Capítulo LVI - O novo e o velho golpe

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A casa estava tão sossegada, que eu ouvi na escada o passo leve da criadita. Vinha dizer-me que Mistress Steerforth estava muito doente para descer, mas que se eu a desculpasse e tivesse o incómodo de subir, muito estimaria ver-me. Achei-me junto dela num instante.

Encontrei-a no quarto de Steerforth e não no seu; senti que ela o ocupava como recordação por ele e que era também pela mesma razão que havia deixado, no seu lugar costumado, uma porção de objectos de que estava rodeada, recordações vivas dos gostos e dos talentos de seu filho. Murmurou, dando-me os bons dias, que tinha mudado de quarto porque, no seu estado de saúde, não era cómodo o que dantes ocupava e tomou um ar imponente que parecia repelir toda a suspeita de verdade.

Rosa Dartle estava, como sempre, junto da sua poltrona. No momento em que ela fixou em mim os seus olhos negros, vi que compreendera que eu era portador de más novas. A cicatriz reapareceu no mesmo instante. A miss recuou um passo, como para escapar à observação de Mistress Steerforth e começou a espiar-me com um olhar penetrante e obstinado que não me abandonou mais.

— Sinto muito vê-lo de luto, senhor — disse-me Mistress Steerforth.

— Tive a desgraça de perder minha mulher — disse-lhe eu.

— É bem novo para ter passado por um tamanho desgosto — respondeu ela. — Sinto muito, muito, tal notícia. Espero que o tempo há-de trazer-lhe algum alívio.

— Espero — disse eu fitando-a — que o tempo nos trará a todos algum alívio. Querida Mistress Steerforth, é uma esperança que se torna mister alimentar sempre, mesmo no meio das nossas mais dolorosas provações.

A gravidade das minhas palavras e as lágrimas que me marejavam os olhos alarmaram-na. As suas ideias parece que pararam de repente para seguirem outro rumo.

Tentei dominar a minha emoção quando pronunciei docemente o nome do filho, mas a voz tremia-me. Ela repetiu-o duas ou três vezes para si, em voz baixa, e depois, voltando-se para mim, disse-me com uma tranquilidade afectada:

— Meu filho está doente?

— Muito doente!

— Esteve com ele?

— Estive.

— Reconciliaram-se?

Eu não podia dizer que sim nem podia dizer que não. Voltou ligeiramente a cabeça para o lugar em que julgava encontrar a seu lado Rosa Dartle e eu aproveitei-me desse momento para murmurar a Rosa com a ponta dos lábios:

— Morreu!

Para que Mistress Steerforth não fosse olhar para trás dela e ler no rosto emocionado de Rosa a verdade que ela não estava ainda preparada para saber, apressei-me a encontrar o seu olhar, porque tinha visto Rosa Dartle erguer as mãos ao céu com uma expressão violenta de horror e de desespero, depois tapara angustiadamente o rosto com as mãos.

Que formoso e nobre rosto o da mãe! Ah! Que semelhança! Que semelhança!... Estava voltado para mim com um olhar fixo. Vi-a levar a mão à testa. Supliquei-lhe que se tranquilizasse e que se preparasse para ouvir o que eu tinha que lhe dizer; teria feito melhor se lhe suplicasse que chorasse, porque ela estava para ali como uma estátua.

— Da última vez que aqui vim — prossegui eu em voz desfalecida — disse-me miss Dartle que ele andava navegando por diversas partes. Anteontem, a noite foi terrível no mar. Se ele se encontrasse no mar nessa noite e perto de uma costa perigosa, como se diz, e se o navio que todos viram fosse aquele que...

— Rosa! — disse Mistress Steerforth. — Venha cá!

Rosa aproximou-se, mas contra vontade, com pouca simpatia. Os seus olhos cintilavam e fuzilavam chamas e rebentou numa horrorosa risada.

David Copperfield (1850)Where stories live. Discover now