AIKA - A Canção dos Cinco (A...

By Lucia_Lemos

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Dragões, uma guerra entre raças mágicas, feiticeiros e demônios causando caos... Parece ser apenas mais uma o... More

Prólogo
Capítulo 2 - Calmaria
Capítulo 3 - Tempestade
Capítulo 4 - Escolhas
Interlúdio ~ Sobre a Maldição Parasita
Capítulo 5 - Consequências ~ Parte 1
Capítulo 5 - Consequências ~ Parte 2
Capítulo 6 - Promessas ~ parte 1
Capítulo 6 - Promessas ~ parte 2
Capítulo 6 - Promessas ~parte 3
Capítulo 7 - Dragões
Capítulo 8 - Ameaças ~ parte 1
Capítulo 8 - Ameaças ~parte 2
Interlúdio - Sobre A Maldição Parasita 2 ~ Um Grito
Capítulo 9 - Semelhanças
Capítulo 10 - Separados
Prêmio Wattys 2016
Aika Especial 2 - Quando Nasceu A Amizade
Um Novo Começo

Capítulo 1 - A Sonhadora

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By Lucia_Lemos

Fechou os olhos.

Um sinal. O burburinho da multidão foi se esvaindo, deixando o entorno do palco banhado no mais puro silêncio. Suas vestes escuras desciam até seus joelhos e expunham seus ombros e costas. Ousava também exibir parte do peito magro, do qual pendia um medalhão com uma fênix vermelha entalhada. Apertou seus olhos fechados, sentindo o frio na barriga, o nó na garganta e as pernas bambas. Mas quando a música começasse, ela sabia que não poderia mais ser Aika. Ela se tornaria Kurikara!

O bater de um tambor japonês. E depois outro e mais outro, seguido de um canto lírico e outros instrumentos orientais. A jovem abriu os braços como num convite e, ainda com os olhos fechados, começou a subir e descer as mãos como se regesse aquela canção de introdução. Como se regesse o balançar de chamas. Quando ouviu o último toque do tambor, Aika abriu suas asas e voou.

Desperte, coração de fogo! Desperto o indomável!

O filho de dois mundos, coração de Suzaku!

A plateia foi ao delírio! No ritmo de uma trilha sonora poderosa e orquestral entoada por vozes angelicais, Aika abriu seu par de asas de fênix e executou uma série de golpes, giros, chutes e socos, uma dança que escondia uma sequência de artes marciais. Assim que a música atingiu seu ápice ao solo de vozes que mais pareciam sair de túmulos, ela abriu seus olhos e, diante dos vários rostos, desembainhou uma Katana de lâmina vermelha da cintura e girou-a. Em suas mãos haviam fitas vermelhas presas, simulando chamas. Quase todos puderam ouvir uma voz que nem lhe parecia a sua:

– VENHA, PÁSSARO DE FOGO!!!

As fitas voaram e a plateia gritou em palmas. Enquanto Aika, assumindo uma grande destreza em não pisar nas fitas presas a ela e sua espada, executou mais movimentos capazes de matar se aquela espada tivesse fio.

Pois ali não havia mais Aika e sim Kurikara: o herói mais famoso de animes e mangás da atualidade. Protagonista de sua própria série anime/mangá, Suzaku no Shounen Kurikara. O Guardião de um mundo mágico e em caos, incumbido da missão de protegê-lo com seus poderes e habilidades, porém correndo o perigo de morrer pelas mãos de uma terrível maldição. E para um verdadeiro cosplayer não basta apenas uma boa fantasia. Você tem que ser o personagem. Você tem que olhar como ele, respirar como ele, se mover como ele. Naquele palco, o público não via mais a jovem Aika. O público via apenas o Guardião de Suzaku treinando seus golpes.

Quando a música cessou, as vozes sumiram como se retornassem aos mortos. Aika retornou à posição inicial e fez uma reverência. Agora, ela era novamente Aika, cujo peito subia e descia buscando fôlego. Ela sorriu e reverenciou os aplausos e gritos discretos – digo discretos, pois se fosse no Brasil, onde uma vez se apresentou como outro personagem, a multidão pularia, gritaria, assoviaria... ainda mais por ser uma garota. Mas os japoneses eram mais discretos que os brasileiros e isso, de certa forma, contribuía para sua concentração. Elogiada pelo animado apresentador (também vestido de Kurikara, embora com asas muito menos espetaculares que as dela), Aika se retirou em mais uma mesura e se dirigiu para a lateral do palco, onde ela aguardou sua nota junto com seus concorrentes.

Tremia da cabeça aos pés, como se uma corrente elétrica custasse a abandonar seu corpo. Encarou-se num espelho ao seu lado: embaixo da peruca, do símbolo pintado entre os olhos e da base que escondia olheiras pesadas, existia uma jovem mestiça de dezesseis anos. Tinha a pele morena, cor misturada da pele negra de seu pai e o branco de sua mãe. Dela também tinha os olhos puxados, herança de uma japonesa pura. Do pai brasileiro herdou lábios desenhados e carnudos. Sabia também que, quando falasse com alguém, perceberiam o sotaque ainda presente mesmo depois de cinco anos morando no Japão. O sotaque de uma carioca que, por onze anos, pertenceu ao coração do Rio de Janeiro.

Aika interpretava Kurikara, seu herói de mais querido entre tantos personagens, ao qual Aika não apenas se vestia e imitava, como também se inspirava a ser tão forte como ele. Afinal, ele também era mestiço e por isso, ambos carregavam quase os mesmos problemas. Era engraçado ter dezesseis anos e ainda assim pensar como uma criança, almejando ter a força de um herói de mangá...

Olhou sua espada presa à cintura e em seguida, para suas próprias mãos. Receosa, apalpou as costas em busca do local onde havia pintado a marca da Maldição do Escorpião Parasita, temendo que a tinta se apagasse com seu suor. Mas no segundo que a tocou, sentiu-se gelar. Não estava mais cercada de cosplayers ansiosos. Viu uma luz acima de sua cabeça deformada e tremeluzente, as bordas de sua visão iam sendo tomadas de sangue e o ar começou a sumir de sua garganta...

– Vão dar as notas!

Uma concorrente se levantou e despertou Aika do transe, fazendo-a cambalear pelo sobressalto. Disfarçou sua expressão assustada e o calafrio que a tomava, embora ninguém tivesse percebido, já que todos estavam apreensivos. Foi o resultado que tirou-a de sua confusão: quinto lugar! Entre mais de cem concorrentes, ela foi classificada! Não era o prêmio que almejava (o primeiro lugar levaria a coleção blu-ray do anime de Kurikara), mas o vale-compras nas lojas do evento era mais que bem-vindo. Havia perdido pontos na fantasia, o que devia esperar. Não conseguia por nada no mundo usar lentes de contato, logo, não estava com os olhos dourados de Kurikara e sim com os seus, escuros como duas pedras ônix recém-polidas. Mesmo assim, foi tomada de alegria. E isso a distraiu de suas estranhas visões.

Aika caminhou pela convenção solitariamente, observando stands e novidades. Assistiu também a um dos episódios de Suzaku no Shounen Kurikara, que era exibido numa sala, e comprou mais acessórios da série e de outras que acompanhava. Não teve muita paz, pois muitos queriam tirar fotos de seu cosplay e principalmente, de suas asas. Ela posava ora com a espada em punho, ora só com as asas abertas, procurando sempre fazer com que seus olhos transmitissem a mesma obstinação do herói. Alguns se surpreendiam ao se aproximarem dela e constatarem que era uma garota, enquanto todos perguntavam como ela havia feito aquelas asas. Quando Aika respondia que havia pintado pena por pena, sempre arrancava exclamações. Também não acreditaram que ela pintou a marca da maldição sozinha, com a ajuda de dois espelhos e um pincel longo. Era uma atenção divertida, e mesmo com o peso das asas (e da bolsa a qual encheu de mangás, bottons e miniaturas) ela não conseguia se sentir cansada.

Passeou um pouco mais e deu seu contato para muitos, prometendo fazer um tutorial de como fez as asas de Kurikara. Claro, também aproveitou para bater selfies com outros lindos cosplayers. Acabou entrando também em uma grande foto, reunindo todos os cosplayers de Kurikara presentes na convenção. A maioria era de Kurikara, mas haviam algumas moças fantasiadas de Riko e outros rapazes como Iruka. Havia meninas de Kurikara também e dois irmãos que fizeram uma Tsubomi enorme como os dragões de festivais chineses; e Aika se apaixonou por esse em especial. A foto foi tirada de várias câmeras, a maioria precisando de lentes olho-de-peixe para caber todo mundo. E mesmo posando como Kurikara, Aika deixou escapar seu próprio sorriso de alegria.

Isso tudo porque Suzaku no Shounen Kurikara era a saga mais famosa dos últimos três anos, aclamada pela crítica e até premiada. Uma história de ação, suspense, drama e magia. Apesar de ser um mangá para garotos — um Shounen mangá — tinha um grande público feminino que o acompanhava. Havia se destacado entre tantos outros pela sua trama e seus personagens, e de todos os mangás e animes que Aika conhecia — e veja que conhecia muitos — esse em particular havia conseguido alcançar o primeiro lugar em sua lista por vários aspectos. Ela acompanhava tudo sobre ele: sua produção, notícias, entrevistas com sua criadora, e também tentava comprar tudo que pudesse.

Geralmente, quando uma série assim explodia pela fama, as convenções lotavam de cosplayers dos protagonistas, assim como naquele dia. Então, esse número diminuía à medida em que sua popularidade caía. Assim é no mundo dos animes e mangás, muitos heróis iam e vinham, e Aika sabia que logo Kurikara poderia ser apagado por outros. Mesmo sabendo que ano que vem não bateria mais uma foto como aquela, não deixaria de se vestir como ele.

Por último, buscou o stand onde esperava um resultado mais importante.

A principal atividade de Aika não era cosplay e sim, desenho. Ela havia trabalhado por horas em uma pintura (novamente, de Kurikara), na qual misturou aquarela e nanquim, usando um papel artesanalmente envelhecido. Esperando o resultado entre alguns concorrentes, lembrou-se de como os materiais de pintura eram caros no Brasil e do quanto gostava dos materiais japoneses. Esperou apreensiva, pois esse concurso ela gostaria de ganhar, mais do que o cosplay, pois desenhar era o que mais amava fazer. Na verdade, o sonho de Aika era se tornar mangaká: uma criadora e desenhista de suas próprias histórias em mangá. Mas era um sonho tão difícil... a carreira era complicada, o fato de ser mestiça não ajudava e às vezes pensava se realmente desenhava bem. Nunca pôde se especializar com cursos, tinha que aprender tudo sozinha.

Como agora. Esperava mais um resultado... sozinha.

E quando viu uma impressão de sua aquarela ser estendida do outro lado do stand, sentiu seu coração quase pular da boca: havia ganhado o primeiro lugar na categoria não digital. O prêmio era um kit de mangaká, com bicos de pena, nanquim e marcadores especiais. Aika só não chorou porque hoje ela era Kurikara, e Kurikara não chorava.

Ao fim do evento, retirou-se para o banheiro feminino e despiu sua roupa de Kurikara, vestindo em seguida sua "roupa de Aika": saia longa de corte lateral preta com um dragão bordado na base, botas pretas baixas com sparks, camisa e luvas pretas, sendo que a camisa tinha desenhos de asas de Fênix e o nome da série estampado no peito. Ao tirar a peruca, os longos e cheios cabelos negros caíram sobre os ombros, cujas pontas faziam pequenos cachos e reclamavam por terem ficado presos por tanto tempo.

Finalmente, com a pesada mochila e o grande saco das asas nas costas, Aika deu uma última olhada para o centro de convenções e seguiu seu caminho. Era uma viagem longa e solitária até onde morava: trem, ônibus e uma longa caminhada. Já anoitecia no Japão.

Até havia uma pessoa com quem compartilhar tal alegria e era sua melhor amiga, chamada Lis. Esta, professora em duas escolas públicas no Rio de Janeiro, tinha uma rotina pesada, e pela hora Aika sabia que a amiga precisava dormir. Mandou uma mensagem pelo celular contando como havia sido, mas odiava a espera por uma resposta. Na verdade, Aika odiava esperar por qualquer coisa.

Deu sorte de entrar em conduções pouco lotadas. No último ônibus sentou de primeira. Relaxou finalmente os ombros cansados pelo peso das asas e, de repente, adormeceu.

Acima, o céu encoberto de fumaça. Abaixo, campos outrora verdes eram tomados por fogo.

Tossiu e sentiu gosto de sangue. Algo em suas costas começava a gelar seu corpo e perdeu a visão.

Começou a cair. "Vou me chocar contra as árvores...".

Aika despertou de súbito e sufocou um grito. Alguns olharam para ela e, para disfarçar, sacudiu a cabeça, tossindo. Respirou fundo e tentou olhar somente para a grande quantidade de estrelas no céu, que era muito maior do que conseguia ver quando vivia no Rio de Janeiro. A visão foi acalmando-a aos poucos. "Foi só um pesadelo, só um pesadelo..." – repetia.

Todas as estrelas agora brilhavam sobre o mar, o qual começava a ver se aproximando, assim como as montanhas e encostas da cidade em que vivia. Isso porque estava no litoral sul do Japão. Mais precisamente na pequena cidade chamada Namimeido, longe da capital e de seu barulho. Pequena, simples, cercada pela brisa e o cheiro da maré oceânica. Aika suspirou, sempre se encantava com a paisagem daquela cidade, porém, não se sentia feliz em se aproximar dela. Apesar de bela, possuía moradores pouco tolerantes e de mentes mais fechadas. Para uma mestiça, então... nem se fala. Mas lá haviam mangás para comprar, o aluguel era barato e a paisagem era bonita. A escola era razoável e o emprego a ajudava a se manter. Aika então respirou fundo quando se aproximou do ponto em que deveria saltar, sacudindo a cabeça.

Não adiantava nada se lamentar. Afinal, não tinha mais para onde voltar.

Saltou e caminhou junto ao vento que balançouseus fartos cabelos. A cidade não dormia, pois aconteciam os festivais deverão, passando então por adultos e crianças vestidas de kimonos – e que não aviam com bons olhos. Afinal, não estava de kimono, sua pele era morena, seuscabelos eram cheios e rebeldes, tinha mais de 1,60 de altura... e, por último,tinha uma perna de fora e um visual "roqueiro" demais. Como aprendeu comKurikara, ela não deveria dar ouvidos a quem a julgava somente pela aparência,sendo assim, deu de ombros e ignorou os comentários enquanto passava.






Em menos de meia-hora chegou ao pequeno conjunto de apartamentos onde vivia. Saudou seu dono, o gentil senhor Watanabe, que sempre lhe recebia com um sorriso sem preconceitos. Ela, porém, não o sorriu de volta, pois se recordou que esqueceu o dia do vencimento do aluguel... suspirou, odiava dever a qualquer um! Decidiu que no dia seguinte o pagaria sem falta.

Apressou o passo e entrou finalmente em seu recente lar. Recente, pois só estava lá havia um ano. Seu apartamento parecia um corredor no qual quarto e sala eram o mesmo cômodo e, perto da saída, havia uma pequena cozinha e uma porta para o mini banheiro com chuveiro. Não havendo espaço para uma cama, usava um colchonete fino que dobrado se encaixava perfeitamente no armário/guarda-roupa.

Como animes e mangás eram a paixão de Aika, estes pareciam abarrotar seu pequeno apartamento: pôsteres de seus preferidos tomavam as paredes, havia prateleiras com vários volumes encadernados e DVDs, além de algumas action figures e estatuetas de dragões em cores e formas diferentes. E não era por estar no Japão que Aika os acompanhava, era apaixonada por eles ainda no Brasil. Tanto que ainda tinha alguns volumes mais finos em português. O que não estava exposto era guardado em organizadores em seu armário.

Guardou cuidadosamente suas asas no armário e organizou tudo o que comprou. Quando terminou, desejou uma janta quentinha esperando-a e a cama arrumada, mas Aika morava sozinha. Havia aprendido não só com Kurikara, assim como com todos os heróis que amava acompanhar, que se lamentar não levava a nada. Logo, lá estava ela preparando um rápido ramen. O problema era alguns trabalhos de casa que tinha e não havia terminado. Já passava das dez e o cansaço começava a atingi-la. Mesmo assim, sentou-se em sua mesa, afastando teclado e mouse, e abriu seus livros e cadernos.

Aika cursava o segundo grau e os exames antes das férias de verão estavam lhe tirando o couro. O colégio trazia alguns gastos, principalmente com alimentação, já que não era "totalmente" público (ela não pagava mensalidade, contudo, precisava comprar todo material e livros, além de não ter refeitório como nas escolas brasileiras). Como agora tinha que sustentar seus vícios sozinha, como assinaturas de sites de streaming de animes, dois jogos MMORPG e suas coleções, via-se obrigada a trabalhar numa gráfica perto de onde morava.

Era quase uma hora da manhã quando finalmente acabou o que tinha que fazer e estudou o que tinha que estudar. Apesar de ter vivido um dia agradável, não tinha ânimo. Amanhã teria aula... odiava sua rotina, a rotina de ser Aika. Era tão divertido ser Kurikara... Ao se deitar, acabou não dormindo como deveria dormir.

***

Na manhã seguinte, a primeira coisa que Aika fez foi bater três vezes no chão de madeira e respirar fundo para recuperar o fôlego. Havia tido outro pesadelo com Kurikara.

Era curioso, pois Aika normalmente não se lembrava de seus sonhos. No entanto, há cerca de duas semanas vinha tendo uma série de pesadelos, um atrás do outro, em que se via como Kurikara... e sempre terminavam com sua morte.

Considerava esquisito não os pesadelos em si, mas a forma em que se apresentavam: ela não via as cores chapadas do anime ou o preto e branco dos mangás. Ela via pessoas reais, cenários reais, e que não batiam com nada que já tivesse visto.

– Devo estar assim porque está acabando... afinal, é o que dizem... ele já está perto de destruir seu maior inimigo...

Censurou-se, pois isso não poderia atrapalhar sua rotina. Antes mesmo de ir para a escola, foi pagar o senhor Watanabe.

O problema foi que ele a chamou novamente por Akatsuki, seu sobrenome. Um sobrenome muito odiado para Aika...

É o primeiro nome que define uma pessoa! Não o nome de sua família! – pensou, tentando não demonstrar seu desconforto. Talvez estivesse perto "daqueles dias", pois estava tensa demais. Também, teria capítulo novo de Kurikara naquela semana. A apreensão era maior, já que estava em reta final e não havia tido capítulo na semana anterior por conta de um feriado. Assim, Aika seguiu para a escola.

No Japão, os capítulos dos quadrinhos são lançados periodicamente em revistas grossas e com várias outras séries. Só então, depois de um número determinado de capítulos, é que ganham volumes encadernados, os chamados tankōbon. Nesse formato, a impressão e o papel possuíam mais qualidade e resistência, às vezes até com algumas páginas coloridas. No entanto, apesar das publicações japonesas serem até bem acessíveis (bem diferente do preço dos mangás no Brasil), Aika estava acompanhando alguns mangás online devido à falta de espaço.

Até chegar a sexta-feira, ela aguardou ansiosamente pelo lançamento de Suzaku no Shounen ~Kurikara. O otimismo em relação a isso a fazia aturar o duro colégio e o trabalho estressante. O colégio ela até levaria bem, se não fosse por dois problemas: primeiro, ela era a única mestiça. Segundo, ela era considerada uma Otaku. Era só se aproximar do portão que começava a ouvir os comentários...

Antes, assim como a maioria dos brasileiros, Aika acreditava que "Otaku" era apenas uma forma de chamar um fã de animes e mangás – e com o tempo, isso foi absorvido até por outros países. Mas, no Japão, o termo designa uma pessoa obcecada por algo a ponto de não se relacionar com o mundo e só viver por seu vício. Fãs de animes e mangás, sendo otakus ou não, são vistos como vagabundos problemáticos pela grande maioria dos japoneses. E por maior que fosse sua paixão, Aika não conseguia se considerar uma Otaku como os japoneses viam.

No Brasil havia sido pior, tinha que admitir, lá era constantemente discriminada nas escolas em que estudava, quase não teve amigos e seus pais ainda a culpavam por isso. Viu seus mangás e desenhos rasgados por colegas. Foi de excluída a agredida, mesmo que seus professores a defendessem por causa de suas notas. Já em Namimeido não havia professores, diretoria ou conselho tutelar para lhe ajudar, e era mais malvista do que em Tóquio, onde morou por mais tempo. Sempre que procurou ajuda ouvia a mesma coisa: "alise seus cabelos selvagens para se parecer mais com elas", "seja uma ótima aluna", "faça parte de um clube", "esqueça esses animes e mangás"...

Sabe quando Aika faria isso? Nunca.

Ao chegar à sala, sentou-se no lugar de sempre: a última carteira do lado direito encostada à janela (o lugar clássico onde se sentavam a maioria dos protagonistas). Olhou de relance para fora, esperando quem sabe algum caderninho preto perdido, um ovo de dragão entre os arbustos ou um OVNI entres as nuvens, qualquer coisa diferente da sua rotina. Mas o que via eram alunos conversando ao chegarem, árvores verdes e alguns casais. Em sua sala, ninguém se aproximava dela. Uma vez ou outra ouvia algum insulto: "gaijin", "suja", "hafu", "o que ela ainda faz aqui?", "olha só aquela pose arrogante"... Até verificou sua carteira para ver se não encontrava algum chiclete para ficar preso em sua saia ou algum rabisco repulsivo, e ficou mais aliviada porque dessa vez não havia nada. Como ansiava por algo que mudasse aquilo, alguma aventura... sentia-se estranha por ter dezesseis anos e ainda desejar algo assim.

No entanto, acreditava que se um dia caísse numa aventura, poderia acabar se acovardando. Era incapaz de ver filmes de terror, tinha pavor de altura, não era muito sociável, muito menos bonita ou carismática. Ela podia conseguir imitar bem os movimentos de Kurikara; mas, em educação física, ela era um desastre. Coordenação motora equivalia a zero para ela.

Mas, apesar de sempre tentar pensar positivo, sua semana foi péssima. Não foi bem nas provas de exatas. No clube de artes do qual fazia parte, uma colega derramou "sem querer" o balde de tinta no painel que ela montava para o festival da escola... No trabalho acabou arrumando um barraco com o patrão ao defender sua colega (uma doce moradora da cidade na mesma idade de Aika, chamada Mieko) de cantadas repugnantes dos alunos que levavam trabalhos para xerocar. Sua revolta espantou os "clientes", e por isso tomou uma advertência do patrão. Se não fosse o agradecimento silencioso de Mieko (silencioso, pois ela era justamente sobrinha dele e não queria perder o emprego), Aika teria ignorado o fato de ser um terço do tamanho dele e voado em seu pescoço.

Aquilo era tão repugnante para Aika... Mieko era tímida e delicada, ao contrário dela, e não reagia "por educação". Ainda que as duas não gostassem de nada em comum, a brasileira sentia-se na obrigação de protegê-la. Embora, nem ela mesma conseguia... quantos séculos seriam necessários para fazer a sociedade finalmente respeitar as mulheres?

Também sabia que sua aparência e sotaque às vezes afastavam os clientes. Quem era de seu colégio então, dava meia-volta só de vê-la no balcão. Isso, quando não causavam alguns constrangimentos ou "acidentes" para culparem-na. Odiava depender daquele emprego...

Contudo, teria um novo capítulo de Kurikara no dia seguinte. Ele sempre se mantinha firme, não importava o que acontecesse, não importava se fosse desprezado pelo que era. Ele não mudaria quem era por nada nem ninguém. Por isso, mesmo com os pesadelos estranhos, ela tentou dormir sorrindo para a miniatura dele em sua prateleira.


>>> Glossário:

Suzaku no Shounen Kurikara (朱雀 の 少年 倶利迦羅) – Kurikara, o garoto de Suzaku

Cosplayer - Aquele que pratica cosplay. Cosplay (コスプレ) é uma abreviação das palavras costume (traje, fantasia) e roleplay (brincadeira, interpretação). Consiste em um hobby de fantasiar-se de personagens, seja de quadrinhos, games ou animações.

MMORPG - sigla em inglês para "Massively Multiplayer Online Role-Playing Game". São jogos online para grandes quantidades de usuários, utilizando conceitos, histórias e mecânicas comuns em RPGs.

Action Figures (figuras de ação, em inglês) são bonecos articulados que permitem criar poses variadas e, em alguns casos, trocar expressões e itens das personagens.

Gaijin (外人)Pessoa "de fora", termo japonês normalmente pejorativo a estrangeiros.

Hafu: adaptação de Half, mestiço.


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Trilha sonora: Will de Yuki Kajiura. Essa é a música da Aika *----*

Próximo capítulo: Calmaria

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