não é apaixonado? – Ela perguntou à Caleb, se encolhendo na poltrona mais perto da janela. Lars, no sofá para três, soltou um riso dentro de sua xícara.

- Ela é... Ela e meu irmão, eles tiveram alguma coisa... – Comentou, porque preferia acreditar que não tinham chegado a namorar – Eu tatuei ela uma vez, anos antes de eles se conhecerem... Mas é só isso...

- Entendi... – Aurora anuiu – E ela desapareceu ao mesmo tempo que seu irmão?

- Não sei...

- Encontraram um bilhete de suicídio no apartamento dela... – Lars contou – No dia em que ela deveria estar embarcando para a Califórnia, passar as férias com a irmã... E com o Caleb, aparentemente...

- Ela não ia passar as férias comigo... – Ele argumentou – Eu estava lá, e tínhamos combinado de talvez nos encontrarmos...

- O fato é que não encontraram o corpo dela... – Lars continuou, ignorando as justificativas do outro – E na noite anterior ela deixou uma mensagem para Caleb, e definitivamente não soava com alguém prestes a se matar.

- Pessoas prestes a se matar nem sempre soam como pessoas prestes a se matar, rapazes... – Aurora disse, no tom mais cuidadoso que pôde. Caleb engoliu um pouco de seu chá – Vocês acham que Henry fez algo com ela? – Lars deu de ombros, seus olhos procurando por Caleb, que tampouco respondeu – Ok... – Ela soprou e respirou fundo – É o seguinte, na sala do meu pai tem um arquivo grande, com prontuário de centenas de pacientes... – A coluna de Caleb foi se desenrolando, em alerta – Eu não garanto que tenha algo sobre Henry, porque ele costumava se desfazer dos relatórios de pacientes antigos depois de cinco anos, mas... – Arrependida antes mesmo de propor, Aurora arfou e deu de ombros – Podemos dar uma olhada.

- Isso pode te colocar em problemas, não pode? – Lars verificou.

- Claro que sim... – Ela disse – Eu inclusive já deveria ter me livrado de tudo, mas eu mal consigo entrar na sala, que dirá me desfazer de qualquer coisa... – Aurora começou a se levantar – Vocês não podem dizer a ninguém, independente do que encontrarmos lá... Se encontrarmos algo.

- Ok. – Caleb concordou, e Lars agitou a cabeça, concordando em silêncio.

- Ótimo.

Continue Reading

You'll Also Like

20.8K 1.4K 12
🔥CONTÉM GATILHOS ☠️ DARK ROMANCE 🔥☠️* ⚠️Atenção: Aqui só tem 12 capítulos disponíveis. 🔥LIVRO COMPLETO NA AMAZON KINDLE 🔥 Quando você percebe que...
650 68 9
Depois dos acontecimentos em duskwood, Isabelly se vê em mais um desafio, um cara chamado Eric manda mensagem para ela perguntando sobre seu amigo de...
Declínio By Dmitri Bucareste

Mystery / Thriller

261K 22.3K 171
"Eu queria devorar esse moleque. Me sentia plenamente capaz de passar a noite inteira traçando ele, até meu pau esfolar. Meu peito tava agoniado. Em...
Psicose (Livro I) By Andie P.

Mystery / Thriller

4M 253K 49
Melissa Parker é uma psiquiatra recém-formada que encontra seu primeiro emprego em um manicômio judiciário. Em meio aos novos desafios, se vê encanta...