Quatro ❦ Outono

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O apartamento em questão ficava logo acima da livraria. Pelo fato do prédio ser uma construção antiga o lugar tinha o triplo do tamanho de onde Fall morava. Não fora sempre o lar de Ben McGuire, mas quando sua esposa adoeceu, precisou se mudar, assim teria tempo para cuidar da livraria e estar sempre próximo a ela se precisasse de ajuda. Por isso a casa que haviam comprado um pouco mais afastada da cidade havia se tornado apenas um adorno imobiliário na vida do senhor.

– Claro. O que você precisa fazer? Posso ir por você se for muito longe.

– Não, não. Só preciso pegar algumas coisas na minha outra casa. Antes do anoitecer já estarei de volta, mas não vou deixar você depois do seu horário.

"Isso não foi desculpa quando trabalhei três horas a mais que meu horário por duas semanas inteiras quando os autores pareciam ter enlouquecido e lançado seus livros ao mesmo tempo", pensou Fall.

– Não se preocupe, Ben, sua loja está segura comigo. – brincou e observou o lugar por um instante.

– Estava muito calada ontem. Como foi o almoço com sua irmã? – ela de fato percebeu que ele não a havia importunado com perguntas, mas então se dera conta do motivo.

– Você realmente se lembra de tudo que te conto, não é? – sorriu e então meneou a cabeça – Foi ótimo, para falar a verdade. Aparentemente minha irmã mais velha vai se casar e ela me quer como madrinha. Divertido, não é?

Ben parecia ler as verdadeiras emoções que rodopiavam a cabeça de Fall. Ao que tudo indicava era mais experiente do que ela na arte de ler pessoas.

– Não sei. É divertido, garota?

– Não muito. – confessou, deixando os ombros caírem – Estou imensamente feliz por Emily, ela merece tudo que está acontecendo, mas... – pressionou os lábios e tentou encontrar as palavras – Não consigo me livrar dessa necessidade mesquinha de criar paralelos entre minha vida e a dela.

Enquanto Fall se perdia em divagações sobre seu próprio caráter, Benjamin se certificou de entender sobre o que se tratava a inquietação. Fall sempre fora expressiva de uma forma diferente quanto aos seus sentimentos. Era reservada no que julgava áreas frágeis, mas sabia que para usufruir de algum contentamento na vida precisava ser sincera e autêntica com seus próprios sentimentos. Assim, para lidar com tal dualidade, aprendeu a ser profunda em todas as coisas que revelava ao mundo, mas escolhia bem tudo que expunha – ao menos era o que pensava. Por vezes sua profundidade podia enganar qualquer que fosse a pessoa, ao pensar que a garota estava revelando cada parte de si, quando na verdade estava apenas revelando de forma sincera os fragmentos que lhe convinham.

Porém, o cabelo grisalho do homem em sua frente o ofertava mais que muitos anos em sua aparência, mas verdadeira sabedoria que nenhum livro onde se encontrava a palavra "mindset" poderia oferecer. A perspicácia da idade unida ao olhar observador em atividade por anos, permitiram ao senhor desvendar algumas das dores de Fall enquanto a via submergir em incertezas sobre si nos últimos meses. "É uma boa garota, muito esforçada" era o que repetia um sorriso gentil, quase paterno, sempre que terminavam uma conversa repleta de risadas e bons conselhos. Assim, com seu jeito desengonçado e muita boa vontade, o senhor ofereceu mais uma de suas certeiras perspectivas.

– Ouça, querida. – a olhou como um avô pronto a dar um sermão em sua neta – Quando temos nosso coração partido, sentimos que tudo no mundo diz respeito a nós mesmos. Se alguém está chorando, achamos ser o motivo. Se alguém está sorrindo, achamos que é fazendo piada de nossa miséria. Mas depois de tanto tempo, aprendi que o melhor remédio para uma dor de coração é aproveitar as coisas como elas realmente são. Sua irmã se casar não é um lembrete de que você e aquele rapaz romperam. É apenas a felicidade dela. E isso não precisa te lembrar da sua própria tristeza. Por Deus, desde essas mentiras que contamos sobre nós são tão importantes assim? – fez uma pausa para tossir – Quando aprendemos a ficar felizes com os que amamos, mesmo quando estamos em pedaços, encontramos a chave para uma genuína emancipação de nossos próprios medos.

Após ouvir cada palavra, Fall lembrou-se da sorte que era ter tardes preenchidas pelas palavras de Benjamin. Ele estava, mais uma vez, certo e sabia que deveria aproveitar o momento de Emily como qualquer irmã faria. Ela então sorriu como resposta e depois de mais algumas palavras trocadas o senhor se despediu. A loja sempre ficava mais silenciosa sem ele o que parecia um tanto atípico visto que era um homem de sessenta e tantos anos – ela não podia lembrar a idade com exatidão por vezes.

***

As horas se passaram como de costume; atender clientes, falar sobre os livros quando a perguntavam e vende-los. Nos momentos de menos movimentos Fall folheava algumas páginas do livro que deixava atrás do balcão e em algum momento Thomas trouxe uma caixa de donuts que proporcionou uma ótima pausa no fim do expediente. Quando todos já haviam ido embora Fall preparou tudo e fechou a loja como combinado.

O elevador a levou até o primeiro andar onde morava Ben. Ela então caminhou pelo corredor até a porta do apartamento e com cuidado se abaixou, mas antes de deixar as chaves embaixo do tapete olhou para a caixa de donuts que carregava embaixo dos braços e encarou a porta. Antes de sua mente a refrear, as mãos já estavam segurando as chaves novamente e segundos depois ela estava dentro do apartamento. Jamais fora de sua índole invadir casas e tampouco tinha curiosidades sobre o lar das pessoas que a cercava, mas sabia que seu chefe adorava donuts com cobertura de limão e guardou um especialmente para ele.

A luz do fim da tarde ensopava quase todos os móveis e espaços da sala de estar que naquele instante tinham uma cor laranja quente. A mobília e decoração faziam jus à personalidade de senhor McGuire, foi o que pensou. A TV podia ser moderna, mas as poltronas beges e o sofá de couro pareciam ter sido conservados por anos. Ela então se apressou para deixar a caixa de donuts em cima da mesa e, assim que seus passos a conduziam à saída, avistou algo que capturou sua total atenção. Eram Ben e Brigitte, muito novos, sorrindo no que parecia ser um parque. Mais ao lado estava uma foto de Brigitte sozinha, e ao olhar com mais cuidado, se deu conta de era em frente à livraria. Um sorriso se formou no rosto de Fall por se lembrar de todas as histórias que senhor McGuire a havia contando sobre a mulher que um dia amou.

A história da livraria "Livros e Limões" era tão preciosa quanto o nome excêntrico e sua própria arquitetura. Antes de ser de Ben Mcguire, fora Brigitte quem idealizou a loja como seu verdadeiro sonho de juventude. Encantada por livros e também pela ideia de liberdade, utilizou o dinheiro que os pais guardaram para sua faculdade e comprou uma pequena loja de roupas que já não dava lucro algum para os donos. Ela recebeu a intimação que mudou a sua vida para sempre quando estava em seu quarto, lendo um livro e comendo sua torta de limão favorita. Os pais, que não ficaram felizes com a decisão da filha, disseram que se desejava tanto fazer suas escolhas de forma independente, então deveria viver em outro lugar. 

Apesar de ter sido expulsa de casa e ter de se mudar as pressas para o apartamento acima da loja sem nem mesmo ter um salário, Brigitte rapidamente provou ser uma exímia empreendedora e fez da Livros e Limões um grande sucesso nos anos setenta. Ela foi uma das mais conhecidas mulheres donas de um negócio na Filadélfia e fazendo aquilo que amava. Foi só quando estava fazendo muitas vendas por dia que conheceu Ben Mcguire, quando ele entrou pela porta da livraria em uma tarde. Anos depois eles estavam casados e com dois filhos. Brigitte viu os filhos crescerem e sua vida florescer antes de ser diagnosticada com um câncer que se espalhou rapidamente por todo seu organismo e em menos de dois anos após o diagnóstico ela faleceu.

Assim, Fall a conheceu apenas por meio das histórias que senhor McGuire a contava, mas naquele momento era como se ela ainda vivesse em cada detalhe do apartamento; nas fotografias, nos livros na estante, nas cortinas de cores vivas e na livraria no fim das escadas. Antes de sair deixou um donut com cobertura de limão em um pequeno prato em cima da mesa da cozinha. Até mesmo as predileções de Ben McGuire pareciam abrigar o amor que ainda nutria por Brigitte. Então, se um donut de limão podia trazer à memória tempos de afeto e plenitude a um gentil senhor que oferecia com generosidade sua essência ao mundo, então uma pequena invasão de privacidade não parecia grande crime naquele momento.


***

Bre aqui! Agora conhecemos a livraria em que a Fall trabalha e alguns novos personagens. Eu amo a "Livros e Limões"  e a história por trás dela e amo o fato da Fall trabalhar nesse lugar super especial da cidade. Me contem o que vocês acharam dos novos personagens e do capítulo <3 Até semana que vem!  Amo vocês sz

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⏰ Last updated: Sep 05, 2020 ⏰

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Quando o Outono ChegarWhere stories live. Discover now