Renan nunca aceitou a ideia de hierarquia. O fato de, durante o treinamento militar, ter de se sujeitar a ordens sem sentido fazia com que ele odiasse o militarismo.
Porém, todos os jovens eram obrigados a passar por um treinamento militar. O governo Arcadiano prezava por uma sociedade bem treinada e preparada para a guerra. Não sabiam quando iriam precisar entrar numa.
O rapaz tentou de todas as formas se ausentar da obrigação do serviço militar. Inclusive convenceu seu amigo Pedro a fazer o mesmo. Mas todos os seus esforços foram em vão quando o Império Fluminense declarou guerra a Arcádia.
Não houve escapatória. O governo precisava de o máximo de soldados possível. Jovens das mais diversas idades foram recrutados para treinamento.
Renan e Pedro pertenciam a um grupo de 100 recrutas. Muitos eram seus amigos, como Guilherme, Samir e João.
O único realmente empolgado com o treinamento militar era Samir. Um rapaz de cor morena, cabelo preto e um físico e humor invejáveis. Ele e Pedro sempre zoavam Renan. Faziam várias piadas sobre o rapaz. Umas das mais frequentes era sobre os seus constantes "apagões". Quando ele se desligava de tudo o que acontecia ao seu redor e parecia sonhar acordado.
Pedro muitas vezes reclamava dessa atitude. Renan pensava demais.
- É agora Renan! Não ouviu o som da flauta?
Pedro e Renan estavam dentro de uma tenda. O tutor James tocava o famoso "abaporu". Uma espécie de flauta que possibilitava reproduzir diversos sons e se usado na frequência certa desmaiar o inimigo.
- Eu já estava indo Pedro!
Ele olhou para o amigo. Pedro estava impaciente. Eles tinham pouco tempo para se apresentar para a formação. Poderiam pagar várias flexões se chegassem atrasado.
Mas Renan não ligava para aquilo. Ele estava muito preocupado com sonho que teve na noite anterior. Estava pensando se o sonho que teve era fruto do seu medo ou se ele podia ser real. Ele tinha muito medo de entrar em um campo de batalha. Algo normal para um jovem recruta.
Porém, muitos diriam que era um frangote. Um rapaz que não estava preparado para se tornar um homem de verdade.
Foi isso que seu pai lhe disse uma vez. Que ele precisava aprender a superar seus medos e agir rapidamente, friamente, sem pensar muito.
"Pensar demais antes de agir pode ser um defeito Renan. Você ainda vai aprender isso na marra, meu filho."
Era o que seu pai sempre lhe dizia.
"Talvez o meu pai tenha razão. Mas pra quê se sacrificar em uma guerra sem sentido? Tudo poderia ter sido resolvido com acordos, tratados... Pra quê que existe diplomacia?"
- É Renan! O seu mal é que você pensa demais. Sempre se questionando sobre tudo. Cara, se eu pagar flexão por sua causa você vai ver.
Ele finalmente levantou, mas não respondeu Pedro. Os dois saíram da tenda. Iriam participar da última etapa do treinamento: teriam que sobreviver na floresta do Desafio.
Todos os recrutas já se encontravam em posição. Eles foram os últimos a chegar. O tutor James os olhava com uma cara de desprezo. Para a surpresa dos dois, não mandou que pagassem flexões.
"É sério que o Império Vermelho e a Inglaterra querem esses dois frangotes? Não sabem nem correr, vão servir pra quê? Mesmo se eles tiverem habilidades sobrenaturais, não vão servir pra muita coisa em campo de batalha.
Bem, a finalidade não importa. Eu só tenho que continuar com o meu papel. Enganar a todos como sempre enganei. Manipular como sempre manipulei. É hora do show. Hora de dar uma de tutor!"
- 30 segundos! 30 segundos para a formação! Vocês sabem o que acontece nesse tempo em uma guerra? Você morre! Querem que eu seja franco com vocês? Vocês são os piores, talvez eu deva liberá-los e deixá-los envergonhar seus pais, seus familiares e sua cidade. É isso que vocês querem?
"Sim, sim. Eu quero ir embora dessa merda!"
- Vocês estão surdos? Quando eu faço uma pergunta vocês tem que responder! É isso o que vocês querem?
- Não senhor!- todos respondem em uníssono
- Se querem proteger Arcádia terão de mostrar dignidade para tal. A floresta é a última etapa e se sobreviverem serão dignos de lutarem por todos nós.
"Quem sabe se eles sobreviverem poderão um dia usar o uniforme azul marinho dos altos escalões e deixar de usar esses uniformes verdes? Pena que eles não vão sobreviver. Tudo há de acontecer como planejado."
Como James podia ser tão desesperançoso com os seus recrutas? Seriam eles realmente péssimos?
A geografia estava a favor deles. Afinal, Arcádia era uma cidade no meio da floresta e ao mesmo tempo com um porto para o grandioso rio Maracanã. As tropas inimigas vinham comumente pelo rio tentando atacar a cidade. Mas até agora não tinham conseguido êxito, mesmo em número maior, devido às constantes emboscadas e outras táticas de guerrilha promovidas pelo exército.
A guerra já durava mais de 6 meses e não parecia que estava perto de chegar ao fim. Mas James sabia o que os aguardava. Em breve o Império Vermelho invadiria a cidade.
Sabia que o Império Fluminense não suportaria continuar com a guerra. O Imperador corria o risco de sofrer um golpe de Estado no meio do processo.
Embora os dois governos tivessem suas desavenças. A população Arcadiana ainda não entendia o motivo real da guerra.
O Imperador no momento era um jovem de 20 anos, chamado Pedro de Sá. E apesar de ser pouco experiente, muitos diziam que era um governante dissimulado e muito inteligente. O conhecimento e a cautela eram uns de seus dilemas.
Os cidadãos de Arcádia sempre deixaram os navios imperiais atravessarem o grandioso rio sem menores problemas e muitas das vezes até oferecendo ajuda e mantimentos por preços baixos. Isso fazia parte de um acordo feito entre os dois governos.
Talvez a questão abolicionista estivesse falando mais alto. Mas seria apenas isso?
O sonho perturbador que Renan teve de noite o deixou reflexivo sobre este assunto.
Ele parecia tão real. Conseguia lembrar de cada detalhe.
***
- Essa guerra está custando muito caro! Não vale a pena continuar guerreando contra os arcadianos. Isso irá apenas manchar a reputação da monarquia. Não posso seguir com a caçada ao rapaz.
O jovem Imperador estava discutindo com um homem de aproximadamente 50 anos. Seu cabelo era cinza e os olhos castanhos claros. Possuía uma estatura relativamente alta e um olhar confiante e desafiador.
- Não se preocupe! Essa guerra acaba amanhã. Seu exército se mostrou incompetente. Nenhum de seus homens conseguiu adentrar em Arcádia. Depois de amanhã, você estará livre para tomar suas próprias decisões. Mas eu tomaria cuidado. Essa desistência dará mais fôlego aos opositores.
- Obrigado pelos conselhos. Mas eu sei cuidar bem do meu país. Tenha um bom dia, general Truman!
Pedro de Sá falou num tom seco. Não confiava em Truman. Pensou que ele o ajudaria a resolver os seus problemas com o parlamento. O que aconteceu foi o contrário. Tudo piorou.
- Tenha um bom dia também Vossa Excelência e um bom casamento amanhã.
Pedro não respondeu. Deixou que o homem saísse em silêncio. Não iria responder a provocações.
***
Logo depois que Truman saiu, um outro cenário surgiu.
Renan se lembrava de ver um exército gigantesco em um campo aberto com gramíneas. A vegetação se chamava Pampas, pelo que lembrava das suas aulas de geografia do colégio. O líder do exército estava frente a frente com o general Truman.
- Já podemos avançar?
- Sim. Amanhã de manhã comecem a mobilizar suas tropas. Vocês tem total liberdade para anexarem as províncias do Sul. Afinal, muitos concordam com a anexação. Pedro de Sá não tem mais a ajuda do Império Vermelho.
- Meus ouvidos se alegram ao ouvir isso. Sábia escolha o Império ter decidido ficar do nosso lado.
- Espero que essa aliança seja duradoura e que tenhamos a colaboração total da República do Atacama.- respondeu Truman
- E terá!
No final do sonho, eles apertaram as mãos e Truman saiu com várias palmas e urros saudando-o.
Assim que tinha acordado de manhã naquele dia tinha prometido que iria ignorar aquele sonho bizarro. Mas a sua avó sempre lhe dizia que os sonhos podem revelar muitas verdades.
***
- Que comece o teste final!
O instrumento musical tocava novamente em um som agudo e prolongado.
O garoto saiu de seus pensamentos e começou a seguir Pedro e seus companheiros que já estavam mais a frente.
- Vamos Renan! O tempo é curto para atravessar a floresta! - falou Pedro
- Eu sei!
Assim que todos entraram na floresta, James exibiu um enorme sorriso em seu rosto até ser surpreendido pela presença de Hermes.
Ficou intrigado ao ver que o seu pai estava ali. Teve medo de que ele tivesse descoberto algo.
- Pai! A que devo a honra?
O general encarou James. Ele era muito mais alto que seu filho. Possuía 1,95 metros e um corpo musculoso apesar da idade avançada. Após alguns segundos o encarando foi que resolveu falar.
- James, tenho informantes que comprovam uma enorme frota de navios de guerra vindo pelo rio maracanã. E o pior é que a frota não é verde e amarela. Ela é vermelha. O Império Vermelho irá nos atacar.
- Mas o que eles querem? Como Arcádia poderia ameaçar os interesses do Império Vermelho?
- Escute! Você tem que garantir a segurança de Renan e Pedro a qualquer custo. Eu acredito que o Império tenha um propósito para eles.
- Só porque nasceram no Império? Mas ninguém sabe da existência deles ou da sua naturalidade.
- Apenas chame a guardiã e peça que ela garanta a proteção de todos esses recrutas. Mas principalmente os dois. Sem mais!
"Ufa! Eu achei que ele tinha descoberto alguma coisa. Pena que eu vou ter que chamar aquela vaca! Qualquer coisa eu tenho minha arma secreta."
O general Hermes saiu rapidamente. James pegou o seu "abaporu". O som era agudo.
Logo após começar a tocar, algo muito veloz se aproximou pela floresta. Tinha a velocidade de uma onça-pintada, mas James sabia que era Melissa.
- James! O que está acontecendo? Por que está me chamando logo agora?
Espero que tenha um bom motivo para você ter tirado o meu descanso.
A guardiã olhava com raiva para James. Ele colocou as mãos em seu "abaporu" com medo de que ela tivesse se lembrado de algo.
- James! Eu te fiz uma pergunta!
Ela era uma mulher esbelta de cabelo cacheado, longo e preto. Um corpo robusto e olhos castanho escuros. Apesar de ser uma mulher linda, quem a conhecia sabia que não se devia irritá-la nunca.
- Eu...eu...eu preciso que você garanta a proteção dos recrutas, especialmente dois rapazes. Renan e Pedro. Eles correm grande perigo.
- Claro que correm! Eles estão na floresta e se não forem dignos irão morrer. Isso faz parte do processo.
- Não! Você não entende. O Império irá atacar amanhã com uma numerosa esquadra o porto. Estamos em estado de alerta. E por algum motivo eles querem Renan e Pedro. Não sei ao certo o porquê disso. Porém o general Hermes deixou bem claro pra eu lhe dar essa missão. Garanta a segurança dos dois a qualquer custo.
- Eu farei o que for preciso. Diga isso a Hermes.
- Certo!
A guardiã saiu correndo pronta para o combate.
James deu um sorriso quando viu a mulher adentrando na Floresta.
"Tomara que ela morra tentando salvar os dois. Com sorte eu realizarei o meu desejo de presenciar a morte dela."
James sabia muito bem do que o Império Vermelho era capaz. A dinastia Yankee poderia mobilizar diversas tropas, governos e até organizações criminosas para conseguir o que queriam. Os garotos seriam capturados de qualquer forma e de bônus ele se livraria de Melissa de uma vez por todas.
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