E foi assim que, com mais uma pequena dose de insistência, consegui convencê-los.

Na noite da viagem, o carro lotado de bagagens deixou a nossa garagem, e eu até mesmo acenei, fingindo vê-los partir.

Para ser sincera, eu tinha pedido ajuda para o Lucas sobre as cores de camisa que meu pai tinha usado naquela semana. Minha deficiência me faz trocar as cores facilmente. Meu melhor amigo também me contou sobre as estranhas mechas que minha mãe tinha feito no cabelo em um salão de beleza pra lá de duvidoso. Sobre a lata de achocolatado, bem, isso era óbvio. Mas tive que mentir para... sei lá, dar um descanso para eles também.

O problema é meu, a cegueira parcial é minha. Ninguém tem nada a ver com isso — ao menos, não totalmente. Então, por cinco dias, decidi dar férias aos meus pais.

E seria uma grande mentira se eu dissesse que não estava com medo.

Eu me senti insegura logo que eles foram embora, fiquei me perguntando se eu saberia encarar aquilo sozinha. Está certo, conheço bem a nossa casa, pois moramos aqui desde que nasci, mas nunca fiquei sozinha. Na verdade, a cegueira parcial é o menor dos problemas. Minha aflição é por não ter ninguém ao meu lado. Meu medo é que, a qualquer momento, o silêncio possa me engolir.

Desço, degrau por degrau, as escadas do meu quarto, empurrando a porta que encontro na frente. Meus pés tocam o piso do segundo andar e fico feliz por não ter rolado escada abaixo (acredite, isso já aconteceu). Minha mãe sempre foi contra a ideia de o meu quarto ser no sótão, porém, quando eu disse que a escuridão do lugar seria muito mais conveniente para o meu probleminha visual, ela parou de reclamar. Depois de tantos tropeços, entendi que nós somos responsáveis pelos nossos próprios medos.

A minha previsão de que meus pais deixariam todas as portas abertas se confirma assim que entro no banheiro. Abro a torneira e jogo um pouco de água no rosto, o suficiente para acordar. Sei que na minha frente existe um espelho, porém só enxergo a moldura — minha visão periférica é perfeita. Mas o que deveria ser meu reflexo não passa de uma mancha, e é isso o que enxergo todos os dias. Apenas 20% do mundo na minha frente. Arrisco dizer que a parte mais difícil em ser parcialmente cega é essa: não saber exatamente como sou.

Levo a mão direita até o rosto, fazendo com que o indicador percorra o contorno do nariz, bochechas e lábios. Sei que minha pele é macia, mas o que jamais poderei ter certeza é se eu sou uma garota bonita. Fecho os olhos por um segundo e suspiro, me sentindo uma idiota por começar o dia com um pensamento como este.

Saio do banheiro, desço mais um lance de escada e caminho até a cozinha.

Em cima da bancada fica um pequeno gravador de voz. Meus pais compraram o aparelho durante uma viagem, pois achavam que seria uma boa ideia deixar algum recado todas as vezes que eu acordasse e eles não estivessem em casa.

Normalmente, quando eles saem, acabam voltando logo em seguida, mas, desta vez, levariam alguns dias.

Pressiono o botão do gravador e a voz da minha mãe preenche todo o ambiente. Enquanto escuto suas preocupações que se resumem em perguntas sobre como passei minha primeira noite sozinha e se tudo está bem — ela não terá as respostas tão cedo —, procuro uma tigela no armário. Após colocá-la na mesa, abro a dispensa e tateio até encontrar a gigantesca caixa de cereal.

Despejo o conteúdo no momento em que mamãe me lembra que comprou caixas de massa instantânea e litros do meu suco favorito, como se eu fosse algum tipo de animal que hibernaria pelos próximos meses.

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