III. Coração X Mente

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Ela folheava a revista científica sem de fato prestar atenção no conteúdo. Olhou o título "Novas diretrizes em oftalmologia na clínica de pequenos animais" diversas vezes, contudo, apenas isso ficara em sua mente. Íris não conseguia se concentrar no momento que antecedia suas sessões de terapia. Tinha feito cinco no mês de março, após o acidente em fevereiro. Mas a sensação de que estava prestes a enfrentar uma batalha se apossava dela nos quinze minutos de espera. Contudo isso era normal, nem todos conseguiriam lidar sozinhos com os próprios demônios. Íris cruzou e descruzou as pernas. Guardou a revista na bolsa e tentou seguir a melodia da música que saía de uma caixinha de som acima dela.

"Que cafona", pensou a veterinária. A porta do consultório se abriu, e uma senhora enxugando os olhos com um lenço umedecido passou por ela. As duas se encaram, e a mulher mais velha sorriu; Íris retribuiu, mesmo sendo apenas por educação. Dentro da sala, uma moça de blusa branca, saia preta e saltos altos chamou por ela. A veterinária respirou fundo e entrou para travar mais uma guerra contra si mesma.

— Íris, minha flor, como você está? — falou a mulher, abraçando-a.

— Estou bem Lúcia, na medida do possível.

Elas se sentaram em cadeiras de frente uma para a outra. O consultório estava um pouco frio, mas não reclamou pois gostava desse clima. A terapeuta prendeu os longos cabelos alourados em um rabo de cavalo e se serviu de cappuccino. Ofereceu uma xícara à paciente que recusou e agradeceu.

— Me conte, como foi sua semana querida? — perguntou Lúcia, com um bloco de anotações em mãos.

— A mesma coisa de sempre. Trabalhei bastante depois de voltar para a clínica, fiz duas sessões de fisioterapia e me alimentei melhor.

— Muito bem! Fez algo de diferente?

— Não que eu me recorde.

— Conseguiu dirigir?

Íris fincou as unhas no estofado e virou o rosto. Apertou com a ponta dos dedos o espaço entre o nariz e as sobrancelhas e, após um minuto – e muita força de vontade –, ela respondeu.

— Não. Não consigo pegar no carro desde o acidente.

Lúcia escreveu no bloco de notas e pediu para que Íris se deitasse no divã marrom, na lateral da sala. Ela diminuiu as luzes e pediu para que a paciente relaxasse o máximo possível. A veterinária fechou os olhos e esticou braços e pernas. Sentiu a textura do couro falso e o cheiro do perfume doce – que achou enjoativo – de Lúcia. Como já haviam feito esse tipo de técnica antes, a terapeuta pulou explicações, apenas pedindo para Íris verbalizar seus pensamentos, sem vergonha deles.

— Não gosto de me sentir vulnerável, na verdade tenho raiva disso. Enfrentei tanta coisa e não é um acidentezinho que vai me abalar. — expressou-se a paciente.

— Mas abalou, caso contrário você não viria de táxi. — replicou Lúcia, fazendo a outra reclamar — Seja sincera, Íris. Você precisa aceitar seus sentimentos para só então trabalharmos neles.

— Tudo bem — suspirou antes de continuar — Eu estou apavorada. Quer dizer, eu poderia ter morrido, mas "só" tive lesões musculares. É tanta sorte que até tenho medo de ter gastado toda. Além disso, eu tenho lembrado daquela praga. Muito, diga-se de passagem.

— Seu ex-noivo, certo? — Lúcia reviu anotações passadas — Josué?

— Que o diabo não escute senão até ele treme. — encabulou-se, tentando desviar inconscientemente do assunto — Perdão eu só...não consigo entender o que ele fez. Digo, eu não merecia. Sempre me dediquei ao máximo a nós dois, fui paciente com as discussões e dei o braço a torcer tantas vezes que perdi a conta para, no fim de tudo, ele fazer o que fez.

MuralhasWhere stories live. Discover now