Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia

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— Minha querida Annie, supunha-a mais razoável e devo dizer-lhe, meu amor, que é reconhecer muito mal a bondade do doutor Strong.

Esta censura era-lhe geralmente endereçada em presença do doutor e parecia-me que era isso principalmente o que decidia Annie a ceder. Resignava-se quase sempre a ir para toda a parte para onde a levava o Velho Tarimbeiro.

Acontecia muito raras vezes que Mister Maldon as acompanhasse. Algumas vezes convidavam minha tia e Dora a juntarem-se-lhes; outras vezes era só Dora. Dantes hesitaria em deixá-la ir, mas reflectindo no que se havia passado naquela noite no gabinete do doutor, já não tinha desconfiança. Supunha que o doutor tinha razão, e, como ele, já não nutria suspeitas.

Algumas vezes minha tia coçava o nariz, quando estávamos sós, dizendo-me que não compreendia nada, que desejaria vê-los mais felizes e que não acreditava absolutamente que a nossa militar amiga (era assim que ela chamava sempre ao Velho Tarimbeiro) contribuísse para reconciliar as coisas. Dizia-me ainda que o primeiro acto do regresso ao bom senso da nossa militar amiga deveria ser arrancar todas as suas borboletas e fazer presente delas a qualquer limpa-chaminés, para um dia se mascarar.

Mas era sobretudo com Mister Dick que ela contava. Evidentemente, esse homem tinha uma ideia, dizia ela e se pudesse somente estreitá-la de perto, qualquer dia, a um canto do cérebro, o que para ele era a grande dificuldade, distinguir-se-ia por qualquer forma extraordinária.

Ignorante como era desta predição, Mister Dick permanecia sempre na mesma posição em face do doutor e de Mistress Strong. Parecia não avançar nem recuar um passo, imóvel na sua base como um edifício sólido e confesso que, efectivamente, espantar-me-ia tanto vê-lo proceder nesse sentido, como ver andar uma casa.

Mas uma noite, alguns meses depois do nosso casamento, Mister Dick entreabriu a porta da nossa sala de visitas; eu estava só, a trabalhar. (Dora e minha tia tinham ido tomar o chá a casa dos dois canarinhos) e disse-me com uma tosse significativa:

— Incomodá-lo-ia talvez, receio, conversar um momento comigo, Trotwood?

— Oh! Não, certamente, senhor Dick. Faça favor de entrar.

— Trotwood — disse-me ele encostando o dedo ao nariz, depois de me ter dado um aperto de mão — antes de me sentar, desejava fazer uma observação. Conhece sua tia?

— Um pouco — respondi.

— É a mais notável mulher do mundo!

E, depois de me ter feito esta comunicação, que lançou como uma bala rasa de canhão, Mister Dick sentou-se com um ar mais grave do que de costume e fitou-me.

— Agora, meu caro — acrescentou ele — vou fazer-lhe uma pergunta.

— Tantas quantas quiser.

— Que pensa de mim o senhor? — perguntou-me cruzando os braços.

— Que é o meu bom e velho amigo.

— Obrigado, Trotwood — respondeu Mister Dick, rindo e apertando-me a mão com uma alegria expansiva. — Mas não é isso o que eu quero dizer, meu filho — continuou ele num tom mais grave. — Que pensa de mim sob este ponto de vista? — E batia na testa.

Eu não sabia que responder, mas ele veio em meu auxílio:

— Que tenho o espírito fraco, não é verdade?

— Mas... — disse-lhe num tom indeciso — talvez um pouco.

— Precisamente! — gritou Mister Dick, que parecia encantado com a minha resposta. — É que, veja, senhor Trotwood, quando eles retiraram um pouco da desordem que havia na cabeça de... o senhor bem sabe de quem... para o pôr sabe bem aonde, houve...

David Copperfield (1850)Where stories live. Discover now