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VERÃO

Abro os olhos assim que o despertador toca, porém, para mim, ficar de olhos abertos nunca foi muito diferente de permanecer com eles fechados. É como jogar um copo de água no oceano ou acender um fósforo no meio de um incêndio. Pouca coisa muda. Enxergo a escuridão total do meu quarto logo nas primeiras horas da manhã, mas os fachos de luz que entram pela minha janela funcionam como a garantia de que, sim, eu ainda enxergo alguma coisa.

Meu pijama está colado no corpo e meus cabelos escuros estão mais enrolados e amassados do que o habitual. Ao acordar, meu pensamento não é novo: já é a quinta vez que sonho com ele. Tento reconstruir na minha mente aquele rosto que não é mais novidade. Ele já apareceu nos meus sonhos diversas vezes, com um longo intervalo de tempo entre um sonho e outro. E estou certa de que era ele mais uma vez nesta noite. Sempre ele. O cara de camisa xadrez e com um meio sorriso que, geralmente, parece olhar para mim.

No entanto, o que eu não sei é justamente o que mais me intriga: quem é ele?

Tateio o chão de madeira com os pés descalços e então fico em pé.

Sabendo de antemão que não vou encontrar nenhum obstáculo pelo caminho, arrasto meu corpo miúdo até o outro extremo do quarto, que está mais do que abafado.

O verão está terminando e faz mais calor do que nunca. Como sempre, meus pais precisaram viajar a trabalho, mas desta vez ninguém ficou à disposição para tomar conta de uma garota que já completou 18 anos. No caso, eu.

Meus pais são biólogos, e algumas vezes surge um convite para viajar até sabe-se-lá-onde para estudar e analisar sabe-se-lá-o-quê. Até pouco tempo atrás, eu tinha a vovó ao meu lado, para cuidar de mim, então nunca houve problema em viajar e “me deixar para trás”. No entanto, agora é diferente:

vovó faleceu há alguns meses. Eu ainda tento, com certa dificuldade, encarar o fato de que nossa casa não é a mesma sem a presença dela. Já meus pais tentam a todo custo ter alguma ideia genial sobre o que fazer quando uma nova viagem surge. A discussão é sempre a mesma, e todas as noites eu ouço as conversas na cozinha:

— Não podemos deixá-la sozinha em casa, Alejandro.

— Não podemos perder este emprego, Sinu.

E naquela noite eu sabia que era a hora de me juntar à conversa dos adultos.

— O fato de ter uma filha com visão subnormal não deveria impedir vocês de viverem normalmente, Alejandro e Sinu. — eu disse, aparecendo na porta da cozinha de uma hora para a outra. Parei logo na entrada, os olhos voltados para aquelas duas figuras sentadas à mesa. — Sei que isso é uma droga. Quer dizer, ter que, a partir de agora, procurar uma babá para a filha parcialmente cega. Mas a boa notícia é: eu já tenho 18 anos e não preciso de uma babá. Sei me virar, e dez anos enxergando menos do que o resto do mundo já me dão algum crédito para passar uns dias sozinha em casa. Por favor, não liguem para nenhum parente. Se vocês não os suportam, imaginem eu! Isso seria um castigo. Apenas acreditem em mim. Estou dizendo, sei me virar sozinha — reforcei.

Como eu sabia que aquilo não seria suficiente, arrisquei ir mais longe:

— Sei exatamente que o achocolatado fica no armário da direita, a não ser quando papai decide tomar um pouco e deixa a lata em cima da pia. Sei também que uma leve apertada no tubo de creme dental é o suficiente para escovar os dentes. Eu até mesmo sei que você fez mechas no cabelo, mamãe, e que o papai usou uma camisa roxa na segunda-feira, verde-escura na terça-feira e uma azul-ciano na quarta-feira. É o suficiente para uma cega parcial, não?

𝐃𝐫𝐞𝐚𝐦Where stories live. Discover now