2 - ritual das noites de sexta

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A vejo revirar os olhos, permanecendo calada enquanto mantém a pose, sentada no banco desconfortável do piano que não substitui um sofá.

O papai brinca constantemente sobre o temperamento forte da mamãe. Há pessoas que se consideram oito ou oitenta, mas, como a gente costuma dizer, dona Ângela é oitenta e oito. Como o número de teclas de um piano, minha mãe é o extremo do extremo, e por mais que em algumas situações isso seja interessante, algumas vezes chega a ser um tanto chato.

Ela me mataria caso descobrisse o que faço todas as tardes.

Antes que mamãe tenha a chance de dizer alguma coisa, eu devoro o restante do sanduíche e busco a minha mochila, me trancando no meu quarto em seguida. Fins de tarde deprimentes pedem por ações deprimentes, então, com um suspiro longo, me jogo na cama e passo a encarar o teto pelo que parece horas. Vejo a noite enfim dar às caras, as sombras largas sumindo à medida que a luz que entra pela janela vai sumindo também.

O meu quarto está virado e eu tive a sorte de ainda não ser pega pela mamãe. Tem algumas roupas — limpas — espalhadas pelo chão, assim como algumas partituras antigas que precisei estudar sei lá há quanto tempo. A única parte consideravelmente no lugar é a minha escrivaninha, onde o meu caderno de roteiros está escondido na segunda gaveta. Sei que não é um esconderijo muito bom, longe disso, mas não é como se eu tivesse muitas opções. Ao menos se eu mantiver a mesa arrumada, meus pais não vão encontrá-lo. Espero.

Meu roteiro é só mais uma coisa na lista de passatempos-sem-importância para eles. É sempre a escola e as aulas de piano em primeiro lugar — ambas são igualmente importantes nessa droga de casa. Focar a minha atenção em qualquer outra coisa além disso é uma perda de tempo, para não dizer suicídio.

É por isso que faço tudo escondida.

E não é como se eu quisesse, mas, novamente, não tenho muitas opções.

Me forço a levantar quando uma brisa fria entra pela janela. Caminho até ela e a fecho, deixando apenas a cortina aberta para a pouca claridade da noite continuar entrando, e percebo que o meu vizinho de janela está com suas luzes acesas, lendo alguma coisa na cama. Queria muito saber que livro é.

Caminho de volta até a mochila, buscando o celular e meus fones de ouvido, e volto a me deitar com Lorde tocando no Spotify. Antes que alguém apareça à porta me chamando para o jantar, eu me permito fechar os olhos e tirar um cochilo pra lá de merecido.

Como todos aqui gostam de acreditar, fazer parte da banda estudantil parece me deixar bastante cansada.

A PIPOCA FRIA já faz parte do ritual das noites de sexta-feira, e não acho que estou muito disposta a mudar isso

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A PIPOCA FRIA já faz parte do ritual das noites de sexta-feira, e não acho que estou muito disposta a mudar isso. Depois de me certificar que mamãe e papai dormiram, eu fecho a porta do meu quarto com cuidado e ligo a televisão velha, a pondo no mudo como de costume.

Todos os passos do ritual são sagrados e precisam ser executados com precisão. Espalhar as almofadas na cama, posicionar o balde de pipoca ao lado do copo de refrigerante e ligar o ventilador de teto — para a minha sorte, muito barulhento — fazem parte do ritual. Dar uma batida de leve na TV de tubo também. Ela só funciona perfeitamente depois que batem na tela, uma forma bizarra de acordá-la, o que eu considero fascinante. Ainda que eu amasse ter uma TV nova no meu quarto, gosto dessa e dos passos no ritual que ela traz, além de deixar todos os meus filmes com uma imagem envelhecida, como um filtro vintage do Instagram. Estilo.

Garotas Rebeldes em CombustãoWhere stories live. Discover now