Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos

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Que agradável promessa! Disse-lhe que, se esperava uma despedida, poderia bem esperar até ao dia de juízo.

— Mas há-de tomar alguma coisa — disse-lhe estendendo o braço para a campainha. — Mistress Crupp vai fazer-lhe café e eu vou grelhar-lhe algumas fatias de toucinho num fogãozito que ali tenho.

— Não! Não! — disse Steerforth —, não toque! Vou almoçar com um desses amigos, que está hospedado no Piazza-Hotel, perto de Covent Garden!

— Ao menos virá jantar comigo — disse.

— Não posso, palavra; tenho muita pena, mas necessito de ficar com os meus dois companheiros. Partimos todos três amanhã de manhã.

— Traga-os então consigo; venham cá jantar todos — repliquei — se julga que eles aceitarão.

— Oh! Viriam de muito boa vontade — disse Steerforth —, mas maçá-lo-íamos. O David fará melhor se vier jantar connosco a qualquer parte.

Não quis consentir nessa combinação, porque se me tinha metido em cabeça que era absolutamente preciso que eu desse uma festinha em honra da minha instalação e que não podia encontrar melhor ocasião de pagar a patente. Estava mais inchado do que nunca com os meus aposentos, desde que Steerforth os tinha honrado com a sua aprovação e morria por estadear todos os recursos. Obriguei-o a prometer positivamente que apareceria com os seus dois amigos e fixamos o jantar para as seis horas.

Quando ele saiu, toquei para que viesse Mistress Crupp e anunciei-lhe o meu ousado projecto. Mistress Crupp disse-me logo que naturalmente não se podia contar com vê-la servir à mesa, mas que conhecia um rapaz muito hábil que consentiria talvez em servir, por cinco xelins, com uma pequena gratificação a mais. Respondi-lhe que certamente era preciso esse rapaz. Em seguida Mistress Crupp acrescentou que era bem de ver que ela não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo (o que me pareceu razoável) e que uma rapariga instalada na despensa, com uma palmatória acesa, era indispensável, para lavar os pratos incessantemente. Perguntei qual poderia ser o preço dos serviços dessa rapariga; Mistress Crupp supunha que dezoito pence não me arruinariam. Eu também o supunha e foi mais um ponto combinado. Então, Mistress Crupp disse-me: «Agora passemos ao menu do jantar».

O artista que construíra o fogão da cozinha de miss Crupp tinha dado prova de uma rara imprevidência, fabricando-o de maneira que não se podiam arranjar senão costeletas e batatas. Quanto a uma vasilha para peixe, Mistress Crupp disse que me bastava ir ver a sua bateria de cozinha; não me dizia mais nada; que fosse eu ver. Como não ficaria mais adiantado em ir ver, recusei, dizendo: «a gente pode passar sem peixe». Não eram esses os cálculos de Mistress Crupp.

— E porquê? — disse ela. — É o tempo das ostras e o senhor não as apresenta na mesa?

— Vá então pelas ostras!

Mistress Crupp disse-me então que aconselhava a que se compusesse o jantar do seguinte: Um par de frangos assados, que se mandariam vir do restaurante; um prato de carne estufada com cenouras... do restaurante; duas pequenas entradas como uma empada quente e rins salteados, do restaurante; uma torta de fruta e se me conviesse, uma gelatina... do restaurante. «O que me permitirá», disse Mistress Crupp, «consagrar toda a minha atenção às batatas e servir, na sua altura, o queijo e o aipo com o molho apimentado.

Conformei-me com o conselho de Mistress Crupp e fui pessoalmente fazer a encomenda ao restaurante. Ao descer do Strand, um pouco mais tarde, descobri à janela de um salsicheiro um bloco de uma substância cheia de veios que parecia mármore e que tinha esta etiqueta: «Tartaruga preparada». Entrei e comprei uma talhada suficiente, segundo vi depois, para quinze pessoas. Mistress Crupp consentiu com alguma dificuldade em aquecer essa preparação que diminuiu tanto, liquidificando-se, que a encontrámos, como dizia Steerforth, um pouco à justa para nós quatro.

David Copperfield (1850)Where stories live. Discover now