❤ Capítulo 1

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André

24 anos depois

É impressionante como o nosso cérebro é poderoso: uma simples escolha aciona uma enxurrada de emoções. Neste exato momento, sinto como se estivesse de novo com sete anos de idade, acuado atrás de um banco e gritando sem parar pelos meus pais.

Tenho consciência de que não deveria, porém, olho mais uma vez para a foto deles na tela. O sorriso despretensioso para mim, ainda moleque nos seus braços, me sufoca. Tenho tanta saudade!

Era para eu estar procurando os arquivos contábeis do ano passado, mas sem querer fui parar em outra pasta e essa imagem saltou na minha vista. Poderia não ter clicado nela, no entanto, entre o ideal e o real há uma diferença gigante.

Agora estou um turbilhão de lembranças, revivendo situações que têm a capacidade de me ferir mesmo tantos anos depois. Não foi prudente digitalizar todas as fotografias de família e deixar uma cópia no computador da empresa. É gatilho garantido, fácil de me atingir.

Ainda não estou preparado para esse passo. Às vezes tenho a sensação de que me saboto para ver se poderia fazer alguma coisa diferente. E se eu tivesse ido atrás deles? E se tivesse visto antes como começou a confusão ao invés de ficar brincando com meu carrinho?

Talvez eles pudessem estar vivos...

"Você era apenas um garotinho, André. Não se culpe por isso".

A voz suave de Alfredo, meu psicólogo, ecoa pelo meu cérebro. Não adianta muito. Medo, ansiedade e preocupação continuam a se misturar no meu peito, igual naquele dia. Passo o dedo na altura do nó da gravata, buscando inutilmente aliviar a pressão na garganta. O coração está acelerado, consigo até sentir o gosto metálico do sangue na minha boca.

Odeio quando isso acontece, e infelizmente não é incomum. Já tive várias crises desde a infância. Segundo Alfredo, desenvolvi transtorno de estresse pós-traumático.

Faz apenas quatro anos que resolvi fazer terapia, talvez se tivesse começado antes a essa altura já conseguisse lidar melhor com a perda. Meus avós são pessoas maravilhosas, mas são muito simples. Não tinham condições financeiras nem conhecimento necessário para entender a importância do tratamento adequado.

Para ser sincero, eu mesmo posterguei procurar ajuda na fase adulta por não querer mexer nas feridas e até por duvidar que fosse realmente ajudar.

Levanto da cadeira e esfrego o rosto com as duas mãos. Caminho em direção à janela de vidro da minha sala e abro um pouco para o ar fresco invadir o ambiente. A noite já tomou conta do céu, foco a atenção nas luzes acesas do prédio à frente. Inspiro e expiro fundo, buscando retomar a calma como Alfredo ensinou.

Repito duas, três... quantas vezes são necessárias para o coração voltar a bater no ritmo normal.

Quando o barulho do telefone reverbera pelo ambiente, nem sei ao certo se passaram segundos ou longos minutos que estou aqui parado. Volto para a mesa e pego o aparelho no quarto toque.

— Senhor André, o senhor Brown gostaria de vê-lo na sala dele antes de ir embora.

— Estou indo, obrigado Melissa.

Inspiro fundo mais uma vez e passo a mão no paletó antes de sair e seguir pelo corredor comprido até a sala do chefe. Os quadros na parede, o carpete no chão e as pessoas bem arrumadas que passam ao meu lado são um contraste enorme com a realidade de onde  vim. Quando eu olho para trás, é quase surreal acreditar que o garotinho assustado da favela de Heliópolis conseguiu chegar tão longe.

Com 31 anos, trabalho na rede de escolas de maior referência para o ensino de tecnologia no Brasil. Carter gosta de dizer que sou seu CFO (Chief Financial Officer), contudo, prefiro resumir afirmando ser o diretor de finanças.

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