Capítulo 4

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Após dar a ela o que comer, Victor a colocou na única cama da casa e Lígia se deitou em um pequeno colchão ao lado dela, achando graça ao ver a forma como a estranha garota passeava as mãos pelo cobertor se divertindo com os pelinhos.

- Vou dormir no sofá, se precisar de alguma coisa é só jogar um travesseiro na Lígia que ela acorda. - Victor disse risonho, mas Lígia o encarou com reprovação.

- Se precisar de alguma coisa é só jogar o fogão no Victor que ele acorda. - ela rebateu, e Victor arregalou os olhos colocando uma das mãos sobre o peito.

- Como você é cruel! - disse ele, e se retirou do quarto.

A Morte se divertia com a maciez das cobertas, observando a pouca decoração do pequeno cômodo. Alguns pôsters de esportes, e os móveis eram apenas a cama de solteiro e uma cômoda de seis gavetas. Um lugar tão pequeno, mas ainda assim tão confortável. E não era apenas conforto físico, ela se sentia leve naquele lugar.

- Como você foi parar no meio da rua sem roupa nenhuma? - Lígia questionou, mas não obteve uma resposta, a Morte não sabia o que responder. - Fizeram alguma coisa com você? Te machucaram?

A Morte negou balançando a cabeça. Continha uma expressão tão calma e serena que Lígia não conseguiria desacreditar dela, mas também não conseguia descartar tal possibilidade.

- Você realmente não consegue falar? - a Morte queria se arriscar mais uma vez a dizer algo, mas estava envergonhada por pensar que ela poderia falhar novamente, ou que acabasse por dizer algo que seria incompreensível. Apenas deu de ombros, com o olhar vago. - Então... Você só é tímida? Está com medo?

Lígia a questionava, porém quanto mais olhava para a estranha garota mais Lígia ficava convencida de que ela estava bem, ela sequer aparentava estar sob efeitos de alguma coisa ilícita.

Enquanto Lígia bocejava, a Morte a encarava curiosa, tentando saber mais sobre o misterioso corpo humano. A forma como as linhas do rosto se dobravam em um simples bocejo já era algo que a deixava fascinada e ainda mais admirada com a Vida.

- Bom... Eu vou dormir. Qualquer coisa é só chamar. - Lígia disse, se virando para o lado.

Não demorou muito para que ela adormecesse e começasse a fazer sons estranhos, que faziam a Morte rir.

São criaturas fantásticas, ela pensou. E por mais que tentasse, ainda não se sentia cansada, e sequer queria fechar os olhos.

Ela não queria desperdiçar nenhum instante.

Após vários minutos olhando para o teto e se revirando na cama, tentando encontrar uma posição que a fizesse dormir, ela se levantou e saiu do quarto. Tudo, com exceção de Lígia, estava no completo silêncio. Os postes das ruas iluminavam levemente a sala, e por alguns instantes ela se manteve parada observando Victor que estava encolhido no pequeno sofá, ela sorriu involuntariamente.

Como conseguiu fazer com que eu me sentisse assim?, ela o questionava em sua mente, e tirou seus olhos dele para observar a decoração do apartamento mais uma vez. E enquanto seu olhar passeava pelo cômodo, ela pôde ver seu lobo parado na janela aberta. Ele estava menor, do tamanho de um lobo comum.

A Morte andou até a pequena prateleira e pegou dela o retrato de Victor com sua família. Ainda não posso, ela disse em seus pensamentos e seu lobo choramingou como da última vez. E talvez por ter sido influenciada pelos hábitos de Victor, ela sorriu gentil tentando acalmá-lo.

Em breve vamos levá-lo, ela pensava, mesmo que parte dela desejasse que esse "em breve" jamais chegasse.

Ela colocou o retrato de volta em seu lugar tentando ao máximo não fazer barulho e acabar acordando Victor, mas ele já se encontrava acordado e olhava para a garota com atenção, na tentativa de saber o que ela fazia ali e o que se passava em sua mente, que aparentava ser tão distante.

Ela somente encarava o retrato, aumentando ainda mais a curiosidade de Victor.

- Quer conhecer eles? - ele sugeriu. Imaginava que a garota se assustaria ao ouvir a voz dele, mas mesmo a sala estando tão escura ele podia ver que isso não havia acontecido, ao contrário, ela aparentava estar feliz ao ouví-lo. Victor não sabia bem o que dizer, mas era ótimo em improvisar. - Se quiser... Posso te levar para conhecer eles. Minha mãe é meio durona, mas... Acho que meus irmãos gostariam de você.

Ele não entendia o porquê, mas não sentia que ela era uma pessoa má. Não entendia o motivo repentino de ter dito aquilo, já que apresentar uma desconhecida para a família não era algo que ele costumava fazer. Na verdade, ele nunca havia feito.

Mas o sorriso que apareceu no rosto dela foi um bom motivo para fazê-lo acreditar que aquela havia sido uma ótima ideia.

- Muito bem... Vou te levar lá amanhã. Mas pra isso a gente tem que dormir agora, já está bem tarde. - disse, mas ao contrário dele a garota não aparentava estar cansada. - Não consegue dormir?

A Morte assentiu, ainda com um pequeno sorriso. E Victor se levantou do sofá, se dirigindo a cozinha.

- Leite quente sempre me ajuda a dormir. - ele disse, pegando uma pequena jarra e despejou o líquido em uma caneca de metal para a colocar no fogão, ele sentiu que ficou mais relaxado ao ficar de costas para ela.

Se sentia tenso perto dela? Ele não sabia. Ele não entendia. Mas sabia que mesmo não tendo escutado uma palavra dela, ela era extremamente gentil.

- Prontinho! - exclamou após algum tempo. Colocou o leite em um copo e o entregou para ela, que sorriu de maneira tão bela que Victor se encontrou ainda mais confuso em relação a leve tensão que sentia ao estar próximo a ela.

A Morte sentia que deveria dizer algo, e apesar do medo de não conseguir novamente, ela se esforçou em dizer alguma coisa.

- O... O-obrigada. - sussurrou com a voz rouca e falha, ficando desconcertada ao notar que não havia soado como ela queria.

Era uma voz tão doce, que a pouca tensão que Victor sentia se dissipou sem que ele percebesse.

E mais uma vez, ele não pôde deixar de sorrir para ela.

Querida MorteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora