Capítulo III - Uma mudança

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— Cá está a nossa casa, senhor Davy.

Eu olhei para todos os lados, tão longe quanto os meus olhos podiam ver nesse deserto, sobre o mar, sobre o rio, mas sem descobrir a mais pequena casa. Havia uma barca negra, ou qualquer outra espécie de velho navio perto dali, encalhado na areia; um tubo de chapa de ferro, que substituía o cano, fumegava muito tranquilamente, mas não descobria mais coisa nenhuma que tivesse o ar de uma habitação.

— Não é isso? — disse eu. — Essa coisa que se parece com um navio?

— É isso mesmo, senhor Davy — replicou Cham.

Se fosse o palácio de Aladino, o ovo de roço e tudo o mais, creio que não teria ficado mais encantado da ideia romanesca de lá morar. Havia no flanco do barco uma encantadora portazinha; havia um tecto e pequenas janelas, mas o que a fazia subir em merecimento é que era um barco a valer que certamente tinha vogado no mar centenas de vezes; um barco que nunca tinha sido destinado a servir de casa sobre a terra firme. Era isso que lhe dava encanto a meus olhos. Se algum dia tivesse sido destinado a servir de casa, tê-lo-ia talvez achado pequeno para uma casa, ou incómodo ou muito isolado; mas desde o momento que não tinha sido construído com esse fim, era uma encantadora habitação.

No interior era ela perfeitamente limpa e tão bem arranjada quanto possível. Tinha uma mesa, um relógio de Holanda, uma cómoda e sobre ela uma bandeja onde se via uma dama armada de um guarda-sol, passeando com um menino de ar marcial que jogava o arco. Uma Bíblia segurava a bandeja e impedia-a de escorregar; se ela caísse, esmagaria na sua queda uma quantidade de chávenas, pires e uma chaleira colocadas em volta do livro. Nas paredes havia algumas gravuras coloridas, encaixilhadas, com vidro, que representavam assuntos da Escritura. Todas as vezes que depois me sucedeu ver iguais àquelas nas mãos dos vendedores ambulantes, pareceu-me tornar a ver imediatamente diante de mim o interior da casa do irmão de Peggotty. Os mais notáveis desses quadros eram Abraão em vermelho que ia sacrificar Isaque em azul e Daniel em amarelo, no meio de uma cova de leões em verde. No pano da chaminé via-se uma pintura do lugre a Sara-Jane, construído em Sunderland, com uma popa a valer de madeira que lhe fora adaptada: era uma obra de arte, um primor de marcenaria que eu considerava como um dos bens mais preciosos que este mundo pudesse oferecer. Nas traves do tecto, havia grandes ganchos cujo uso eu não compreendia bem, baús e outros utensílios também cómodos para servirem de cadeiras.

Logo que transpus a soleira vi tudo isso num relance (não se esqueceram de que eu era um rapaz observador). Depois Peggotty abriu uma pequena porta e mostrou-me um quarto de dormir. Era o quarto mais completo e o mais encantador que se podia inventar, à popa do navio, com uma pequena janela por onde antigamente passava o leme; um pequeno espelho colocado justamente à minha altura, com um caixilho de cascas de ostras; uma caminha, bastante grande para se dormir nela e em cima da mesa um ramalhete de ervas marinhas dentro de uma bilha azul. As paredes eram de uma alvura cintilante e a colcha de cores tão vivas que me faziam mal à vista. O que sobretudo notei nessa deliciosa casa, foi o cheiro a peixe; era tão penetrante que quando tirei o lenço do bolso, dir-se-ia, com tal cheiro, que o lenço servira para embrulhar uma lagosta. Quando confiei esta descoberta a Peggotty, informou-me ela que seu irmão negociava em lagostas, caranguejos e camarões; encontrei em seguida um monte desses animais, singularmente emaranhados uns nos outros e sempre ocupados a beliscar tudo quanto encontravam no fundo de uma gamela de madeira, onde metiam também as panelas e as chocolateiras.

Fomos recebidos por uma mulher muito bem criada que trazia um avental branco e que eu tinha visto a fazer-nos mesuras a uma meia légua de distância, quando chegava às costas de Cham. Tinha junto de si uma encantadora pequenita (pelo menos era opinião minha) com um colar de contas azuis; nunca consentiu que eu a beijasse e foi esconder-se quando eu lhe fiz tal proposta. Acabávamos de jantar da maneira mais sumptuosa, com gaivotas cozidas, manteiga derretida, batatas e uma costeleta só para mim, quando vimos chegar um homem de cabeleira que tinha o ar de muito boa pessoa. Como ele tratava Peggotty por «minha pequerrucha» e lhe deu um grande beijo na face, não tive a menor dúvida (dada a discrição habitual de Peggotty) de que fosse o irmão dela; de facto era ele e apresentaram-mo logo como Mister Peggotty, o dono da casa.

David Copperfield (1850)حيث تعيش القصص. اكتشف الآن