Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem

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— Partirei com o senhor amanhã — disse ele — se não vai de encontro a isso.

Demos de novo alguns passos em silêncio.

— Ham continuará a trabalhar aqui — prosseguiu ele daí por um bocado — e irá viver em casa de minha irmã. O velho barco...

— Dar-se-á o caso de que abandone o velho barco, Mister Peggotty? — perguntei docemente.

— Já não é lá o meu lugar, senhor David — respondeu ele — e se algumas vez naufragou um barco desde o tempo em que as trevas reinaram na superfície do abismo, é esse. Mas não, senhor; não quero que ele seja abandonado, bem longe disso.

Caminhámos mais algum tempo em silêncio e depois prosseguiu:

— O que eu desejo, senhor David, é que ele esteja sempre, noite e dia, de Inverno e de Verão, tal como ela sempre o conheceu, desde a primeira vez que o viu. Se alguma vez os seus passos errantes se dirigissem para este lado, eu não desejaria que a sua antiga habitação parecesse repeli-la; desejaria que a convidasse, pelo contrário, a aproximar-se talvez da velha janela, como um fantasma, para ver, através do vento e da chuva, o seu cantinho junto do fogo. Então, Mister David, talvez que ao ver lá Mistress Gummidge sozinha, ela tomasse ânimo e entrasse a tremer; talvez se se deixasse deitar na sua antiga caminha e descansasse a cabeça extenuada aonde tão alegremente dormia dantes!

Não pude responder-lhe, apesar de todos os meus esforços.

— Todas as noites — continuou Mister Peggotty — ao anoitecer, a vela será colocada, como de costume, à janela, a fim de que, se acontecesse que ela a visse um dia, julgue também ouvi-la chamar docemente: «Vem cá, minha filha, vem cá!». Se alguma vez se bater, à noite, à porta de tua tia, Ham, sobretudo se baterem devagar, não vás tu abrir. Que seja ela e não tu que a minha pobre filha veja primeiro.

Deu alguns passos e caminhou à frente de nós um momento. Durante este intervalo, deitei ainda os olhos para Ham e ao ver-lhe a mesma expressão no rosto, com o olhar sempre fixo no alvor longínquo, toquei-lhe no braço.

Chamei-o duas vezes pelo nome, como se quisesse despertar um homem adormecido, sem que ele fizesse o menor caso de mim. Quando enfim lhe perguntei no que pensava, respondeu-me:

— No que tenho diante de mim, Mister David e mais além.

— Na vida que se abre diante de si, é o que quer dizer?

Ele tinha-me indicado vagamente o mar.

— Sim, Mister David. Não sei bem o que é, mas parece-me... que é lá ao longe que tudo terá fim!

E olhava para mim como um homem que desperta, mas com o mesmo ar resoluto.

— Que fim? — perguntei, sentindo renascer os meus receios.

— Não sei — respondeu ele com ar pensativo. — Recordava-me que foi aqui que tudo começou e naturalmente pensava que é aqui que tudo deve ter fim. Mas não falemos mais nisso, Mister David — acrescentou, respondendo, penso, ao meu olhar. — Não tenha receio; é que, sabe?, estou tão perturbado, parece-me que não sei...

E efectivamente não sabia aonde estava e o seu espírito mergulhava-se na maior confusão.

Mister Peggotty parou, para nos dar tempo a alcançá-lo e o nosso diálogo ficou por aqui; mas a recordação dos meus primeiros receios mais de uma vez me veio à ideia, até ao dia em que o inexorável fim chegou no tempo mareado.

Tínhamo-nos insensivelmente aproximado do velho barco. Entrámos: Mistress Gummidge, em vez de se lamentar no seu sítio costumado, estava toda atarefada a preparar o almoço. Pegou no chapéu de Mister Peggotty e chegou-lhe uma cadeira, falando-lhe com tanta doçura e bom senso que eu nem a reconhecia.

David Copperfield (1850)Where stories live. Discover now