Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes

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— Que excelente e encantadora esposa que tem, meu caro Traddles! — disse-lhe eu, quando ela saiu a rir.

— Meu caro Copperfield — replicou Traddles — é sem excepção a melhor rapariga do mundo. Se soubesse como ela governa tudo isto, com que exactidão, com que habilidade, com que economia, com que ordem, com que jeito ela guia tudo!

— Em verdade que tem toda a razão para fazer o elogio de sua esposa — disse eu. — O Traddles é um feliz mortal. Creio que os dois nasceram para se comunicarem um ao outro a felicidade que cada qual tem em si.

— É certo que somos os mais felizes do mundo; — prosseguiu Traddles — é uma coisa que não posso negar. Olhe! Quando a vejo levantar ainda com luz acesa para pôr tudo em ordem, ir fazer compras sem nunca se inquietar com o tempo, antes mesmo da chegada dos empregados ao escritório; arranjar-me não sei como os melhores jantarzinhos, com os elementos mais somenos, fazer-me puddings e pasteis, pôr tudo no seu lugar; sempre asseada e cuidadosa da sua pessoa; estar à minha espera à noite, venha eu a que hora vier, sempre de bom humor, sempre pronta a animar-me e tudo isso para me dar gosto; palavra, Copperfield, que às vezes até me custa a acreditar!

Traddles contemplava com ternura até os sapatos que ela lhe aquecera, enfiando-os nos pés e estendendo estes para o fogão com ar de satisfação plena.

— Custa-me a acreditá-lo — repetia. — E se soubesse as distracções que temos! Não são caras, mas são admiráveis. Quando estamos em casa, à noite e fechamos a porta, depois de havermos tirado estas cortinas... feitas por ela... aonde é que poderíamos estar melhor? Quando está bom tempo vamos dar um passeio, as ruas fornecem-nos mil diversões. Pomo-nos a ver as montras dos joalheiros e mostro a Sofia qual é a cobra de olhos de diamante, enroscada em cetim branco, que eu lhe daria, se tivesse posses; e Sofia mostra-me qual é o relógio de ouro de cilindro, com movimento de escape horizontal, que ela me compraria, se pudesse; depois passamos a escolher as colheis e os garfos, as facas para a manteiga, os trinchantes para o peixe ou as pinças para o açúcar que mais nos agradariam, se tivéssemos dinheiro; e palavra que passamos tão contentes como se tivéssemos comprado tudo! Outra vez vamos passear pelos squares ou pelas ruas bonitas; vemos uma casa para alugar, examinamo-la de alto a baixo perguntando um ao outro se nos convirá quando eu for juiz. Depois fazemos a divisão: aquele quarto será para nós, aquele outro para uma de nossas irmãs, etc., etc., até que tenhamos decidido se o prédio nos pode ou não convir. Algumas vezes vamos, pagando meios preços, para a plateia de qualquer teatro, de que só o cheiro, na minha opinião, não é caro pelo preço e divertimo-nos como príncipes. Principia por que Sofia acredita em tudo quanto se passa em cena e eu também. Ao regressarmos a casa, compramos uma vez por outra qualquer petisco em casa do salsicheiro, ou um lagostim no vendedor de peixe e vamos fazer uma ceia magnífica, recapitulando em conversa quanto acabámos de ver. Oh! Copperfield, não é verdade que se eu fosse lord chanceler, não poderíamos distrair-nos assim?

— Torne-se no que se tornar, meu caro Traddles — pensei eu de mim para mim — nada fará que não seja bom e amável. A propósito — disse-lhe alto — suponho que já não desenha esqueletos?

— Mas realmente — respondeu Traddles rindo e corando — olhe que eu não sei o que afirmar, meu caro Copperfield. Porque aqui atrasado estava eu no banco do rei, com uma pena na mão; deu-me na fantasia ver se ainda conservava o meu talento passado. E parece-me que deixei um esqueleto... de cabeleira... no rebordo de uma escrivaninha.

Quando acabámos de rir com toda a vontade, Traddles pôs-se a dizer no seu tom de indulgência:

— Esse velho Creakle!

— Ah! Recebi uma carta desse velho... celerado — disse-lhe eu — porque nunca me senti menos disposto a perdoar-lhe o hábito que tomou de bater em Traddles como se ele fosse de gesso, como quando via Traddles disposto a perdoar-lhe de moto próprio.

David Copperfield (1850)Where stories live. Discover now