Mostra Ecos 6ª edição

By MostraEcos

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A Ecos 6 é uma nova Ecos. Mudar, tentar ir além, buscar o diferente, esta é a única rotina a ser seguida... More

Aviso
Editorial
Daniel na cova dos leões astrológicos
Sombras e relâmpagos
Abalos de final de ano I
Ao clarear dos Holofotes
Corredor da sorte
Fluxo
Noites sem sonhos & Sonhos acordados
Voltando para casa
Abalos de final de ano II
Ucronia
Contato

Trinta e Três

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By MostraEcos


fsaraujo

Conto Cinco

TRINTA E TRÊS

Fabiano dos Santos Araújo


I

Não havia nada que chamasse atenção ali, a não ser se você estivesse preocupado com a bagunça. Era um quarto de um solteiro, não havia nada de incomum em sua aparência. Cada canto tinha os seus defeitos e coisas pra consertar, todos eles eram bem conhecidos por seu morador.

Ele estava no banho e mal sentia a água batendo em seu corpo. Um dos últimos avisos antes que não houvesse mais pressão alguma no chuveiro. Era mais um de seus incômodos diários. Sua mente se voltava para a pilha de exames e laudos médicos sobre o televisor.

O rapaz era bastante econômico, bastava olhar rapidamente o seu quarto e ver a idade e a quantidade de coisas que havia nele para constatar isso. Com a sua situação salarial, não havia outra forma de tratar suas finanças. Da melhor forma que podia, ele vivia sua existência frugal fazendo cortes e economias aqui e ali.

Depois do banho o rapaz se olhou no espelho por algum tempo. Seu cabelo molhado sobre o rosto escorrendo o que restava de água, sua pele, ainda jovem, refletia a luz nos pontos mais molhados. Suas olheiras sempre imutáveis, o fitavam. Seu nariz era bem maior do que ele gostaria. Seus lábios sempre ressecados, sua barba recém feita e a pele vermelha de irritação, por fim olhou em seus olhos escuros, sempre procurando alguma coisa fora do lugar, por algum elemento que não estava no dia anterior e agora poderia estar, ou mesmo o contrário. Buscando de alguma forma encaixar tudo o que via naquele banheiro, naquele quarto, naquela cidade.

Percebeu que estava tempo demais na frente do espelho sem ter feito quase nada para se arrumar. Ainda era cedo e se ele quisesse ficar parado na frente do espelho um pouco mais não faria diferença, mas ainda assim seria tempo demais desperdiçado com aquilo...

Vestiu-se e foi saindo, pousando os olhos na pilha de exames antes de tocar na maçaneta da porta. Isso fez uma das frases de seus médicos ressoar em sua mente:

Rapaz, você tem a saúde de um cavalo! Não tem absolutamente nada de errado com você. Seu quadro é invejável.

Saúde de cavalo, saúde de cavalo? – ele repetia mentalmente – E isso agora é termo médico? Saúde invejável? Só ele pra ter inveja de um cavalo... Por isso que a saúde nacional está dessa forma...

Ainda faltava muito tempo para o horário do seu ônibus, mas como estava sem fome, não tinha o que fazer com o tempo que usaria para preparar alguma coisa pra comer. Com esse tempo a mais iria caminhar até chegar a hora de pegar o seu ônibus, não queria chegar tão cedo assim no trabalho. E a caminhada lhe faria bem.

Sua mente estava insistindo nos mesmos pensamentos sobre os exames a todo momento, mas ele não queria focar nisso, era desanimador demais. Sempre que isso ocorria, apenas uma coisa o ajudava a desviar estes pensamentos, repetir mentalmente esta frase:

Se os médicos, que são entendidos em tudo isso, dizem que não tenho coisa alguma, não deve ser algo tão importante assim...

Ia repetindo isso até que estes pensamentos fossem perdendo o foco e deixassem de atormentá-lo. Mas se tinha uma coisa que ele sabia por experiência própria era que se uma obsessão não tratada perde sua força, outra sempre toma o seu lugar.

O dia já havia começado há algum tempo para ele, mas ainda não tinha circulado em sua mente nenhum dos pensamentos arroz com feijão que ele sempre tinha: Sua lamentação constante motivada por se sentir deslocado do mundo o tempo todo.

Não importa onde estivesse ou o que fizesse sempre se sentia deslocado e fora do grupo. Enquanto caminhava agia da mesma forma: olhava rapidamente para os seus sapatos tocando no chão a cada passada, para suas mãos, tanto nas palmas quanto nas suas costas, como se elas não fossem suas e se aparecesse o seu reflexo em algum lugar enquanto caminhava, ele o olhava fixamente, arrumava sua postura, por mais ereta e elegante que estivesse e discretamente tentava andar enquanto se observava.

A visão de si mesmo o fascinava e causava repulsa simultaneamente. E da mesma forma que fazia em frente ao espelho, continuava a busca por alguma coisa, sinal ou padrão que estivesse fora do lugar, que fosse incomum, que não estava ali na última olhada.

Nunca viu nada diferente, mas ele sempre sentia como se visse. Sempre sentia que era um forasteiro em uma terra que não o queria.

E seu trabalho, sua situação financeira e o lugar onde morava, apenas contribuíam de forma negativa com tudo isso.


II

No horário do almoço pegou sua refeição e escolheu uma mesa vazia para se sentar. Ele ainda não sentia fome alguma e sua vontade de dar eventuais explicações sobre isso era ainda menor. Para poupar um grande esforço seu, seria melhor ficar afastado dos outros. Bem devagar tentaria comer alguma coisa no horário que tinha.

Hoje já completava três dias seguidos sem sentir fome alguma. Em nenhum deles se alimentou e se sentia muito bem com isso. Antes de ir aos médicos era normal, para ele, ficar um ou dois dias por semana sem fome e sem comer, mas nenhuma vez foram dias consecutivos.

Em suas muitas visitas aos médicos contou esta situação, ouviu o que tinham a lhe dizer, fez os exames que cada um pediu, e sua falta de apetite pareceu ser ignorada, assim como a falta de sensibilidade que às vezes sentia em todo o corpo. Algumas vezes ele nem sentia que estava caminhando ou o tecido se suas roupas sobre sua pele. Em outras vezes estava perfeitamente normal.

Ao seu redor via que todos comiam com aparente satisfação, alguns conversavam com os colegas enquanto o alimento ia sumindo de seus pratos. Enquanto isso uma luta era travada para que conseguisse empurrar uma garfada em sua boca, cada uma mais espaçada da próxima.

Não sentia inveja deles, na verdade, nunca sentiu inveja de ninguém até onde conseguia se lembrar. Mas mesmo sem os invejar, se entristecia com o que via. Aquele horário do dia era especial, um momento para estar junto com outras pessoas, trocando ideias e compartilhando alguma coisa.

E ele estava sozinho em sua mesa observando os outros. Sentia-se sozinho pela obviedade de estar sem ninguém próximo de si. Sentia-se sozinho por não ter contato com nenhum deles e sentia-se ainda mais só por ser o único que não estava conseguindo participar da refeição. Forçar a comida goela abaixo não se pode considerar uma refeição.

Há uns meses trocaram a empresa que cuidava da alimentação, mas para ele não fez qualquer diferença. Não importava o que colocasse em sua boca, sempre parecia isopor ao molho de água. Sempre sem sabor e frio. Hoje ele sentia um leve amargor na boca e infelizmente era causado pela situação e não pelo que estava em seu prato.

Qual a possibilidade de todos os outros funcionários estarem se refestelando com seus pratos, especialmente agora que todos se calaram e dedicavam toda atenção a eles, enquanto ele estivesse lutando para empurrar algumas garfadas pra dentro de si? E ainda não ter nada de errado consigo? Isso o agredia e reforçava o sentimento de que os profissionais que procurou eram incompetentes.

Será que todos no mundo estavam errados e somente ele estava certo? Quais as chances disso acontecer? Mais do que nunca se sentiu deslocado do grupo.

Entre uma garfada e outra o tempo foi passando e cada vez mais ele percebeu que estava perdendo o seu tempo. Logo, perdeu também a paciência, quando sua boca já não conseguia mais sequer sentir o alimento sendo mastigado. Sem sabor, sem textura e dormente era uma combinação forte demais para que suportasse.

Empurrou a bandeja, respirou fundo e ficou de cabeça baixa pensando um instante. Todas as dificuldades do seu dia a dia foram passando pela sua mente e ele se lembrou de duas coisas, primeiro que já havia passado da hora de voltar pra sua sala, seu projeto estava parado o esperando, e que não havia como descer mais fundo do que ele já estava. Não conseguia conceber uma forma de ser mais desprezível e detestável do que isso. Voltaria ao seu trabalho e ao menos assim calaria todo esse tormento em sua mente.

Levantou o rosto e olhou todos ainda comendo e lhe ocorreu uma coisa: A sirene ainda não havia tocado. Mesmo já tendo passado mais de uma hora do final do almoço.

Ele sabia que estava atrasado, mas os outros também estavam e este não era o problema. Por que todos estavam comendo tão tranquilos mesmo estando tão atrasados? Alguém já deveria ter notado e avisado aos outros, mas até aquele momento estavam todos quietos.

Levantou-se para retornar a sua sala, também o fez para espionar o que comiam com tanta devoção. Era apenas uma curiosidade inofensiva.

Estava a não mais que dez passos da mesa mais próxima e ainda não conseguia ver direito os seus pratos. Eles estavam muito juntos e o movimento dos seus braços atrapalhava a visão nas poucas brechas que surgiam.

Por muitas vezes em sua vida ele se sentira deslocado e invisível, desta vez não se sentiu diferente. Estava invisível e desta vez não se importava com isso, era quase um desejo sendo realizado. Poderia ver o que queria e não seria incomodado.

Parou ao lado da mesa e ninguém ainda o notava, o fez por ter ficado imóvel com que não conseguia ver. Os talheres deles ainda estavam lá tinindo a cada batida nos pratos, mas nem os pratos e nem as bandejas estavam sobre as mesas.

Seus olhos passearam por toda extensão da mesa e não havia um único prato ou bandeja. Nas mesas adiante, a mesma situação se repetia.

Na sua frente estavam homens e mulheres tão reais e vivos quanto ele mesmo. Os via na sua frente, não precisava de prova maior do que esta. Não importava se o estavam ignorando ou o motivo para isso. Se isso fosse um monumental embuste, qual era o motivo? E como todos eles suportaram ficar repetindo o mesmo movimento por tanto tempo?

Novamente no controle das suas pernas continuou caminhando e nas próximas mesas a mesma cena foi se repetindo exatamente da mesma forma. Mais ao fundo o ambiente parecia estranho, sua aparência era levemente achatada e chapada, ele tinha dificuldade de identificar o que via. Sentia-se mais próximo de uma pintura no fundo de um estúdio de TV do que da saída do refeitório.

Percebeu que as pessoas sentadas às mesas pareciam cada vez mais finas, não mais magras, pareciam literalmente achatadas e cada vez mais parecidas umas com as outras.

Mais próximo da saída as pessoas ficavam menos nítidas, seus corpos foram se transformando em pontos desfocados, estavam tão finos que mesmo uma folha de papel seria mais espessa comparada a eles.

As mesas do fundo estavam artificialmente cheias de telas com o formato de pessoas que trocavam a combinação de seus pontos para que de longe criassem a ilusão de movimento.

Ainda se aproveitando de sua invisibilidade, se aproximou de um deles e levou a mão para tocá-lo, mas não conseguiu. Sua mão atravessou a tela como se ela não estivesse ali.

Repetiu o gesto e sua mão novamente cortou o ar. Caminhou ao lado das outras mesas tentando outra e outra vez e suas mãos continuavam a cortar o ar.

Continuou fazendo o mesmo mesa após mesa até parar de frente à porta que levava ao jardim. Olhou para o refeitório fixando a vista em todos aqueles que ele acabara de passar ao lado.

Todos tinham sido indiferentes com ele, mas isso não era importante. Os primeiros eram pessoas se fazendo de bonecos animados e os últimos o que eram? Bonecos se fazendo de pessoas?

Saiu do refeitório e correu pelo jardim. Só parou na sombra de uma árvore no meio do gramado. Não o seguiram até lá. Perseguição simplesmente não era uma preocupação que ele precisasse ter.

Ele mal sentia as pernas, mas imaginava que elas não estivessem no seu momento de maior firmeza. Deitou-se sob a sombra e ficou imóvel olhando para o céu. Quando se deitou ventava, não era capaz de sentir o vento, mas sabia que soprava ao seu redor pelas folhas que caíam da árvore e eram levadas para longe das raízes.

Todos os seus sentimentos estavam confusos, mas estavam consigo. Naquele momento sentiu-se o homem mais insensível e isolado do mundo. Era capaz de ver tudo e por isso sabia como as coisas ao seu redor funcionam ou deveriam funcionar, mas era incapaz de sentir e interagir com o que estava à sua volta. Mesmo estando a céu aberto sentiu-se em uma redoma ficando cada vez mais estreita.

Como em tantas outras vezes sua reação era apenas mental, sua voz apenas reagia dentro de sua mente:

Eu estou aqui deitado debaixo desta sombra. O vento sopra e derruba as folhas no chão. Eu estou aqui e ao mesmo tempo não estou em lugar algum.

Não existe meio certo, meio verdadeiro ou meio justo. Ou se é certo ou errado, verdadeiro ou falso, injusto ou justo, se está ou não em algum lugar.

Algumas coisas devem ser exclusivistas. E por isso me pergunto como se pode ser meio humano? Se algo fosse meio certo, meio justo ou meio verdadeiro, seria inteiramente errado, injusto ou falso. Como posso eu ser meio humano?

E do que seria feita a outra metade? Uma pessoa vê, sente e interage com o mundo com as informações dos seus sentidos, é humano aquele que não sente?

Não sou apenas uma metade. Sei também que estou mais incompleto do que nunca. Não achei um lugar que eu sirva, em que eu possa me encaixar e fazer o que fui feito pra fazer. Mas se não é aqui, onde seria? Onde é o meu lugar no mundo?

O céu estava lá no mesmo lugar, tão azul quanto sempre foi. As nuvens também estavam da mesma forma, com o mesmo formato e cores de sempre. Estava ventando, mas as nuvens estavam imóveis.

Ele estava debaixo da sombra de uma árvore, mas em lugar algum do céu encontrara o sol.

Muitas coisas seguram as pessoas nos locais onde estão às vezes são elas mesmas que fazem este papel. Alguns cuidam de outros, e usam isso como desculpa para serem não realizados, infelizes e deslocados como ele também se sentia. Outros, por ter sempre aquela quantia mensal, que não era suficiente para muita coisa, mas cobria as necessidades mais básicas, ficavam parados no tempo.

Necessidades mais básicas. Já fazia três dias que ele não tinha nenhuma. O que o segurava ali? Ainda não sabia o que fazer adiante, sabia apenas que não iria mais voltar ao refeitório. Ele não sabia o que faria adiante, mas sabia que não suportaria tudo aquilo outra vez.

Sentou-se e viu mais adiante uma fonte e próxima a ela outra árvore que lhe fazia sombra. Talvez sua água estivesse mais fria do que a dos banheiros. Seria melhor para lavar o seu rosto enquanto pensava o que fazer. Se ia sentir sua temperatura ou o contato dela na pele de suas mãos e seu rosto não tinha importância alguma. Seria apenas mais uma coisa para o manter afastado do refeitório por mais um tempo, entre tantas desculpas e motivos falsos do dia a dia, o que seria mais um para mantê-lo longe do que tinha que enfrentar? Desejava a mudança, mas não precisava ser agora.

Foi até lá e enquanto caminhava continuava com a cabeça levantada olhando para o céu, ver a claridade do dia e não ter conseguido ver o sol lhe intrigava muito, continuaria procurando até chegar a fonte.

Alguns passos adiante bateu o queixo em alguma coisa, que o fez dar alguns passos para trás. Baixou o rosto e nada havia na sua frente para lhe impedir a passagem. Repetiu os passos na mesma direção, agora olhando para frente e novamente sentiu alguma coisa impedindo sua passagem.

Não parecia ser coercitivo, era mais como se fosse um muro invisível. Levantou as mãos e não conseguiu sentir nada, pois ainda não recuperara o tato, mas havia alguma resistência que impedia que sua mão avançasse no ar. Caminhou para os lados ainda com as mãos sobre a barreira e nada mudou, ainda havia uma parede invisível impedindo sua passagem. E mais adiante a uns oitenta ou cem passos estava a fonte lhe esperando.

Se não fosse possível chegar até a fonte teria que voltar para o refeitório, e isso não era uma boa opção. Talvez se usasse um pouco de força, conseguiria vencer a barreira. Deu vários passos pra trás e correu o mais rápido que conseguia, mas antes de chegar ao local onde achava que deveria estar o muro invisível, sentiu algo lhe repelir na mesma intensidade e força de sua corrida o jogando no ar vários metros para trás, como se a barreira tivesse recuado alguns metros enquanto ele se afastava.

Depois que se viu sendo jogado para trás, viu ao longe a fonte se afastando rapidamente enquanto tudo ia escurecendo e desaparecendo na frente de seus olhos.


III

Num sobressalto ele se levantou, estava tudo silencioso e escuro, moveu rapidamente a sua mão até o interruptor e a luz acendeu, ela machucava um pouco os seus olhos que estavam acostumados com o escuro. Assim que seus olhos se acostumassem, olhou a sua volta e viu o seu quarto.

De frente para a cama estava o seu televisor e sobre ele estava a pilha de exames e laudos médicos. Ao lado estava a cadeira que sempre deixava quando colocava o celular para carregar durante a noite. Se o deixasse mais longe talvez não ouvisse o despertador tocando.

O led do aparelho informava que a carga estava completa, retirou-o da tomada e viu as horas na tela brilhante, passaram poucos minutos das duas da manhã. Ainda haveria umas boas horas de sono.

Foi até a cozinha beber água antes de voltar a dormir. Pegou uma das garrafas na geladeira, destampou-a e bebeu direto do gargalo. Enquanto bebia olhou o topo da geladeira e viu um frasco grande com um líquido escuro, tendo dois ou três dedos a menos e ao lado uma caixa de comprimidos com tarja preta.

Recolocou a garrafa sem tampa na geladeira, mesmo antes de matar a sede, pegou os dois remédios e correu para a pilha de exames levando tudo para a mesa da cozinha.

No topo da pilha havia duas receitas médicas, uma de um clínico geral que receitara o uso daquele frasco de estimulante de apetite, e a outra de uma psiquiatra, que receitara o remédio com tarja preta.

Em sua mente as lembranças começavam a emergir a medida que ficava mais acordado e alerta. Lembrava-se do retorno ao clínico, suas recomendações e do remédio que receitara. Recordava também da última visita à psiquiatra, do remédio que receitara e das suas recomendações de uso:

(...) Fora os efeitos que eu comentei tem mais um, ele é raro, mas eu sempre o comento com os meus pacientes para não serem pegos de surpresa. Há alguns casos de pessoas terem alguns distúrbios durante o sono, insônia ou confusão momentânea ao acordar. Há ainda alguns relatos de pacientes que tiveram sonhos muito vívidos que modificavam seriamente as suas realidades. Caso sinta algum destes sintomas não deixe de entrar em contato ou vir aqui(...).

Ele estava se tratando de sua falta de apetite e por se sentir tão deslocado do mundo, foi receitado um antidepressivo. Tudo estava explicado agora. Em seu sonho a realidade foi completamente misturada com uma fantasia pavorosa. Um lugar onde ele era completamente ignorado. Era maravilhoso saber que o mundo não era daquela forma. Que ele não era mais uma pessoa invisível e que não conseguia sentir qualquer coisa.

Respirando aliviado e com a mente leve, tentou dormir enquanto o celular apitava com algumas notificações de mensagens. Algumas pessoas não precisavam dormir mesmo...


IV

Horas mais tarde em seu trabalho ele fazia uma pausa, já era quase hora do almoço. Ainda não sentia fome, mas faria esta pausa pra descansar um pouco a mente e os olhos, estava a muitas horas seguidas na frente do computador.

Foi saindo e voltou a sua mesa, tomou o seu estimulante de apetite e percebeu que não estava com o seu crachá. Na borda direita ficava a sua foto, na esquerda a logomarca da empresa e abaixo o cargo e seu nome. Mas no local do seu nome havia um número: 015633.

Era o seu número de matrícula funcional, sem o número ele realmente ficava invisível na empresa por não poder acessar os seus projetos. Há algumas semanas começaram a trocar os crachás, mas só hoje o olhou com calma.

Abaixo do número tinha várias linhas escuras, ao invés do nome do funcionário, agora usariam código de barras. Era impessoal, é verdade, mas a única função do crachá era a liberação de algumas portas no prédio. Quantas chaves você conhece que tem o nome do dono escrito?

No refeitório pegou o seu prato e foi até a mesa mais próxima do balcão. Enquanto comia ficou distraído mexendo no seu celular. Estava tão entretido com os apps que só notou que havia terminado o prato quando levou o talher a boca e ele estava limpo. Baixou os olhos até o prato e sorriu aliviado. Realmente tinha sido um sonho.

Ele já se levantava para sair quando olhou ao redor, era impressionante como o refeitório real era parecido com o do sonho. Ao longe ele viu o seu supervisor e foi até ele perguntar uma coisa sobre o projeto que trabalhava.

O supervisor comia silenciosamente enquanto algumas pessoas ao seu redor conversavam. Tentou chamar a atenção dele, mas percebeu que estava sem voz, sentia seu corpo pesado nos últimos dias, talvez fosse uma gripe chegando, e agora estava afônico.

Ele pigarreou o mais alto que pode na tentativa de conseguir falar alguma coisa e isso conseguiu chamar a atenção do supervisor. O homem corpulento virou seu rosto redondo na sua direção esperando uma resposta. Mas ele não foi capaz de nada além de arregalar os olhos e sair correndo e tentando gritar, mas suas cordas vocais não o ajudavam.

O supervisor virou-se para olhá-lo, mas não havia nem olhos, nem sobrancelhas, nem nariz, boca, bigode, rugas ou verrugas na sua face. Estava completamente limpa como se fosse uma esfera com peruca e costeletas grisalhas.

Acima de seu prato estava seu rosto flutuando no ar, mastigando prazerosamente tudo o que o braço levava a boca com o talher. Abaixo do rosto estava a mesa nua outra vez, sem bandeja e sem prato. Todos os outros funcionários passaram a olhá-lo com suas faces também sem rosto.

Sem resposta alguma por parte dele, todos voltaram às posições iniciais e seus rostos novamente se encaixaram nas cabeças, de onde nunca deveriam ter saído.

Agora enquanto corria, ele não era mais invisível como no sonho, todos se viravam e o viam correndo, na verdade, apenas suas cabeças e pescoços se viravam, pois seus rostos estavam ainda flutuando no ar acima de onde deveriam estar os seus pratos.

Lá no fundo do refeitório, nas mesmas mesas e mesmos assentos, ele via cada vez mais perto as telas em formatos de pessoas, que de longe criavam a ilusão de pessoas se alimentando.

Mesmo se quisesse gritar não era capaz. Começou a se perguntar qual foi a última vez que ele havia pronunciado uma palavra. Desde que ele acordara não se lembrava de ter dito coisa alguma, normalmente tudo o que ele precisaria dizer tinha dito mentalmente, ele morava sozinho e falar sem ter ninguém ao lado era estranho demais. Durante a madrugada ele não pronunciou uma única palavra.

E em seu sonho também não havia falado nada. Será que ele tinha a capacidade de falar? É claro que podia falar, estava apenas afônico, repetia ele mentalmente. Se não pudesse falar, como explicar as lembranças de conversas que ele tinha? Como suas recentes visitas aos médicos.

Essas memórias passavam em sua mente, ouvia mentalmente os médicos repetindo os seus diagnósticos, mas não conseguia se lembrar de ter falado coisa alguma para eles, aliás, sequer se lembrava de ter feito as primeiras consultas ou mesmo de ter feito tantos exames para formar a pilha que estava sobre a sua TV.

Não tinha a capacidade de falar, tinha cada vez mais dúvidas se tudo o que se lembrava de ter visto, feito ou acontecido consigo, era mesmo real ou algum tipo de memória fabricada. No seu crachá havia apenas um número que o conectava na sua estação de trabalho. O que não era capaz de provar nada. Exceto por ele mesmo não se lembrar de seu próprio nome. Sempre que pensava nisso os números 015633 surgiam como sendo a resposta à pergunta: Qual é o meu nome?

Agora ele estava próximo à saída para o jardim, a porta era de vidro, bem diferente da que estava em seu sonho. Ao seu lado as telas continuavam a trocar sua combinação de pontos, como se ele nunca tivesse passado por ali.

Há uns dez ou vinte passos da porta ele parou bruscamente. Seu corpo estava novamente perdendo a sensibilidade. E agora lhe ocorria uma dúvida, se o seu remédio tinha mesmo tido algum efeito, pois ele o tomou e começou a comer antes de sentir fome e como estava entretido com os apps do celular, não percebeu o que comia. No sonho ele não tinha nada que fosse capaz de desviar tanto a sua atenção...

Tirou o aparelho do bolso e sua tela brilhava convidativa, quase pedindo para que a desbloqueasse. E quase fez isso, no último instante o jogou na porta de vidro.

No local onde o aparelho bateu ficou uma marca, o que era estranho, pois ele não acreditava que algo tão leve pudesse fazer um estrago tão grande a uma lâmina de vidro tão espessa. Neste ponto exato havia uma marca semelhante a de o impacto de uma marreta ou uma bala em uma parede.

Mas somente neste ponto. Todo o vidro ao redor estava ileso. Mais de perto parecia que o estrago havia sido impresso como um adesivo minimamente realista, especialmente se visto de longe, colocado onde deveria aparecer a marca do impacto.

Quando se aproximava para tocar na porta a sirene marcando o final do horário de almoço tocou, mas foi interrompida por uma voz que dizia:

– ATENÇÃO! E O TEMPO...

No local onde o aparelho bateu ficou uma marca semelhante a de um tiro. Como algo tão leve seria capaz de provocar tanto estrago em uma lâmina tão espessa de vidro?

O estrago se limitava ao ponto de impacto, toda a área ao redor estava ilesa. Mais de perto o estrago parecia ser apenas um adesivo realista pregado ao vidro.

Pouco antes de tocá-lo, a sirene indicando o final do horário de almoço soou, mas logo foi interrompida por uma voz nos auto falantes:

– ATENÇÃO! O TEMPO...


V

– (...) deixou de existir... – disse Beto e depois respirou aliviado, por ter conseguido agir no último segundo.

– Diz aí o que foi, Beto.

– Entra aí cara! O trinta e três deu problema de novo... O que eu faço com essa joça, Tim?

– Trinta e três? trinta e três, trinta e três...

– Tim, eu vou ter que repetir isso toda a vez? Todos os bots dessa seção começam com o número 0156... O 015633 deu problema outra vez.

– Ah... Tá falando disso? Ok. Mas nunca chame eles de bots fora desta sala. Isso vai nos arrumar problemas.

Bot ou simulação, o trinta e três deu erro, e agora?

– Já fez o que eu te falei se isso acontecesse outra vez?

– Tanto como três vezes... Só rodou com algumas modificações que fiz no seu código. E mesmo assim...

– Beto, como o Marcos faz falta, ?

– Eu sei, mas isso é outra coisa que não podemos falar fora daqui. Ele era turrão, mas sabia fazer isso funcionar com cuspe, fita e a energia de uma bateria de carro. Os bots que ele criou têm o gênio difícil que ele tinha.

Simulações, cara... As do Marcos estão entre as mais rápidas e estáveis.

– Não tem uma vez que você não cai na piada... Antes de dar pau, ele conseguiu dar uma adiantada no projeto do cliente, dá uma olhada.

Beto abriu um arquivo e executou um programa no monitor ao seu lado.

– Tá vendo, só? Eu falava desse tipo de coisa! Quanto tempo uma equipe das antigas ia demorar pra fazer uma programação deste nível?

– Nossa equipe rápida e o Marcos era o chefe... Como erámos uns trinta, né? Acho que entre dois e três meses, dependendo da necessidade de grana...

Ambos riram

– Mas sabe quanto tempo ele gastou pra fazer isso sozinho, Tim? Uns vinte e cinco minutos, logo depois que coloquei a simulação pra rodar e ele foi pro escritório programar. Está noventa e dois por cento concluído.

Cacete! Vinte e cinco? É por isso que não podemos abrir mão dessa seção. A seção "melhor" seção prédio faz menos da metade disso e gasta umas trinta e seis horas.

– Mas esquece isso, vamos fazer o que com ele? E se demorar muito sabe que o problema vai se espalhar pra seção inteira...

– Deixa ele congelado por agora, vamos comer alguma coisa e enquanto isso vamos trocando umas ideias. Ainda não sei o fazer. Talvez se ele tiver um pouco mais de consciência... Fora que o trabalho dele vai ser mais rápido.

– Vai fazer ele dar pau mais rápido, você quer dizer. Tim, eu acho que ele estava a um passo de ter plena consciência de si, e fez isso por conta própria...

– Beto, não fala asneira. Você com fome, vamos almoçar pra curar essa sua cabeça demente. – disse Tim rindo com a própria piada.

– Pode rir cara, mas você estava no final junto com o Marcos, foi ele que falou que isso ia acontecer logo.

– Cara isso já tem dez anos... Esfria a cabeça!

– É, vamos comer que eu já to quase desmaiando. O trinta e três. Ele foi um dos melhores que o Marcos fez.

– E um dos últimos também...

Os dois bloquearam o acesso às maquinas e trancaram a sala e saíram rumo ao restaurante do outro lado da rua. A comida servida no prédio em que eles trabalhavam sempre tinha um gosto estranho. Algumas vezes era bem temperada e tinha boa aparência, mas a textura na boca era estranha, não condizia com o que estava em seus pratos, em outros dias quase tudo estava certo, aparência, textura e cheiro, mas parecia que os ingredientes principais eram isopor e água.

**Também disponível no perfil do autor no Wattpad. Confira no link abaixo.

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