--Que dia, hein!? Hahahaha!!!--disse Amis tragando outro frasco do remédio negro enquanto Daimon desacelerava por entre as árvores azuis com folhas amarelas
--É.--respondeu Ana o quão seca e friamente lhe era possível fazer
Não houve mais conversa naquele dia, fosse nas horas seguintes, no momento que pararam para montar o acampamento ou nos vinte minutos que passaram comendo as frutas que Amis trouxera, até que por fim:
--As estrelas estão bonitas, não é?--disse, fechando o saco de frutas e repousando o corpo contra cavalo, que já estava mais do que desmaiado
--Não me importo com as estrelas.--respondeu Ana, se deitando sobre o pano que lhe servia de cama
No dia seguinte, não houve conversa durante o café da manhã, muito menos enquanto Daimon, calmamente, percorria a Estrada dos Gigantes:
--Aqui é o caminho para Doram, já ouviu falar de...
--Não.
--Bem...eu... é um lugar....
--Não tenho interesse.
Amis suspirou, Ana, que estava se segurando em suas costas, escondeu a satisfação de irritá-lo, a qual logo devolveu o lugar para a raiva, a frustração e o tédio de ver a mesma árvore copiada e colada de novo, de novo e novamente... até que uma coisa cortou entre as árvores:
--O que é aquilo?--ela disse se apertando contra as costas do Guardião
--Hum?...--fez com que Daimon parasse, levou a mão esquerda a espada e olhou ao redor, mas além das árvores, tudo que avistou foi um passarinho negro, com peito branco e um bico laranja que mais parecia um bumerangue os observando do topo de seu ninho--...Ah! É só um tucaninho...--estalou os dedos com a mão esquerda enquanto que da direita tirou uma fruta de sua sacola--...pspspspsps!
O pássaro olhou com atenção, se levantou do ninho, pendeu o corpo para frente em expectativa, Amis, por sua vez, continuou sacudindo a fruta de um lado para o outro, forçando-o a virar sua cabeça desproporcional de acordo, até que, num movimento súbito, disparou a fruta em pleno ar. A criatura saltou, rasgou a atmosfera, agarrou a fruta com o bico e aterrissou no galho do lado oposto da estrada, de onde ficou os observando enquanto seu bico esmagava a fruta.
Ana já havia visto pássaros enjaulados fugir, voando como flechas vivas pelas ruas da cidade. Já havia visto pássaros treinados voando fazendo truques e respondendo perguntas, mas ela...
--Nunca viu nada assim, né?
--Não...--respondeu com olhos colados na ave
--Eu lembro de quando vi um pela primeira vez...--sacudiu as rédeas e Daimon se pôs a caminhar novamente--...É como se eles não devessem voar não é mesmo?
--A cabeça deles é grande demais! Como é possível!?
--Hahaha.... Eu tinha uma amiga na Universidade de Aram que estudava eles. Eram os animais favoritos dela, Alba, ela estava sempre...
--Em Aram?
--Sim, ela...
--Não estou interessada.
Amis se calou e ela saboreou o momento, mas tão logo as árvores voltaram a se mover uma pergunta lhe ocorreu: "Será que há outros?". Tomando sempre o cuidado para que Amis não percebesse, começou a olhar ao seu redor, procurando por mais tucanos. De fato, ela os encontraria, as vezes arrancando uma das frutinhas amarelas no topo das árvores, ás vezes, em pares, esfregando seus bicos e assim por diante.
Foi também assim que ela começou a prestar atenção nas árvores e notar que o tom de amarelo das folhas não era o mesmo de Hisam, nem o tom de azul ou mesmo a distância entre as árvores. Quilômetro a quilômetro, os troncos se tornavam mais escuros, as folhagens mais esverdeadas, por fim, pequenos arbustos cilíndricos começaram a brotar por entre as árvores.
No dia seguinte, um vento frio tocou seu pescoço e ao longe ela viu uma muralha negra, maior a cada passo:
--São montanhas...--explicou Amis
--Eu... eu sabia!
--Com certeza que sabia.
--E... como vai contorná-las?
--Hahaha...
--Nós... nós não vamos subir LÁ encima, certo?
Para sua surpresa, não seriam necessários ganchos de escalada ou escadas, a trilha era suavemente inclinada e lindamente sinuosa, contornando as gigantescas rochas que preenchiam a mata fechada.
No dia seguinte ouviram o que ela pensou ser um miado, mas na realidade era o grito de uma minúsculo animal do tamanho de um rato, rabo de gato e formato de gente, saltando de uma árvore de tronco vermelho escuro e folhas verdes para outra árvore de tronco vermelho escuro e folhas verdes. Por um segundo ela sentiu uma urgência de perguntar o que era e como se chamava, mas resistiu e observou o bicho desaparecer por entre as árvores.
No quinto dia da viagem, o terreno havia se tornado mais inclinado, mas a estrada ainda estava boa e seguiram com pássaros cantando ao seu redor enquanto as árvores com troncos com cor de argila e folhas verde escuro bailavam ao vento até que atingiram uma clareira:
--Céus!--ela gritou saltando do cavalo e correndo até a beira da trilha
A sua frente não estava uma árvore, um bosque ou uma floresta, mas um oceano. Um oceano de verde e vermelho ora tingido de tons mais claros pela luz do sol ou tons enegrecidos pelas nuvens, as montanhas e morros como ondas congeladas no tempo. Ao longe, um outro oceano, amarelo com alguns tons de azul se expandia ainda mais longe.
Só havia se sentido assim uma vez na vida e não teria se sentido assim de novo se Amis não tivesse a agarrado pelo ombro:
--MOLECA, CUIDADO!--puxou Ana da borda antes que ela derrapasse barranco abaixo--...Tá comendo cola!?
--Eu...--seu rosto estava rubro, sua mente perdida--...desculpe.
--Tudo bem, só... Só não faça de novo, tudo bem? --ela fez que "sim" com a cabeça enquanto encolhia os ombros contra o frio--...Hehe...É lindo não é?...--ela fez que "sim" novamente--....Nunca tinha estado tão alto assim, não é?...É, pode ser um pouco impressionante da primeira...
--Tá, tá, tudo bem...--seguiu em direção ao cavalo batendo o pé
--Uma hora ou outra vai ter que conversar comigo.
Ela parou onde estava, se voltou para ele e ambos se olharam por alguns segundos:
--...Nós vamos trabalhar juntos. E não vai ser um trabalho simples, então... talvez fosse bom nos conhecermos um pouco, não?
--...
--...
--...Tá de sacanagem comigo? Sério? Não, SÉRIO!?1?--puxou a manga e expôs o bracelete--... Você me engana, prende um instrumento de tortura na PORCARIA DO MEU BRAÇO, FAZ MEU GREI DE REFÉM E AGORA QUER FALAR DE TRABALHO EM EQUIPE! HEIN!?--ela lhe deu um soco no peito, mas teve que disfarçar a subsequente dor na mão
--Bem, eu só queria minha parte do trato, se lembra?
--TRATO!? Eu estava na cadeia! Se aproveitou de mim quando eu estava vulne...
--E você se aproveitou da minha oferta.
--E você se aproveitou do perigo que o meu grei estava!
--E você se aproveitou do fato de que eu os libertei.--deu um passo para frente, um sorriso jocoso estampado no rosto--...O que eu não precisava fazer, mas fiz.
--...
--...
--...O que você quer afinal de contas!?
--Aram foi...
--Eu sei! Eu sei! Acha mesmo que um maluco psicopata imortal, liderando um exército de malucos psicopatas imortais, iria conquistar a porcaria da maior cidade do mundo e ninguém ia comentar!? Deuses! Ninguém falava de outra coisa por uma semana! Eu perdi a porcaria do sono por dias! Minha mãe tentou fazer a gente ir para o outro lado do continente! Eu sei que Aram foi conquistada!
--...Então, qual é a dúvida?
Ela o contemplou o silêncio por alguns instantes, frustrada, respirou fundo e olhou o horizonte ao lado um pouco antes de retornar:
--Por que eu? No que você está me metendo? Quem são aqueles loucos pintados de branco? E por que, cargas d'água, eles são imortais!?
Pela primeira vez, Ana viu algo nos olhos do guardião além de um senso de orgulho ou animação, algo que pesou sobre sua mente e puxou seus olhos para o Sol que principiava a se por:
--Daimon, pode deitar, vamos acampar aqui.--o guardião esperou o cavalo obedecer a ordem e então se voltou para a ladra--...Bem... para começar os cavalheiros de branco são o autoproclamado Exército Real Aramita e seu líder, o homem de pele azul é dito cujo autoproclamado "Rei Argom Zelos".
--Tá, mais quem ele é? Eu sei que vocês mataram a família real séculos atrás e ele não é um dos gigantes então como é que ele se declarou rei? E de onde ele tirou os caras de branco?
--Nós...bem...
--...?
--É que...
--É queeee?
--...não sabemos.
--Vocês não sabem?....Vocês...não sabem?....Então ele o que, CARACA!? Se materializou do nada!?
--Nós... temos teorias... e-eu trabalho com a hipótese que...
--Hipótese!? TEORIAS! ME SEQUESTROU POR TEORIAS!?
--NÚMERO 1!!!--ele gritou reforçando com o indicador, erguido alto no céu--.... Eu não te sequestrei! Eu te prestei um serviço e quando você se negou a prestar sua parte do contrato eu tomei precauções...
--VOCÊ ME TORTUROU E PRENDEU UM DISPOSITIVO DE TORTURA NO MEU BRAÇO!
--PRECAU...--respirou fundo, retomou a compostura--...Precauções. Precauções que tomei pois você se negava a cumprir sua parte da barganha.
--AÍ MENTIU PARA MIM!?
--...Sim. Menti para você depois que mentiu para mim.
--ISSO TE DÁ DIREITO DE ME ARRASTAR DA MINHA CASA PARA ESSE FIM DE MUNDO!?
--Você não tinha casa, estava na prisão, de onde te tirei pelo preço de me ajudar. Você rompeu com o contrato, não respeitando nem a mim, meus direitos ou as pessoas que dependem de mim. Que motivo eu teria para respeitar você?
–...
–...
–...VAI TE DANAR!--ela disse se virando para o outro lado e andando em círculos por alguns instantes--...TÁ...OK...TEORIAS!.... E o que mais? De onde ele vem? Por que ele atacou vocês para início de conversa?
--...Eh...
--...Deuses... Não, por favor. Você está brincando comigo, né?
--...
--...AhhhHHHH!!!!!--trouxe as mãos à nuca e xingou--...Mas que...E os caras de branco?
--Eles não estão pintados de branco. Eles realmente são daquele jeito.
--Tá, ótimo, é alguma coisa...E?
--...
--Meus deuses... Meus, benditos, deuses!...--caiu de joelhos, ficou olhando para o chão por um longo período de tempo--...Vocês não sabem quem ele é, por que ele está aqui e como ele... Como isso é possível? Vocês Guardiões não deviam, SEI LÁ!, SABER DESSAS COISAS!?
--...
--Então!? Não vai responder!?
--...Foi uma falha, de fato... Sabemos que foi em algum ponto na...
--UMA FALHA! O QUE VOCÊ QUER QUE EU ACREDITE! QUE ELE APARECEU DO NADA!? PARA QUE VOCÊS SÃO PAGOS AFINAL DE CONTA!?
--Olha aqui! Nós mandamos cartas! Falamos com todos nossos vizinhos! Ninguém sabe quem ele é! Ninguém sabia de onde ele veio! Simplesmente...
--SIMPLESMENTE VOCÊS SÃO UNS INCOMPETENTES! É ISSO!
--Olha, nós....
--OLHA NADA! UM EXÉRCITO TODO APARECE "DO NADA"! DO NADA! E VOCÊ QUER RESPEITO!? E QUER QUE EU TRABALHE COM VOCÊS!?
--...Estamos fazendo nosso melhor, a guarda...
--GUARDA DE BOSTA! VOCÊ ME SEQUESTROU! ME TIROU DA MINHA CASA...
--Eu não...
--E PARA QUE!? VOCÊ NÃO SABE DE NADA! VOCÊ ME TROUXE AQUI PARA MORRER!
--...Por favor, se acalme...
--ME ACALMAR! EU NÃO VOU ME ACALMAR! VOCÊ E O RESTO DOS INCOMPETENTES PERDERAM A CIDADE E AGORA ME ARRASTAM PARA ESSA FURADA! VOCÊS TEM AO MENOS UM PLANO!? A MENOS QUE SEJA QUE NEM O QUE VOCÊ FEZ EM HISAM!? É ISSO QUE VAI FAZER, SEU IMBECIL! VOCÊ É O RESTO DAQUELES IMBECIS METIDOS A HERÓIS VÃO...
Em um movimento, Amis a agarrou pelo pescoço e a ergueu no ar.
Daimon ficou nervoso. A hisamita começou a bater os pés. O aramita continuou congelado, sentindo o calor da garganta dela na palma de suas mãos.
Dez segundos, a mão se abriu, ela caiu ao chão. Tossindo, respirando rápido, então mais devagar, então normalmente, de joelhos e mãos no chão. Quando ela ergueu sua cabeça, o Guardião estava na beira da trilha, olhando o oceano de árvores sob o céu avermelhado, gradativamente mais escuro:
--É! AGORA VAI FICAR AÍ FINGINDO QUE...
--QUE INFERNO!!!!!!!
Ela se calou. Daimon relinchou. O vento ficou mais forte. O chão parecia mais quente.
O aramita se aproximou e aguardou em silêncio ela ficar de pé:
–Ele matou milhares de pessoas! ELE ESCRAVIZOU A SUA CIDADE! ELE MATOU O GREI MARIM!
–Que se dane os Marim!
–E Hisam!?
–Que se dane Hisam!!!
–Como você.... URGHH!!! É a sua cidade! Como você pode...
–Hisam não é uma cidade, é só um monte de gente morando junta!
–...
–... Não me olhe assim! Você esteve lá! E digo mais, você não viu nem a metade! Você não teve que andar de noite sozinho lá! Nunca teve que subornar alguém para beber água limpa. Jurar lealdade eterna a um bando de psicopatas só para PODER TER A PORCARIA DE UM EMPREGO! VOCÊ....VOCÊ... –olhou para o infinito, uma dor no peito, garganta seca–...Aff... Olha... eu não tô nem aí, para o que acontece ou deixa de acontecer com Hisam... eu sou uma ladra e... é para isso que existem os greis. O grei cuida do grei. O grei protege o grei. O grei não abandona o grei... E eu abandonei eles... por que você não me deu escolha.
–...
–...Olha... eu entendo que você e Aram e...e... tudo mais. É sua causa, o grei é a minha e...
--Quer voltar para seu grei?
--...Sim.
--Cumpra sua parte do serviço.
--...Mas...
–O grei protege o grei. A Guarda de Aram protege Aram. É o nosso juramento, nosso propósito, nossa vida... tal como é o seu...e nesse momento, estamos falhando...miseravelmente... e o povo de Aram está pagando por isso.
--...
–Tudo tem um preço, eu estou preparado para pagar o meu.
–...
–...
--...E qual seria minha parte do serviço?
--Depois que chegou na cidade, o "rei" tomou alguns prédios para si, incluindo o Primeiro Castelo... Virou a moradia pessoal dele....--uma dose de ódio–... No início não prestamos muita atenção no assunto, até que um dos nossos informantes nos disse que ele havia feito uma grande encomenda de madeira. No dia seguinte, todas as janelas do prédio estavam tampadas, à exceção de uma, o quarto das antigas princesas, na torre leste, em outras palavras, o quarto mais alto, da torre mais bem protegida.
–...Mas, por que?
--Fumaça. Todo dia, ao meio dia e à meia noite. A janela é aberta, sai fumaça, a janela é fechada. Não sabemos quem, o que ou o por que, mas sabemos onde está...
--Um segredo... Você quer que eu roube um segredo.
–Não achou que eu viria até aqui por uma ladra de arroz, não é? Ou por acaso é mentira que foi você que invadiu nossa embaixada, abriu nosso cofre e roubou seis meses de operações militares em uma noite. Ou aquele estranho relato de uma guerra de duas semanas entre os greis Akelom e Esam devido a um colar de pérolas que desapareceu misteriosamente? Ou que tal o roubo do...
--Bajulação não combina com você.
--Medo também não combina com você.
–...
–Esse é o acordo. Eu salvei sua família, você me ajuda a salvar Aram. Depois que estiver acabado, você terá sua liberdade e quanto ouro puder carregar.
--...
--...
--...eu sou mais forte do que pareço.
--Eu sei.
Ele estendeu a mão, ela o encarou:
--Olha pra mim.
–Eu estou...
–Nos meus olhos...–ele obedeceu–... eu estou confiando em você. Entende o que isso quer dizer?
–Sim.
–Vai me proteger assim como vou proteger você?
–Sim.
–Está preparado para fazer o que for necessário?
–Sempre.
Ela o olhou de cima para baixo, suspirou, abriu o casaco e tirou a espada dele:
–Me devolve is...
Ela fez com a mão que ele esperasse. Levou o indicador da mão direita à ponta da lâmina e a perfurou apenas o suficiente para arrancar uma gota de sangue. Devolveu a arma e com a mão esquerda, arrastou a gota para a palma da mão direita, até que esta estivesse toda coberta por um vago tom rubro e então, e apenas então, estendeu sua mão:
–Suas batalhas serão minhas batalhas. Suas causas serão nossas causas. Seus triunfos serão certezas. Suas derrotas passageiras. Até que minha dívida seja paga ou aurora eterna abrace minha alma, meus serviços estão ao seu dispor. Em nome do Pai Sol, da Mãe Lua e de toda a Criação.--pôs ambas as mãos de volta no seu sobretudo
–Temos um acordo?
–Temos um acordo.
Ambos sorriram levemente.