Capítulo XX - Em casa de Steerforth

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— O senhor é um bom rapaz, meu querido Malmequer — disse Steerforth rindo —, não tenho o menor desejo nem a menor intenção de me distinguir dessa maneira. Já sei bastante para o que quero fazer. Acho que me sinto já sofrivelmente aborrecido...

— Mas a glória... — ia eu continuar.

— Oh! Malmequer romanesco! — disse Steerforth rindo mais alto. — Para que terei eu o trabalho de escancarar a boca e erguer as mãos entusiasmado a uma malta de pedantes? Deixo isso a qualquer outro, que procure a glória; não lha disputarei.

Eu estava confundido por me ter tão grosseiramente enganado e não me incomodei em mudar de conversação. Felizmente não era difícil, porque Steerforth sabia passar de um assunto a outro com uma facilidade e uma graça que lhe eram peculiares.

Depois de termos tomado alguns refrescos, subimos para a diligência e, graças à brevidade dos dias de Inverno, era já lusco-fusco quando parámos à porta de um velho solar, construído de tijolo, no cimo da montanha em Highgate. Uma senhora de certa idade, sem ser ainda muito idosa, de presença distinta e uma linda figura, estava à porta, no momento em que chegámos; chamou a Steerforth «meu querido Jaime» e apertou-o nos braços. Ele apresentou-me a essa senhora, dizendo que era sua mãe e ela acolheu-me com uma graça majestosa.

A casa era antiga, mas elegante e bem tratada. Das janelas do meu quarto, descobri, muito ao longe, Londres envolta num grande vapor, com algumas luzes tremeluzindo aqui e ali. Só tive tempo de lançar, ao vestir-me, uma vista de olhos sobre o mobiliário maciço, as paisagens à agulha encaixilhadas e penduradas na parede e que eram, suponho, obra da mãe de Steerforth, na sua juventude e examinava ainda retratos de mulheres a pastel, com cabelos empoados e anquinhas, iluminadas pela chama crepitante do fogo que acabavam de acender, quando me chamaram para jantar.

Havia na sala de jantar uma outra senhora, baixa, morena e delgada; não era agradável, conquanto as suas feições fossem regulares e finas. A minha atenção incidiu logo a princípio sobre ela, talvez porque não a esperava, talvez porque estava sentado na frente dela, talvez, enfim, porque havia realmente nela qualquer coisa de notável. Tinha cabelos e olhos negros, o olhar era animado, era magra e tinha no lábio superior uma cicatriz antiga, ou melhor uma costura, porque estava fundida no tom geral da sua tez e via-se que o ferimento se curara há muito tempo; devia ter atravessado a boca até ao queixo, mas o vestígio era apenas visível do outro lado da mesa, excepto no lábio superior que lhe tinha ficado um pouco disforme. Decidi de mim para mim que ela devia ter os seus trinta anos e que tinha vontade de se casar. Estava um pouco avariada como uma casa por muito tempo desabitada, por falta de inquilino, mas todavia ainda era bem encarada. A magreza parecia provir de um fogo interior que a devorava e que brilhava em seus olhos ardentes.

Apresentaram-ma sob o nome de miss Dartle, mas Steerforth e sua mãe chamavam-lhe Rosa. Soube que vivia em casa de Mistress Steerforth e que há muito que era sua dama de companhia. Pareceu-me que não dizia francamente o que queria dizer, que se contentava em insinuá-lo e que isso não lhe saía mal efectivamente. Por exemplo, quando Mistress Steerforth observou, mais gracejando do que a sério, que receava que seu filho levasse uma vida um pouco malbaratada na Universidade, eis como se houve miss Dartle:

— Oh! Certamente! A senhora sabe que sou muito ignorante e que não desejo senão instruir-me; mas dar-se-á caso que não seja sempre assim? Eu supunha que era corrente que esse género de vida fosse...?

— Uma preparação para uma profissão muito séria; se é isso o que quer dizer, Rosa — disse Mistress Steerforth com alguma frieza...

— Oh! Por certo, é bem verdade — respondeu miss Dartle —, mas dar-se-á o caso, apesar de tudo, de não ser sempre assim? Eu não peço senão que me rectifiquem, se me enganar; mas supunha que na realidade era sempre assim.

David Copperfield (1850)Where stories live. Discover now