CAPÍTULO TRÊS | O garoto do sótão

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O INTERNATO LICEU ESTAVA longe de ser o melhor colégio integral das redondezas de Fortaleza, mas mesmo assim sua diretora fazia questão de dizer que ele era. Claro que qualquer pessoa com o mínimo de informação sabia que isso era mentira. Vânia Valentim já era diretora do Liceu há mais de uma década, e em todos esses anos ela simplesmente ignorou a fama ruim que o internato tinha e nunca fizera nada para mudar isso. Até a rotina dos funcionários parecia não ser alterada pelo tempo. Os monitores e professores, a maioria continuavam os mesmos de quando Vânia assumiu a direção. O zelador, Seu Ronaldo, com sua careca que brilhava ao ser iluminada pelo sol das manhãs, sua pança escapando da calça que um dia fora jeans e sua camisa que cabia umas três ou quatro pessoas normais dentro, sem dúvida alguma era o mesmo de sempre. As crianças eram as únicas coisas que mudavam como o passar do tempo, já que cresciam. Muitas eram retiradas pelos pais ou transferidas antes mesmo do fim dos anos letivos. O único menino que já estava com doze anos de idade e seis de internato mas não tinha sido transferido e muito menos retirado pela família ainda, era Eike Bouffard. Que obviamente não era mais a criança que entrou no Liceu há seis anos, apesar de ser bem pequeno e magro para sua idade. Eike possuía Síndrome de Asperger, um estado do espectro autista, e isso afetava a forma como ele percebia o mundo e interagia (ou não) com outras pessoas. Ele tinha os cabelos lisos e castanhos claros quase loiros, um rosto magro e largo, e uma franja que caía sobre um dos seus olhos azul-claros e quase tampava-o, mas o que mais se destacava no seu rosto era o aparelho que usava nos dentes. Era tão grande que quando Eike fechava a boca, formava um relevo ao redor de seus lábios. Eike o odiava, mas não pelo fato de Eric Valentim, o troglodita filho da diretora Vânia, o ofender com apelidos maldosos como boca de lata e triturador de lixo, nem por Eric o fazer abrir com os dentes suas garrafas de cerveja que comprava escondido de seus pais. Não era por isso, afinal Eike já estava acostumado a sofrer em suas mãos sedentas por lágrimas. Na verdade ele odiava o aparelho por um motivo que o magoava não só fisicamente.

Parecia ser manhã, pois as luzes penetravam por entre as vidraças da janela branca. O quarto era confortavelmente grande, com suas paredes azuis num tom escuro com estrelinhas desenhadas, e seu piso brilhoso e marrom. Eike achava que estava numa espécie de loop, pois tinha uma sensação de que já estivera ali antes, uma sensação que ficou mais forte quando uma mulher entrou por uma porta branca. Ele não conseguia ver seu rosto, já que a mulher virou em direção à uma das cômodas do quarto, ficando de lado para Eike. Seus cabelos lisos e castanhos impediam ainda mais Eike enxergar quem era aquela mulher. A curiosidade para saber como era seu rosto ia crescendo mais e mais. Eike então se levantou, ao fazer isso ele notou que estava mais baixo, muito mais baixo. Naquele momento nem parecia um garoto de doze anos, mas sim de um ano só. Isso não o impediu de mexer aquelas pernas pequenas e correr em direção à mulher que ele queria tanto saber como era o rosto. Ela ainda estava ali, parada na frente da cômoda, só que agora estava com algo nas mãos que havia pegado de cima da cômoda. Parecia uma caixinha de música, era laranja e de textura áspera, com uma miniatura de astronauta em cima portando uma bandeira da União Européia em uma das mãos. Ela apertou um botão que ficava do lado da caixinha e, de repente, começou a tocar uma música... Eike de alguma forma a conhecia, First Step de Hans Zimmer. Era uma música agradável, que reproduzia o som de vários instrumentos de orquestra misturados à sintetizadores. Aquela música fazia Eike lembrar do espaço, não só espaço sombrio e vazio acima da atmosfera terrestre, mas também do espaço entre Eike e a mulher que ele ainda não sabia como era o rosto. O espaço diminuía com suas passadas. Ele estava perto. Seu coração por algum motivo começou a bater mais forte. A mulher estava virando para vê lo... Foi aí que Eike ouviu o sinal tocar.

Era só um sonho.

O sinal que havia acabado de despertá-lo era o mesmo que indicava o início das aulas da manhã no internato. Ao abrir os olhos Eike viu a paisagem ao seu redor mudar drasticamente. O quarto iluminado e bonito em que estava antes de acordar fora substituído por um sótão escuro e de cor morta onde vivia quando não estava sonhando. Mesmo tendo uma quantidade de quartos relativamente grande no dormitório masculino do Liceu, Eike ficava no sótão acima do dormitório. O motivo para isso era o fato de que lá em cima, mesmo não sendo confortável e muito menos espaçoso, era um lugar que ele considerava seguro, que o deixava, mesmo que por um momento, livre dos problemas envolvendo os valentões do dormitório. No sótão tinham algumas caixas velhas que contribuía para o aperto, tinha uma pequena cômoda vermelha que, diferente da do sonho, não havia nenhuma caixinha de música em cima dela, e sim um abajur que parecia ter vida própria, pois só funcionava quando queria. A cama de Eike ocupava quase todo o resto de espaço que sobrava. Havia também uma janela, que por sinal era o único objeto que Eike gostava naquele sótão, já que de lá dava para ver quando as famílias chegavam nos fins de semana para levar seus filhos do internato. Daquela janela pequena Eike conseguia ver a alegria momentânea das crianças novatas do Liceu, ao saírem acompanhadas dos pais. Enquanto se afogava no oceano de pensamentos tristes ouviu alguém bateu na porta...

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⏰ Última atualização: Feb 22, 2023 ⏰

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