Capítulo 5

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Sonhos eram uma coisa que a Morte nunca conseguiu entender. Por toda a eternidade ela admirou isso nos humanos, essa capacidade de suas mentes de criar uma outra realidade inconscientemente. Com certeza, o cérebro era aquilo que ela mais admirava na composição do corpo humano, aquele pequeno lugar onde toda a sua essência é armazenada.

Naquele dia, além de poder ter experimentado a sensação de adormecer, ela pôde mergulhar em seus próprios sonhos.

Ela acordou feliz, e a cada momento compreendia mais o amor de Victor pela Vida.

Quanto mais os minutos se passavam, menos coragem ela tinha para levar Victor ao outro mundo. A Vida era algo incrível, e de acordo com a Morte, Victor era aquele que mais merecia viver.

Como o prometido, ele a levou para conhecer os irmãos. E a cada cinco passos, Lígia conseguia cumprimentar uma nova pessoa.

- Por que não se candidata a prefeita? - Victor dizia, mas ele não era muito diferente dela.

Era como se todos lá se conhecessem, e apesar do clima ficar um tanto mais tenso conforme subiam na comunidade a Morte se sentia confortável com aquelas pessoas também, era difícil conseguir sentir um coração maldoso por ali. Eles estavam apenas tentando sobreviver.

- Que bom que a gente mora bem no começo do morro, imagina ter que andar até lá em cima! - Lígia disse, arrumando o sapato já que o mesmo começara a fazer calos. - Não aguento mais andar nesse sol.

Essa mudança na temperatura da noite para o dia apenas deixou a Morte ainda mais animada. Mesmo sendo um pouco incômodo, ela adorou a sensação do calor.

- E aí, Vitinho! - ela ouviu a voz de uma criança, que se aproximava cada vez mais deles, com uma bola de futebol em mãos. - Quer vir jogar com a gente?

Victor se abaixou e afagou os cabelos do garotinho com ternura.

- Desculpa. Agora não vai dar, tenho que ir ver a minha mãe. - o respondeu, tristonho.

- Ah... Tudo bem. - o garotinho saiu correndo por onde veio, com uma expressão desapontada e o trio voltou a andar.

Chegaram a uma casa pequena, mas ainda assim era maior que o apartamento onde Victor morava, não estava pintada e os tijolos aparentes não a deixavam chamativa, era simples. Um viralata preto e caramelo latia da porta, mas assim que Victor e Lígia se aproximaram ele correu de um lado para o outro com o rabo abanando extremamente feliz. Ele se aproximou da Morte, cheirando suas pernas e mãos, e a deixou entrar de bom grado.

Assim que adentrou na casa, ela se sentiu leve. Aquele lugar transmitia um conforto indescritível. Victor sorriu ao perceber que ela não se sentia desconfortável, ela sequer aparentava estar envergonhada.

- Mãe? Está em casa? - Victor disse em voz alta, se sentando no sofá enquanto Lígia se sentou no chão para brincar com o cachorro.

A Morte observou bem o lugar, vendo alguns brinquedos espalhados pela sala. Um pequeno garotinho veio correndo até eles apenas de bermuda e com os cachinhos negros bagunçados, a pele morena estava levemente avermelhada nos ombros e nas bochechas.

- Olha, Victor! - ele falou com a voz doce, apontando para a própria boca. - Caiu!

Ela se sentou ao lado de Victor, vendo que no lugar para onde a criança apontava estava faltando um dente.

- Que legal, Biel! Como você tirou? Nesses últimos dias você estava morrendo de medo de tirar ele. - disse risonho, enquando o garotinho fazia um bico zangado.

- Eu caí enquanto brincava de pega-pega com os meninos. - falou simplista, mas era notável um leve tom de irritação em sua voz. Seu queixo estava levemente ralado, ainda continha algumas gotículas de sangue.

Seus olhos miúdos logo se voltaram a Morte, tão expressivos que ela poderia responder suas perguntas sem mesmo que ele a questionasse.

- GABRIEL! - eles ouviram um grito vindo de outro cômodo. Era de uma mulher que se encontrava bem irritada. - SE NÃO JUNTAR ESSES BRINQUEDOS, EU VOU JOGAR TODOS NO LIXO!

A expressão de Gabriel era tão sofrida quanto era engraçada. Victor e a Morte riram baixinho, ele estava bastante encrencado. Logo se apressou a organizar a bagunça que havia feito, e outro garotinho apareceu, começando a ajudá-lo. Era um pouco menor que Gabriel, seus olhos eram claros como o de Victor, e o cabelo estava raspado com alguns desenhos como o de algum jogador de futebol famoso.

- Esse é o Fabinho. - Victor disse a Morte, e a criança veio até ela.

- Qual o seu nome, moça? - ele perguntou com a voz adorável, se esforçando para segurar todos aqueles brinquedos com seus pequenos bracinhos.

A Morte teve que pensar rápido. Devia escolher um entre todos os nomes que os humanos haviam dado a ela, um que não fosse tão óbvio. Mas ela já não queria mais esconder de Victor quem realmente era, mesmo sabendo que tal informação poderia assustá-lo.

É apenas um nome, ela pensou, e por fim escolheu seu favorito.

- Thanatos. - ela disse tentando manter a voz firme, olhando atentamente a expressão de estranhamento no rosto da criança.

- Parece Tainara. - ele disse. - Tainara é mais bonito.

E saiu dali com Gabriel.

Lígia riu não sabendo bem o que dizer, assim como Victor, que se encontrava bastante desconcertado.

- Desculpe. - falou. - Meu irmãozinho ainda não tem filtro. Ele fala exatamente o que pensa.

A Morte sorriu, não havia se ofendido. Na verdade, concordava um pouco com ele.

Ela sentia que poderia ficar ali para sempre, era tão acolhedor. Porém, seu dever pesava sobre seus ombros. Seu lobo estava na porta, não entraria naquela casa sem sua ordem, mas ele se mantinha próximo a ela para lembrá-la que deveriam ir embora o quanto antes.

Muitas almas estão me esperando, não é? Ela questionou a si mesma. Victor pôde perceber que a Morte se encontrava apreensiva.

- Você está bem? - perguntou a ela, vendo que seu olhar era um misto de tristeza e ansiedade.

Ela sorriu mais uma vez, na tentativa de não preocupá-lo, e apenas aproveitar esse momento que logo acabaria. Mas depois de ver tantos sorrisos verdadeiros no rosto dela, Victor soube que aquele era falso.

Querida MorteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora