Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth

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Um olhar que lançou rapidamente sobre o lugar em que Steerforth passeava dando o braço à mãe, demonstrou-me de quem é que ela falava; mas foi tudo quanto pude compreender. E não tenho a menor dúvida de que a minha fisionomia exprimia o meu embaraço.

— Será que... não digo que seja... mas desejaria saber... será porque ele não está um pouco absorvido? Será porque não se torna talvez um pouco menos pontual que de costume nas visitas a essa mãe de uma ternura cega... hein?

Acompanhou estas palavras de um outro olhar rápido lançado sobre Steerforth e sua mãe e de um olhar sobre mim que parecia querer ler-me no recôndito do meu pensamento.

Miss Dartle — respondi — peço-lhe que não creia...

— Eu, crer! — disse ela. — Oh, Deus do céu! Mas não vá supor que creio em qualquer coisa. Não sou de suspeições. Faço uma pergunta. Não avanço opinião. Desejava formar a minha pelo que o senhor me dissesse. Assim, pois, não é verdade? Muito bem! Folgo muito de o saber.

— Não é, com certeza, verdade — disse-lhe um pouco perturbado — que eu seja responsável das ausências de Steerforth, que eu mesmo ignorava. Concluo das suas palavras que ele tem estado mais tempo que de costume sem vir a casa de sua mãe, mas eu próprio não o tornei a ver senão ontem de tarde, depois de um enorme intervalo.

— É verdade?

— O que há de mais verdade, miss Dartle.

Enquanto ela me olhava ainda fixamente, um movimento convulsivo, que eu não podia separar em meu espírito de uma ideia de sofrimento, veio agitar essa terrível criatura. O canto do seu lábio retraiu-se como para exprimir o desdém ou uma compaixão desprezadora. Levou precipitadamente à boca a sua mão, essa mão que tantas vezes eu comparara em meus pensamentos à porcelana mais transparente, tão fina e delgada era, quando a punha diante dos olhos para abrigar o rosto da ardência do fogo; depois disse-me vivamente, numa acentuação comovida e apaixonada:

— Conte com o meu segredo!

E não disse uma palavra mais.

Mistress Steerforth nunca se sentira mais feliz com a companhia de seu filho, porque justamente Steerforth nunca havia sido mais amável nem mais respeitoso com ela. Eu experimentava um intenso prazer ao vê-los juntos, não só por causa da sua mútua afeição, como também por causa da parecença flagrante que entre eles havia, excepto que a influência da idade e do sexo substituía em Mistress Steerforth, por uma dignidade cheia de graça, a altivez ou a ardente impetuosidade do filho. Mais de uma vez pensara que era muito feliz que nunca entre eles surgisse uma causa séria de divisão, porque essas duas naturezas, ou antes esses dois matizes da mesma natureza, talvez fossem mais difíceis de reconciliar do que os caracteres mais opostos do mundo. Sou obrigado a confessar que essa ideia não era minha: não é o meu discernimento que é preciso honrar; devia-o a algumas palavras de revelação de Rosa Dartle.

Estávamos a jantar quando ela nos fez esta pergunta:

— Ora, façam favor de me explicar, peço-lhes, a uns e outros, uma coisa que hoje me tem preocupado e que eu desejava saber?

— O que é que deseja saber, Rosa? — perguntou Mistress Steerforth. — Peço-lhe que não seja de mistérios!

— Mistérios! — exclamou. — Oh! Na verdade! Então acha-me misteriosa?

— Não é certo que quase não faço outra coisa senão rogar-lhe — disse Mistress Steerforth — que se explique abertamente, naturalmente?

— Ah! Então eu não sou natural? — replicou ela.

— Pois bem, peço-lhe que tenha um pouco de indulgência, porque eu não faço perguntas senão para me instruir. A gente não se conhece a si própria.

David Copperfield (1850)Onde histórias criam vida. Descubra agora