Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo

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Obtenho um lugar mais elevado na aula e ninguém perturba mais o meu repouso. Deixei de ser delicado como era para as jovens colegiais de Mister Nettingal e nenhuma adoraria, mesmo que fossem duas vezes mais numerosas e vinte vezes mais bonitas. Tenho as lições de dança na conta de uma obrigação fastidiosa e pergunto porque é que essas meninas não podiam dançar sozinhas e deixar-nos em paz. Torno-me muito forte em versos latinos e desmazelo-me muito para apertar os cordões dos sapatos. O doutor Strong fala de mim publicamente como dum rapaz cheio de esperanças. Mister Dick enlouquece de alegria e minha tia manda-me vinte xelins pelo correio imediato.

Ergue-se diante de mim a sombra de um moço de carniceiro como a aparição da cabeça com capacete, no Macbeth. Quem vem a ser esse moço de carniceiro? É o terror da rapaziada de Canterbury. Corre o boato de que o tutano de boi com que ele unta os cabelos, lhe dá uma força sobrenatural e que poderia lutar com um homem. Esse moço de carniceiro tem a cara larga, um pescoço de touro, faces coradas, um espírito mal formado e uma língua injuriosa. O principal emprego que faz dessa língua é falar mal dos alunos do doutor Strong. Diz publicamente que se encarrega de os tomar à sua conta. Indica alguns (eu entre outros) em quem ele diz ser capaz de dar uma sova só com uma mão e a outra presa atrás das costas. Espera, no caminho, os mais novos dos nossos camaradas e dá-lhes piparotes na cabeça; desafia-me em voz alta, quando passo na rua. Em consequência do que tomo a resolução de me bater com o moço de carniceiro.

Era uma tarde de Verão, num pequeno recanto verdejante, ao fundo de um muro. Encontro o carniceiro no sítio aprazado. Sou acompanhado por um corpo de eleição escolhido entre os meus camaradas: o carniceiro chegou com dois outros carniceiros, um criado de café e um limpa-chaminés. Regulados os preliminares, o carniceiro e eu achámo-nos frente a frente. Imediatamente o carniceiro fez-me ver trinta e seis mil estrelas com um soco que me pregou no sobrolho esquerdo. Um minuto depois, já não sei onde está o muro, aonde estou eu, nem vejo mais ninguém. Não posso também distinguir entre o carniceiro e eu; parece-me que nos confundimos um com o outro, lutando corpo a corpo sobre a erva por nós espezinhada. Por vezes descubro o carniceiro ensanguentado, mas confiante; por vezes não vejo coisa alguma e apoio-me, esbaforido, de encontro ao joelho do meu companheiro; outras vezes atiro-mo enfurecido contra o carniceiro e dou-lhe murros na cara, sem que isso pareça perturbá-lo muito. Enfim, volto a mim, com a cabeça em mau estado, como se acordasse de um profundo sono e vejo o carniceiro ir andando a vestir o casaco e recebendo cumprimentos dos seus colegas, do limpa-chaminés e do criado de café, donde concluo muito justamente que foi ele quem venceu. Levam-me para casa em mau estado, aplicam-me carne crua sobre os olhos e friccionam-me com vinagre e aguardente; o lábio superior vai-me inchando pavorosamente. Durante três ou quatro dias, fico em casa, a minha cara é horrorosa, trago uma faixa verde nos olhos e muito me aborreceria, se Inês não tivesse sido uma irmã para mim; compadece-se dos meus infortúnios, faz-me leituras em voz alta, e, graças a ela, o tempo decorre rapidamente e docemente. Inês tem toda a minha confiança, conto-lhe miudamente a minha aventura com o carniceiro e todas as injúrias que ele me tinha dito e ela é de opinião que eu não devia proceder de outra maneira senão batendo-me com ele, conquanto trema e estremeça à ideia desse terrível combate.

O tempo foi passando sem que eu desse fé, porque Adams já não está então à frente dos alunos; há muito que saiu do colégio. Há tanto tempo, que, quando vem fazer uma visita ao doutor Strong, já não há muitos alunos que o tenham conhecido. Adams vai entrar no foro, será advogado e usará cabeleira. Estou surpreendido de o encontrar tão modesto; é de uma aparência menos imponente do que eu pensava. Ainda não transformou o mundo, como eu esperava, porque me parece, tanto quanto posso julgar, que as coisas decorrem pouco mais ou menos da mesma maneira que antes da entrada de Adams na vida activa.

Aqui há uma lacuna em que os grandes guerreiros da história e da poesia desfilam diante de mim em exércitos sem conta; é um nunca acabar. Que é o que vem em seguida? Acho-me à frente dos alunos e contemplo da minha altura a longa fila dos meus camaradas, notando com um interesse cheio de condescendência aqueles que me lembram o que eu era quando entrei para o colégio. Parece-me, de resto, que não tenho mais nada a fazer com esse pequeno, lembro-me dele como de qualquer objecto que abandonaram na estrada da vida, qualquer coisa junto da qual passei e penso por vezes nele como num estranho.

David Copperfield (1850)Where stories live. Discover now