Ascensão e queda de Camila Ca...

By bolonguinha

3.3K 335 176

Camila Cabello é uma bruxa que estuda numa escola de magia na Inglaterra. Profecias dizem que ela é a Escolhi... More

1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
22
23
24.
25.
26.
27.
28.
29.
30.

21.

89 11 5
By bolonguinha

Lauren

Gosto de praticar violino na biblioteca. Meus irmãos e irmãs ainda não têm permissão para vir aqui, e há uma parede de vidraças com moldura de chumbo que dá para os jardins.

Gosto de praticar violino, ponto. Sou boa nisso. E distrai todas as partes do cérebro que só atrapalham. Consigo pensar com mais clareza quando estou tocando. Meu avô também tocava. Ele podia lançar feitiços com seu arco.

Esqueci o violino aqui quando parti para a escola – estava meio pirada das ideias –, e agora estou um pouco enferrujada pela falta de prática. Tenho trabalhado numa canção Kishi Bashi que minha madrasta, Clara, chama de "desnecessariamente taciturna".

Lauren... Srta. Pitch.

Deixo o instrumento cair de meu queixo e me viro. Vera está de pé perto da porta.

– Me desculpe por interromper, mas sua amiga está aqui para vê-la.

– Não estou esperando por ninguém.

– É uma amiga da escola. – diz ela. – Ela está usando uniforme.

Eu largo o violino e ajeito minha roupa.

Acho que pode ser Alexa. Ela vem até aqui às vezes. Embora normalmente envie um SMS antes... Não geralmente: sempre. E ela não estaria de uniforme. Ninguém estaria; não em plenas férias.

Acelero o passo, praticamente trotando pela sala de estar e a de jantar, varinha em mãos. Clara está à mesa com seu notebook. Ela ergue o olhar, curiosa. Eu desacelero.

Quando chego ao saguão, Camila Cabello está ali de pé como um cão perdido.

Ou uma vítima de amnésia.

Está usando seu casaco de Watford e botas pesadas de couro, e está coberta de neve e lama. Vera deve ter-lhe dito para ficar sobre o tapete, porque ela está bem no meio de uma poça das duas coisas.

Seu cabelo está uma bagunça e seu rosto está corado; ela parece estar prestes a perder o controle ali mesmo, sem nenhuma provocação.

Paro na entrada em arco para o saguão, recolho minha varinha na manga da blusa e enfio as mãos nos bolsos.

– Cabello.

Ela levanta a cabeça de súbito.

Lauren.

– Estou tentando imaginar o que você está fazendo na minha porta... Rolou por uma ladeira íngreme e aterrissou aqui?

Lauren... – ela diz outra vez. E espero que consiga desembuchar. – Você... você tá usando uma calça jeans.

Eu inclino minha cabeça.

– Estou. E você tá vestindo metade do terreno até aqui.

– Tive que vir caminhando desde a estrada.

– Foi?

– O taxista ficou com medo de descer pela entrada da sua casa. Ele acha que aqui é mal-assombrado.

– E é.

Ela engole em seco.

– Bem. – digo eu, arqueando as sobrancelhas muito claramente. – Gentileza sua passar por aqui...

Cabello solta um rosnado contido e se adianta, saindo do tapete, retornando em seguida.

– Vim falar com você.

Concordo com um meneio.

– Tudo bem.

– É que...

– Tudo bem. – torno a dizer, dessa vez dando uma colher de chá pra ela. Não quero que ela fique tão frustrada a ponto de ir embora. (Não quero que Cabello vá embora nunca.) – Mas você não pode entrar em casa desse jeito. Como conseguiu ficar assim?

– Já falei. Vim andando desde a estrada principal.

– Você poderia ter lançado um feitiço para continuar limpa.

Ela franze a testa para mim. Cabello nunca lança feitiços em si mesma – ou em outra pessoa – se puder evitar. Eu retiro minha varinha do punho da blusa e a aponto para ela. Ela se encolhe, mas não me manda parar. Lanço um Brilhando de limpo! em suas botas. A lama some em um rodopio e eu abro a porta da frente, lançando a bagunça pra fora com minha varinha.

Quando fecho a porta, Cabello está retirando seu casaco ensopado. Ela está usando a calça da escola e o suéter vermelho, e suas pernas e cabelo ainda estão molhados. Torno a erguer a varinha.

– Estou bem. – diz ela, me impedindo.

– Você vai ter que tirar suas botas. – digo. – Elas ainda estão pingando.

Ela se agacha para desamarrá-las, a calça de lã molhada se esticando ridiculamente sobre as coxas...

E então Camila Cabello está de pé em meu saguão, os pés metidos em meias vermelhas.

Todo o sangue que tenho em mim sobe para minhas orelhas e bochechas.

– Venha, Cabello. Vamos... conversar.


Camila

Acompanho Lauren de uma sala gigante para a outra. A casa dela não é um castelo, acho, mas é bem próxima disso.

Passamos por uma sala de jantar que parece algo saído de Downton Abbey, e há uma mulher na mesa, trabalhando em um notebook prateado brilhante.

Ela pigarreia, e então Lauren me apresenta.

– Mãe, você deve se lembrar da minha colega de quarto, Camila Cabello.

Ela já deve ter me reconhecido, mas ainda parece chocada, o que me lembra de me questionar sobre o que diabos estou fazendo aqui. Na Casa dos Pitches, porra.

Algo em que eu deveria ter pensado no trem, ou no táxi, ou até mesmo caminhando os oito quilômetros desde a estrada principal até a porta da frente da casa de Lauren.

Eu nunca penso.

– Cabello. – diz Lauren. – Você já conheceu minha madrasta, Clara Jauregui.

– É um prazer vê-la, Sra. Jauregui. – digo.

Ela ainda parece chocada.

– O prazer é meu, Srta. Cabello. Está aqui em algum assunto oficial?

Não sei o que ela quer dizer; eu nunca tenho assuntos oficiais.

Lauren balança a cabeça, tentando interromper seja lá qual for a expressão no rosto dela.

– Ela só está aqui de visita, mãe. Temos um projeto no qual estamos trabalhando juntas, um projeto de escola. E você não precisa chamá-la assim. Pode chamá-la apenas de Camila.

Você não me chama de Camila. – resmungo.

– Estaremos lá em cima, no meu quarto. – diz Lauren, me ignorando.

Sua madrasta pigarreia.

– Mandarei chamar quando o jantar estiver pronto.

– Obrigada. – diz Lauren, e volta a se mover, me levando para subir uma escadaria tão elegante, que há estátuas construídas nela: mulheres nuas segurando círculos de luz. Não consigo identificar se são luzes elétricas ou mágicas, mas faz sentido ter iluminação embutida em sua escadaria quando tudo mais em sua casa é de madeira escura ou vermelho-escuro, e as janelas ficam tão distantes, que o meio da casa parece o fundo do oceano.

Tento manter o passo com ela. Ainda não consigo acreditar que ela esteja usando jeans. Acho que ela não usaria o uniforme fora da escola, mas sempre imaginei Lauren relaxando em casa em vestidos e conjuntos sociais – com, tipo, lenços de seda em volta do pescoço.

Quero dizer... o jeans dela parece realmente caro. Escuro. E justo da cintura até os tornozelos, sem parecer apertado.

Me pergunto por um momento se ela está me levando para uma armadilha. Ela não sabia que eu estava vindo, mas casas como essa não vêm com armadilhas embutidas? Ela provavelmente vai puxar um cordão borlado de preto e me lançar no calabouço, assim que eu terminar de contar o que sei.

Chegamos a um longo corredor, e Lauren abre uma porta alta em arco, levando a um quarto. O dela.

O quarto é outra piada de vampiro: as paredes têm painéis de tecido vermelho, e a cama dela é monstruosamente grande e decorada com gárgulas. (Tem gárgulas. Na cama.)

Ela fecha a porta depois de eu entrar e se senta num baú no pé da cama. Há gárgulas ali também.

– Tudo bem, Cabello. – diz ela. – O que diabos você está fazendo aqui?

– Você me convidou. – digo. Que desculpa esfarrapada. O cúmulo de esfarrapada.

– É por isso que você está aqui? Para o Natal?

– Não. Estou aqui porque tenho algo pra te contar. Mas você me convidou, mesmo.

Ela balança a cabeça como se eu fosse uma idiota.

– Apenas me conte. É sobre minha mãe?

– Eu descobri quem é Nicodemus.

Isso chama sua atenção. Ela torna a se levantar.

Quem?

– Ele é o irmão de Ally.

– Ally, sua namorada?

– Ally, a pastora de cabras.

– Ela não tem um irmão.

– Tem, sim. – digo. – Gêmeo. Ele foi apagado do Livro quando se tornou um vampiro.

Eu juro que o rosto de Lauren fica ainda mais pálido.

– O irmão de Ally foi Transformado? Eles o riscaram do Livro por causa disso?

– Não, ele se juntou aos vampiros por conta própria. Voluntariamente.

– O quê? – Lauren pergunta, com desprezo. – Não é assim que funciona, Cabello.

Eu dou um passo para dentro do espaço dela.

– E como é que funciona, Lauren?

– Você não se junta a eles, porra.

– Esse Nicodemus se juntou. Até tentou convencer Ally a ir com ele.

– Ally. A pastora de cabras. Ela tem um irmão chamado Nicodemus, de quem ninguém ouviu falar...

– Eu te disse. Nós não ouvimos falar sobre ele porque ele foi riscado. É por isso que Ally mora em Watford. Sua mãe deu a ela um emprego, de modo que ela não se juntasse ao irmão. Ambos são praticamente super-heróis, acho, e todos tinham medo de que eles se unissem e virassem supervampiros.

– Ally conhecia minha mãe?

– Sim. Sua mãe deu um emprego a Ally.

Laurem está de pé, como se quisesse socar alguma coisa – ou drená-la até secar.

– Bem, e onde esse Nicodemus está agora? – indaga ela.

– Ally não sabe. Ela não deveria falar com ele. Nem mesmo deveria falar sobre ele.

Lauren solta outro sorrisinho de escárnio, depois me lembra de que ela realmente é uma supervampira, uma supervilã:

– Não sabe, é? Bem – diz ela –, veremos.

Coloco minha mão sobre o ombro dela. Não tenho que me aproximar mais para alcançá-la.

– Não. – digo, firme. – Ally não sabe onde Nicodemus está. Nós não vamos falar com ela de novo.

Lauren engole em seco e lambe o lábio inferior, rosa acinzentado.

– Vou falar com a pastora de cabras se eu achar que devo, Cabello.

– Não se quiser a minha ajuda. – Mantenho minha mão em seu ombro, pois sinto que ela ainda precisa ser contida, mas não posso acreditar que ela está permitindo que eu o faça.

A mão dela voa e se fecha ao redor do meu pulso. (Como se ela tivesse lido minha mente.) (Isso é coisa de vampiro?)

– Ótimo. – diz ela, empurrando meu pulso para baixo. – Então como vamos encontrar Nicodemus?

– Eu não planejei. Vim para cá assim que deixei Ally.

– Bem, o que a Dinah acha?

– Ainda não falei com ela.

– Onde ela está?

– Não sei... eu te disse, não conversei com ela. Vim direto pra cá.

Lauren parece confusa.

– Você veio direto pra cá?

– Você preferiria que eu tivesse esperado para te contar depois das férias?

Ela estreita os olhos e umedece os lábios novamente. Pouso as mãos nos meus quadris, só para ter o que fazer com elas.

– E você? – pergunto. – Fez algum progresso?

Ela desvia o olhar.

– Não. Quero dizer, estive lendo muitos livros sobre vampiros.

Eu consigo me segurar para não soltar "autoajuda?". Em vez disso, pergunto:

– E o que você descobriu?

– Que eles estão todos mortos e são maus e gostam de matar bebês.

– Hmm. – digo. – Alguma menção sobre batatas chips com sal e vinagre?

Lauren come isso na cama quando acha que estou dormindo, depois espana as migalhas para o espaço entre as nossas camas.

Ela me encara, expressão fechada, depois se afasta, indo até sua escrivaninha.

– Ninguém sabe nada sobre os vampiros. – diz ela, mexendo com uma caneta. – Não de verdade. Talvez eu devesse apenas ir lá conversar com eles.

Ouve-se uma batida na porta, e ela se abre de repente.

– Você deveria bater! – Lauren dispara, antes mesmo que a menina pise dentro do quarto. É a irmã dela, acho. Ela ainda é muito nova para Watford. Se parece com a madrasta de Lauren, com cabelos castanhos e bonita, mas não como Lauren e sua mãe – elas foram desenhadas em linhas mais fortes do que isso.

– Eu bati. – retruca ela.

– Bem, você tem que esperar que eu diga "pode entrar".

– Mamãe disse que você tem que descer para o jantar.

– Ótimo. – diz ela.

Ela fica ali.

– Vamos descer logo. Vá embora.

A menina revira os olhos e deixa a porta se fechar. Lauren volta a pensar e mexer com a caneta.

– Bem, é melhor eu voltar. Mande uma mensagem se ouvir mais alguma coisa. Você pode tentar ligar, mas não acho que haja alguém atendendo ao telefone da escola durante as férias.

– O quê? – ela me olha com cara feia.

– Disse que me mande uma mensagem se...

– Você não vai embora agora.

– Eu te disse tudo o que sei.

– Cabello, você veio no último trem, depois caminhou por uma hora. Não comeu durante todo o dia, e seu cabelo ainda está molhado. Você não vai a lugar nenhum hoje.

– Bem, não posso ficar aqui.

– Você ainda não explodiu em chamas.

– Lauren, escute...

Ela me interrompe com um gesto.

– Não.

Lauren

Cabello estava um desastre no jantar.

O que talvez eu tivesse desfrutado, se não estivesse tão desesperada para que ela ficasse.

Tudo em seu prato parecia confundi-la, e ela alternava entre encarar sua comida miseravelmente e devorar tudo à sua frente, pois estava claramente faminta.

Clara se esforçou para fazer com que ela se sentisse confortável, e as crianças apenas a fitavam fixamente. Até elas já tinham ouvido falar da Herdeira do Mago.

Meu pai parece achar que eu tenho algum plano sombrio em ação. (Acho que eu tenho mesmo um plano sombrio, mas desta vez não tem nada a ver com incapacitar Cabello.) Meu pai me puxou de lado após o jantar e perguntou se eu queria que ele chamasse as Famílias para ajudar em algo.

– Não. – respondi. – Por favor, não faça isso. Cabello só está aqui por causa de um projeto da escola.

Meu pai praticamente piscou pra mim.

Pensei em contar para ele. Que minha mãe tinha voltado, procurando por mim. Mas e se ele perguntar por que ela não voltou para ele? E se ele levar o assunto para as Famílias? Eles jamais compreenderiam por que eu estava trabalhando com Cabello e Hansen. E, neste momento, Cabello e Hansen parecem ser as melhores aliadas que eu poderia ter. Completamente confiáveis, sem qualquer senso de autopreservação. Eu já vi esses duas desvendarem conspirações e vencerem monstros diversas vezes.

Cabello ainda está jantando. Clara fica oferecendo mais, por educação, e Cabello continua aceitando.

Eu nunca de fato tinha me sentado à mesa com Cabello. Eu me permito observá-la e me permito desfrutar disso, ao menos por alguns minutos. Fico fazendo isso desde que tudo começou – me dando ao luxo. (Como é mesmo aquele ditado sobre comer a sobremesa primeiro, quando se está no Titanic?)

As maneiras de Cabello à mesa são atrozes – é como assistir a um cão selvagem comendo. Um cão selvagem cujo prato dá vontade de puxar para longe.

Depois do jantar, vamos para a biblioteca, e eu mostro a ela o que descobri a respeito de vampiros. Ela fica se afastando de mim, e eu finjo não reparar. Provavelmente, deveríamos chamar Hansen e ver o que ela acha disso tudo – vou sugerir isso amanhã.

Não há nada em nossa biblioteca a respeito de nenhum Nicodemus. Eu já procurei, mas procuro de novo. Fico na porta e lanço um Pente fino: Nicodemus Petty!. Nenhum dos livros sai voando das prateleiras.

Encontramos, contudo, algumas menções à família Petty, então é isso que lemos. É uma família antiga do East End – uma das grandes –, e, no espaço entre algumas gerações, sempre revelam um prodígio como Ally. Se Cabello não tivesse aparecido, Ally poderia ser a bruxa mais poderosa de nosso mundo – e pensar que ela desperdiça isso tudo em cabras e choramingos.

– Você acha que teria entrado no Registro? – pergunta Cabello. – Quando Nicodemus foi para o outro lado?

– Não sei. – digo. – Talvez não. Eles provavelmente quiseram manter tudo à surdina, e não parece que ele tenha ferido alguém.

– Qual o sentido de se transformar num vampiro – diz Cabello – se você não está planejando ferir ninguém?

– Qual o sentido de se transformar num vampiro? – pergunto.

– Me diz você.

Eu engulo meu mau gênio e então engulo de novo, e continuo olhando para um livro.

Cabello atravessa a sala e se senta à minha frente na mesinha, puxando uma cadeira acolchoada.

– Não. – diz ela. – Estou falando sério. Por que Nicodemus faria isso?

– Está me pedindo para elaborar uma teoria?

Ela assente.

– Para se tornar mais forte. – digo. – Fisicamente.

– Mais forte quanto? – pergunta Cabello.

Eu dou de ombros.

– Você teria que perguntar para ele. Eu não tenho como comparar, porque eu não me lembro de ser normal.

– Que mais? – pergunta ela.

– Para se aprimorar... aprimorar seus sentidos.

– Tipo, para enxergar melhor?

– No escuro. – digo. – E escutar melhor. E sentir cheiros de modo mais aguçado.

– Para viver pra sempre?

Eu balanço a cabeça.

– Não acho. Não acho que funcione assim. Mas ele jamais... ficaria doente.

Cabello baixa as sobrancelhas.

– Mas se é assim, por que todo mundo não vai para o outro lado?

– Porque é a morte. – digo.

– Claramente não é.

– Dizem que a sua alma morre.

– Isso é bobagem. – diz ela.

– Como é que você sabe, Cabello?

Observação.

– Observação. – repito. – Você não pode observar uma alma.

– Pode, sim, ao longo do tempo. – diz ela. – Acho que eu saberia...

– É a morte – digo –, porque você precisa devorar vida para continuar vivo.

– Isso vale para todo mundo. – diz ela. – Isso é comer.

– É morte – digo, recusando-me a elevar minha voz –, porque quando você está com fome, não consegue parar de pensar em comer outras pessoas.

Cabello se recosta. Sua boca está aberta – porque ninguém nunca a ensinou a fechá-la. Ela cutuca o lábio inferior com a língua. Eu penso em lamber sangue daquele lábio.

– É morte – digo, olhando para baixo, para o meu livro –, porque você olha para outras pessoas, pessoas vivas, e elas parecem estar muito longe. Parecem algo diferente. O modo como os pássaros parecem algo diferente. E estão cheios de algo que você não tem. Você pode tirar isso deles, mas ainda assim não vai ser seu. Eles estão cheios e... você está faminta. Você não está viva. Está apenas faminta.

– Você precisa estar viva para estar faminta. – diz Cabello. – Precisa estar viva para mudar.

– Talvez você devesse escrever um livro sobre vampiros. – digo.

– Talvez eu devesse. Aparentemente, sou a maior especialista mundial.

Quando olho para cima, Cabello está me encarando diretamente.

Posso sentir a cruz ao redor do pescoço dela como estática em minhas glândulas salivares, mas ela nunca foi menos desencorajadora. Eu poderia derrubá-la agora mesmo. (Beijá-la? Matá-la? Improvisar?)

– Você deveria perguntar aos seus pais. – diz Cabello.

– Se eu estou viva?

Cacete! Eu não queria dizer isso assim. Ceder, ainda que só um pouquinho.

Cabello fecha a boca. Engole. É ali que eu o morderia, bem na garganta.

Quis dizer que você deveria perguntar se eles se lembram de Nicodemus. Talvez saibam onde ele está.

– Não vou perguntar aos meus pais sobre o único bruxo a fugir para se juntar aos vampiros. – digo. – Você é uma idiota completa?

– Ah, é. – diz ela. – Acho que não tinha pensado sob esse ponto de vista.

– Você não pensou. – eu digo. E então: – Ah. Ah, ah, ah!


Camila

Lauren sobe os degraus correndo de novo, então eu corro atrás dela. Não vimos mais ninguém desde o jantar. Esta casa é tão grande, que poderia absorver uma multidão e ainda parecer vazia.

Estamos agora em uma ala diferente. Outro corredor comprido. Lauren para diante de uma porta e começa a lançar feitiços para desarmar.

– Tão previsivelmente paranoica. – resmunga ela.

– O que estamos fazendo? – pergunto.

– Procurando por Nicodemus.

– Acha que ele pode estar morando aqui?

– Não. – diz ela. – Mas...

A porta se abre e adentramos outro quarto gótico assustador. Esse é como se representasse Gótico ao Longo dos Tempos, porque além das gárgulas há cartazes de astros do rock dos anos 1980 e 1990 usando quilos de delineador preto. E alguém até escreveu Never Mind the Bollocks em tinta spray amarela numa das paredes, arruinando o antigo papel de parede preto e branco.

– De quem é esse quarto? – pergunto.

Lauren se agacha perto de uma estante de livros.

– Da minha tia Fiona.

Eu recuo até a porta.

– O que estamos fazendo aqui?

– Procurando por algo... – um segundo depois, ela puxa um grande livro de scrapbook com "Lembrança da Magia" gravado na frente em dourado. – Arrá! Tenho certeza de que Fiona frequentou a escola com Ally. Eu já a ouvi falar sobre ela. Muito mal, prometo. Mas ela nunca mencionou o irmão de Ally...

Lauren folheia as páginas. Eu me agacho perto dela.

– O que é isso?

– É um livro de lembranças. – diz ela. – Eles costumavam distribui-los em Watford antes que o Mago assumisse. No baile de despedida. Tem fotos de cada ano e historinhas... – ela abre o livro em uma página cheia de fotos. Isso me faz desejar que eu tivesse algo parecido. Não tenho uma foto sequer de mim ou de meus amigos. Ariana tem algumas, acho.

Lauren voltou-se para a parte de trás do livro e está observando uma grande foto da classe, espremendo os olhos.

Debaixo da foto, alguém colou algumas outras.

– Olha. – digo, apontando para a foto de uma garota sentada contra uma árvore: o teixo. Ela tem um cabelo escuro maluco com uma mecha loira, e está sorrindo, nariz franzido e língua entre os dentes. Há um garoto esquelético sentado perto dela, com o braço jogado ao redor de seus ombros. – Ally. – digo. Porque o cabelo loiro e liso é igual. E os malares afiados. Mas jamais vira Ally parecendo tão segura de si, e não consigo imaginá-la sorrindo daquele jeito. Debaixo da foto, alguém escreveu "Eu e Nickels", e no lugar do pingo no i, desenhou um coração.

Fiona! – exclama Lauren, fechando o livro com um estrondo.

Eu o pego dela e abro de novo, ajeitando-o no chão e recostando-me contra a cama. Há algumas páginas para cada ano que Fiona passou na escola – com grandes fotos da classe e páginas brancas nas quais se podiam colocar outras fotos e certificados. Não é difícil encontrar Fiona em cada foto posada com a classe – aquela mecha loira deve ser natural – e então encontrar Ally e Nicodemus, sempre juntos em pé, parecendo quase exatamente iguais, mas completamente diferentes. Ally se parece com Ally, gentil e insegura, em todas as fotos. Nicodemus parece que está prestes a tramar um plano. Mesmo no primeiro ano.

Encontro outra foto de Nicodemus com a tia de Lauren, dessa vez posando em fantasias antiquadas.

– Você sabia que Watford tinha um clube de teatro? – pergunto.

– Watford tinha muita coisa antes do Mago. – Lauren toma o livro de mim e o devolve à prateleira. – Venha.

– Para onde estamos indo?

– Agora? Para a cama. Amanhã? Londres.

Devo estar cansada, porque nenhuma dessas declarações faz sentido para mim.

– Venha. – diz Lauren. – Vou levá-la ao seu quarto.


*****

Meu quarto se revela a coisa mais assustadora até então: há um dragão pintado na passagem em arco na porta, e seu rosto foi encantado para brilhar e seguir você no escuro.

Além disso, tem alguma coisa embaixo da cama.

Não sei o que exatamente, mas a coisa geme, estala e faz as travas da cama chacoalharem. Acabo na porta do quarto de Lauren, dizendo a ela que vou voltar para Watford.

– O quê? – ela está semi adormecida quando vem até a porta. E corada; deve ter saído para caçar depois que fui para a cama. Ou talvez mantenham suprimentos para ela por perto da casa.

– Estou indo embora. – digo. – Aquele quarto é mal-assombrado.

– A casa toda é mal-assombrada, eu te disse.

– Estou indo embora.

– O que é isso, Camila. Você pode dormir no meu sofá. As fúrias não ficam por aqui.

– Por que não?

– Eu as assusto.

– Você me assusta. – resmungo, e ela joga um dos travesseiros na minha cara. (O travesseiro tem o cheiro dela.)

Eu me dou conta, enquanto me acomodo em seu sofá, de que não estou falando sério. Sobre ela me assustar.

Eu costumava falar isso a sério. Normalmente falo.

Mas ela é a coisa mais familiar nesta casa, e eu durmo melhor escutando Lauren respirar do que tenho dormido desde que as férias de inverno começaram.



Fiona

Tudo bem, Natasha, sei que eu não deveria ter contado nada pra ela.

Você não teria contado.

Ela desliza para dentro do meu apartamento procurando encrenca. Sendo uma encrenca a cada maldito momento em que está viva.

– Me fale sobre o Nicodemus. – diz ela, como se já soubesse de tudo o que precisa saber.

Ela tem ciência de que é a minha favorita, esse é o problema. Ela seria, mesmo que você tivesse uma ninhada de filhotes.

– Quem andou te falando sobre o Nicodemus? – pergunto.

Ela se senta em minha mesinha grotesca e começa a tomar meu chá, mergulhando meu último biscoito de lavanda nele.

– Ninguém. – diz ela. Mentirosa. – Só ouvi falar que ele é como eu.

– Um fedelho maquinador?

– Você sabe o que eu quero dizer, Fiona.

– Belo vestido, Laur, onde você vai?

– Dançar.

Ela está vestindo seu melhor vestido. Stella McCartney, se não me engano. Como se estivesse indo buscar seu BAFTA.

Eu me sento diante dela.

– Ele não se parece em nada com você. – digo.

– Você deveria ter me contado. – diz ela. – Que eu não era a única.

– Ele escolheu isso. Ele foi para o outro lado.

– E o que importa se eu escolhi ou não, Fiona? O resultado é o mesmo.

– De modo algum. – digo a ela. – Ele deixou o nosso mundo. Deixou. Disse que iria evoluir. Ele disse que seria mais do que mágico.

"Você é poderoso o bastante agora, Nicky."

"E o que é que dizemos sobre 'bastante', senhorita Pitch?"

Sua gravata da escola enfiada no bolso do casaco. Aquele sorriso frio e cruel.

– Ele nos traiu, Lauren. – eu sinto a raiva antiga, todos os sentimentos antigos, subindo por minha garganta.

– E ele foi riscado. – diz minha sobrinha.

– Porque era um traidor. – digo.

– Porque ele era um vampiro. – diz Lauren, e não posso evitar, aquela palavra ainda me faz encolher.

Não era para ser eu, Natasha. Contando a essa menina como trilhar seu caminho no mundo. Não sou boa nisso. Olha só pra mim. Trinta e sete anos, estalando minhas juntas, vestida num roupão, comendo biscoitos no café da manhã sempre que consigo me levantar... sou uma vergonha.

O que você diria a ela se estivesse aqui?

Não... deixa pra lá. Sei o que você diria – e você estaria errada.

Pelo menos nesse sentido eu fui melhor do que você. Fui fraca o bastante para dar uma chance a sua filha. E olhe só pra ela agora: pode estar morta, mas não está perdida. Ela é sombria como um poço e afiada como uma lâmina, e está cheia da sua magia. Ela é uma fogueira. Ela te deixaria orgulhosa, Tasha.

– Você não vai ser riscada, Lauren. – digo a ela. – É com isso que está preocupada? Ninguém sabe a seu respeito e, ainda que descubram, o que não vai acontecer, eles sabem que não podemos abrir mão de você. As Famílias estão finalmente prontas para contra-atacar o Mago. Está tudo acontecendo.

Ela lambe o lábio inferior e olha pela minha janelinha. O sol ainda está no céu, e sei que isso a incomoda, mesmo que ela não reclame. Solto a cortina, e minha cozinha cai nas sombras.

– Ele ainda está vivo? – pergunta Lauren. – Nicodemus?

– Acho que sim. De certa forma. Nunca ouvi nada que sugerisse o contrário.

– E você teria ouvido?

Há um maço de cigarros na mesa. Eu acendo um com minha varinha e tiro alguns bons tragos, batendo as cinzas num pires.

– Você sabe que as Famílias usam minhas conexões em Londres...

– O que isso significa, Fiona?

– Converso com gente com quem mais ninguém quer papo. Indesejáveis. Não me preocupo em sujar as mãos de vez em quando.

E aí, irmã, ela arqueia uma das sobrancelhas para mim.

Solto um pouco de fumaça.

– Pfff. Não nesse sentido, sua pervertida.

– Então Nicodemus é um indesejável. – conclui ela.

– Não temos permissão para falar sobre ele. É a lei dos bruxos.

– Você me deletaria com tanta facilidade?

– Ah, porra, Laur, você sabe que não. Do que você está falando?

– Não posso evitar certa curiosidade. – ela se inclina em minha direção por cima da mesa. – Ele está vivo? Ele caça? Ele envelheceu? Ele Transformou alguém?

– Nicodemus Petty não tem nenhuma resposta pra você, mocinha. – estou apontando meu cigarro para ela, então o apago antes que eu a incinere por acidente. – Ele é um gângster de merda, um bandidinho de terceira num filme do Guy Ritchie. Pensou que seria o überbruxo, mas acabou atirando dados na sala dos fundos de algum bar de vampiros em Covent Garden. Jogou toda a sua vida no lixo, e feriu todos que o amavam. E não há nada que você possa aprender com ele, Lauren. Além de como ser um vampiro de merda.

A sobrancelha de Lauren continua erguida. Ela bebe o resto do meu chá.

– Certo. – diz ela. – Você deixou claro seu ponto de vista.

– Que bom. Vá pra casa e estude.

– Estou de férias.

– Vá pra casa e descubra como derrubar o Mago.

– Eu te disse. Estou indo dançar.

Olho de novo para o vestido dela e para seus saltos pretos brilhantes.

– Laur. Você encontrou uma garota?

Ela sorri, e é toda feita de encrenca. Nós deveríamos tê-la soltado no Tâmisa dentro de um saco com pedras. Deveríamos tê-la deixado para as fadas.

– Algo assim.

_______

eaê??

Continue Reading

You'll Also Like

1.3K 99 7
Camila e Dinah são criadas pelos deuses para iluminarem o Sol e a Lua, mas Dinah foge para a Terra o tempo todo e um dia leva Camila junto com ela. Q...
803K 48.1K 144
Julia, uma menina que mora na barra acostumada a sempre ter as coisas do bom e do melhor se apaixonada por Ret, dono do morro da rocinha que sempre...
21.9K 1.6K 22
[Concluída] Miami, Flórida - 2004. Lauren Jauregui, uma leitora de 17 anos que passava a hora do intervalo escolar na Livraria pública da sua Escola...
374K 38.3K 45
O que pode dar errado quando você entra em um relacionamento falso com uma pessoa que te odeia? E o que acontece quando uma aranha radioativa te pica...