Capítulo 28

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Corriam desesperadamente olhando para o céu.

Anabele achou que estava revivendo o pesadelo que tivera, mas não, aquilo era muito pior. O céu estava infestado das malignas criaturas. Em alguns momentos, podia jurar que ultrapassavam mil delas, em outros que não chegavam a dez. Moviam-se em círculos, rapidamente, às vezes mergulhando em direção ao chão, para logo subirem de novo.

O frio era terrível, mas o som era pior. Estridente e infindável. Anabele podia jurar que começava a fazer sentido em sua mente. Como algo que se sabe, mas não consegue se lembrar e que provoca um vazio que se tenta preencher a todo custo.

Vincent levava Alice no colo e corria como podia. Embora fosse forte, o esforço começava a atrasá-lo.

Anabele ia um pouco à frente, certificando-se a cada minuto que mantinha o amigo, a mãe e Jhou em seu campo de visão. Gritava para que ficassem perto. Tinha medo de perdê-los em meio à multidão que corria desordenadamente em direção à muralha.

Via pessoas que caíam e encolhendo-se no chão, não se levantavam mais. Outras tentavam reerguer-se, mas eram atropeladas pelos próprios vizinhos.

Anabele percebeu que começava a abrir distância da família. Parou de súbito, puxando o ar com força, enquanto esperava que a alcançassem. Jhou percebeu que corria sozinho e voltou para perto dela, esperando inquieto ao seu lado. O animal olhava para o alto e latia.

Anabele olhou a sua volta, procurando sem esperança por Henry e imaginou como estaria. Não deveria tê-lo deixado! Até onde sabia, ele não teria feito isso com ela. Apesar de toda a desconfiança que nutrira por ele até então, Henry ainda não a havia desapontado sequer uma vez. Ela, por outro lado, havia o abandonado no momento mais perigoso de suas vidas.

O que isso dizia sobre ela?

Sua atenção voltou-se para o cachorro que latia desesperadamente, ensaiando pequenos passos. Seguiu o olhar de Jhou e descobriu o motivo de seu alarde. Uma das criaturas havia pousado a no máximo trinta metros de onde estava. As pessoas afastaram-se gritando, em completo pânico.

Anabele estava paralisada. Homens e mulheres esbarravam nela bruscamente, mas ainda assim não conseguia se mover. Sentia-se gelada, vazia e distante.

A criatura era muito maior do que se lembrava. Os tentáculos dessa vez não estavam esparramados pelo chão, mas arqueados, de modo que o medonho corpo erguia-se muito mais alto, perto dos quatro metros. As veias pareciam pulsar com o fogo que as percorria. As asas estavam abertas e eram imensas. Grossas escamas negras cobriam-nas e pareciam iluminar o local a sua volta, já que as veias por onde o fogo passava eram muito mais grossas ali. Tinham uma beleza trágica.

Foi, contudo, quando Anabele olhou para o rosto da criatura que sentiu seu coração parar, e a garganta fechar com o mal estar. Embora maior, lembrava muito o desenho de um rosto humano. Os olhos eram dois buracos irregulares, mas mesmo de longe, Anabele sentiu que olhava para um infinito. Tinham uma profundidade assustadora, uma profundidade vazia, sem vida. No lugar do nariz havia duas aberturas. E boca nenhuma.

— De onde vêm os sons, então? — Anabele perguntou, baixinho para si mesma.

Vincent e Amanda pararam a seu lado.

— Por toda a água do mundo, o que é isso? — perguntou sua mãe.

— Santo Deus, aquela é a Clara? — Vicent estava atônito.

Anabele estava tão perdida no que pareciam ser os olhos da criatura que não percebera que ela erguia-se frente a uma moça que se arrastava no chão chorando. Como um déjà vu, reconheceu o cabelo loiro de Clara. A criatura avançava sobre ela, em uma reprodução fiel do que acontecera há dois dias em frente a sua própria casa.

Sem ao menos pensar, Anabele começou a correr em direção a ela.

— Ane! — ouviu a mãe chamar.

— Anabele, volte aqui! — a voz era de Vincent.

Ignorou toda a algazarra a sua volta e continuou correndo. Só o que conseguia enxergar eram as duas cavidades dos olhos. Anabele sentiu medo de se perder naquele infinito, então desviou o olhar.

Ao fazê-lo, escutou um grito, mas aquele, em sua mente, parecia ser de divertimento, de novo como uma gargalhada. Imaginou se estaria ficando louca.

— Anabeleeeeeeeeeeee! — a voz que gritava seu nome era de alguém suportando terríveis dores. Temeu por Clara.

Anabele já estava próxima o suficiente para enxergá-la com nitidez. Não parecia estar machucada, embora seu rosto estivesse contorcido em uma careta de dor. A loira tentava agora rastejar em sua direção, mas antes que avançasse sequer um metro a criatura esticou um de seus tentáculos e a envolveu. Anabele parou, chocada.

A criatura levantava, agora, Clara na altura de seu rosto. A moça gritou, mas dessa vez sua voz estava diferente. Estava grossa, rouca, como se um milhão de outras vozes tivessem se juntado àquele grito.

Algo saía de todo o seu corpo e era sugado pelos olhos da criatura.

O que era aquilo? Sua alma?

Não tinha forma, era apenas cor e cheiro. Imagens incompreensíveis dançavam em direção ao horrível ser. E o cheiro...

Anabele sentiu o estômago revirar. Era podridão.

Chocada demais para reagir, viu-se sendo puxada pela mãe. Tropeçou em seus próprios pés quando começou a correr sem, contudo, tirar os olhos da cena caótica.

O que viu a seguir finalmente a fez levar as mãos aos olhos, incapaz de assistir mais.

Todos os desaparecimentos fizeram sentido. Todo o resto deixou de fazer.

Sombras do MedoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora