Capítulo 41

444 11 0
                                    

“Passaste um serão agradável?” perguntou Gilbert, mais distraído que
nunca enquanto a ajudava a subir para o comboio.
“Oh, encantador,” disse Anne...que se sentia, como na esplêndida frase
de Jane Welsh Carlyle, como se tivesse passado a noite debaixo de um
harrow.
“Porque é que arranjaste o cabelo assim?” perguntou Gilbert, ainda
meio ausente.
“É a nova moda.”
“Não te fica muito bem. Deve ficar bem nalguns cabelos, mas no teu
não.”
“Oh, sim, é uma pena eu ter o cabelo ruivo,” disse Anne gélida.
Gilbert achou sensato deixar passar um assunto perigoso. Anne, pensou
ele, sempre tinha sido muito sensível em relação ao cabelo. Estava
demasiado cansado para conversar, de qualquer forma. Inclinou a cabeça
para trás e fechou os olhos. Pela primeira vez Anne reparou que ele
tinha uns cabelos prateados por cima das orelhas. Mas endureceu o seu
coração.
Caminharam em silêncio para casa a partir da estação do Glen, pelo
atalho até Ingleside. O ar estava repleto do aroma dos abetos e fetos.
A Lua brilhava sobre os campos orvalhados. Passaram por uma velha casa
deserta com as tristes janelas partidas onde antes tinham brilhado as
luzes. “Tal como a minha vida,” pensou Anne. Tudo parecia ter um
significado triste para ela agora. A mariposa branca que voou perto
deles no relvado era, como ela pensou com tristeza, como um fantasma
de um amor desbotado. Então enfiou o pé num arco de croquet e quase
caiu de cabeça num monte de terra. Mas porque é que as crianças ali
tinham deixado aquilo? Ela tinha que falar com eles sobre isto amanhã!
Gilbert só disse, “O-o-ops!” e agarrou-a com a mão. Teria sido assim
tão despreocupado se fosse a Christine a tropeçar enquanto apreciavam
o nascer da Lua de Setembro?
Gilbert apressou-se a ir para o escritório assim que chegaram a casa e
Anne foi para o quarto em silêncio, enquanto o luar se reflectia no
chão, imóvel, frio e prateado. Dirigiu-se à janela aberta e olhou para
fora. Era com certeza a noite do cão do Carter Flagg ladrar, e ele
estava a dar o seu melhor. As folhas dos álamos brilhavam como prata
ao luar. Toda a casa à sua volta parecia murmurar…murmurar de forma
sinistra, como se já não fosse uma amiga.
Anne sentiu-se doente, fria e vazia. O ouro da vida tinha-se desfeito
em folhas murchas. Já nada tinha sentido. Tudo lhe parecia remoto e
surreal.
Lá ao longe, a maré mantinha a sua batalha eterna com a costa. Ela
conseguia...agora que o Norman Douglas tinha cortado o seu arbusto de
abetos...ver a sua pequena Casa de Sonho. Tinham sido tão felizes ali…
quando era suficiente o facto de estarem juntos na sua casa, com as
suas presenças, as suas carícias, os seus silêncios! Toda a cor da
manhã das suas vidas…Gilbert olhando-a com aquele sorriso nos olhos,
que guardava só para si, descobrindo todos os dias uma nova forma de
dizer que a amava...partilhando o riso como partilhavam as mágoas.
E agora...o Gilbert tinha-se cansado dela. Os homens sempre tinham
sido assim...seriam sempre assim. Ela tinha pensado que ele era uma
excepção mas agora via a verdade. E como é que ela ia ajustar a sua
vida a isto?
“Tenho as crianças, claro,” pensou com tristeza. “Tenho que continuar
a viver por elas. E ninguém pode saber...ninguém. Não suporto que
tenham pena de mim.”
Mas o que era isto? Alguém vinha a subir as escadas, três degraus de
cada vez, como o Gilbert costumava fazer na Casa de Sonho...como já há
tanto tempo não fazia. Não podia ser o Gilbert...mas era!
Ele entrou pelo quarto a dentro...pousou um pequeno embrulho na
mesa...agarrou Anne pela cintura e fê-la rodopiar pelo quarto como um
rapaz de escola entusiasmado, parando por fim sem fôlego numa poça
prateada de luar.
“Eu tinha razão, Anne…graças a Deus, eu tinha razão! A senhora Garrow
vai ficar bem...o especialista confirmou.”
“A senhora Garrow? Gilbert, estás doido?”
“Mas eu não te contei? Com certeza que sim…bem, deve ter sido um
assunto tão delicado que nem consegui falar-te dele. Tenho andado
preocupadíssimo com isto desde há duas semanas…não pensava em mais
nada, acordado ou a dormir. A senhora Garrow vive em Lowbridge e é
doente do Parker. Ele pediu-me a opinião...eu fiz um diagnóstico
diferente do dele...quase nos brigámos...eu tinha a certeza que tinha
razão...insistia que havia uma hipótese...mandámo-la a Montreal...o
Parker disse que ela não voltava de lá viva...o marido dela estava
capaz de me matar. Quando ela foi realmente eu fiquei de rastos…talvez
me tivesse enganado...talvez a estivesse a sacrificar sem razão.
Quando cheguei ao escritório estava lá uma carta...eu tinha
razão..eles operaram-na...ela tem excelentes hipóteses de sobreviver.
Miúda Anne, só me apetece saltar! Saiu-me um peso de cima.”
Anne sentiu-se à beira do riso e das lágrimas...pelo que começou a
rir. Era maravilhoso poder rir novamente...maravilhoso ter vontade de
rir. Tudo ficou bem de repente.
“Então foi por isso que te esqueceste do nosso aniversário de
casamento?” perguntou.
Gilbert largou-a o suficiente para apanhar o pequeno embrulho que
tinha deixado em cima da mesa.
“Eu não me esqueci. Há duas semanas encomendei isto em Toronto. E só
chegou esta tarde. Senti-me tão mal de manhã sem ter nada para te dar
que nem mencionei a data...pensei que também te tivesses
esquecido...esperava que sim. Quando entrei no escritório estava lá o
presente juntamente com a carta. Vê lá se gostas.”
Era um pequeno diamante para pendurar no fio. Mesmo ao luar brilhava
como uma coisa viva.
“Gilbert...e eu...”
“Experimenta-o. Gostava que tivesse chegado esta manhã...assim tinhas
uma coisa para usar ao jantar em vez daquele velho coração de esmalte.
Mas eu achei que te ficava muito bem naquela covinha que tens na
garganta, querida. Porque é que não foste com o vestido verde, Anne?
Eu gostei dele...fez-me lembrar aquele vestido das rosinhas que tu
tinhas em Redmond.
(“Então ele sempre tinha reparado no vestido! E lembrou-se do vestido
de Redmond que ele gostava tanto!)
Anne sentiu-se como uma ave posta em liberdade...e começava a voar. Os
braços de Gilbert à sua volta...os seus olhos que olhavam os seus ao
luar.
“Tu amas-me, Gilbert? Não sou só um hábito para ti? Há tanto tempo que
não me dizes que me amas.”
“Minha querida, meu amor! Eu achei que não eram precisas palavras para
tu saberes que sim. Tu sempre me deste forças. Há um versículo qualquer na Bíblia que foi feito para ti...’Ela fará o bem e não o mal
todos os dias da sua vida.’”
A vida que lhe parecera tão cinzenta e sem sentido há uns momentos
atrás era agora dourada, cheia de rosas e arco-íris novamente. O
diamante caiu para o chão, ignorado por momentos. Era lindo…mas haviam
tantas coisas mais lindas…a confiança e a paz e o trabalho
dedicado...o riso e a gentileza...esse velho sentimento seguro de um
amor certo.
“Oh, se pudéssemos guardar este momento para sempre, Gilbert!”
“Nós ainda vamos ter alguns momentos. Já é altura de termos uma
segunda Lua-de-mel. Anne, em Fevereiro vai haver um grande congresso
em Londres. Nós vamos...e aproveitamos para ver alguma coisa do velho
mundo. Vamos de férias. Vamos ser namorados novamente...vai ser como
ser noivos outra vez. Tu não és tu própria há algum tempo. (“Então ele
reparou.”) Andas cansada, com trabalho a mais…precisas de uma mudança.
(“Tu também, mais querido. Tenho sido tão cega.”) Não quero que me
digam que as mulheres dos médicos nunca são tratadas. Vamos voltar
descansados e frescos, com o nosso sentido de humor completamente
restaurado. Bem, experimenta lá o teu diamante para nos irmos deitar.
Estou morto de sono...há semanas que não tenho uma noite decente, com
aqueles gémeos e a preocupação com a senhora Garrow.”
“O que é que tu e a Christine conversaram tanto tempo no jardim?”
perguntou Anne, pavoneando-se em frente ao espelho com o diamante.
Gilbert bocejou.
“Oh, nem sei. A Christine é que esteve a tagarelar. Mas houve uma
coisa que me disse que eu não sabia. Uma pulga consegue saltar
duzentas vezes o seu comprimento. Sabias, Anne?”
(“Estiveram a falar de pulgas quando eu me contorcia de ciúmes. Que
idiota!”)
“E como é que começaram a falar de pulgas?”
“Nem me lembro...talvez tenha sido por causa dos dobermans.”
“Dobermans? Mas o que são dobermans?”
“Uma nova raça de cães. A Christine é uma grande especialista em cães,
ao que parece. Eu estava tão obcecado com a senhora Garrow que nem
prestei atenção ao que ela estava a dizer. De vez em quando apanhava
uma palavra sobre complexos e repressão...que a nova psicologia se
está a desenvolver...e a arte...a política...e as rãs.”
“As rãs?!”
“Umas experiências que um homem está a fazer em Winnipeg. A Christine
nunca foi muito boa para conversar, e agora está mais aborrecida que
nunca. E maliciosa! Ela não era maliciosa.”
“O que é que ela disse que fosse tão malicioso?” perguntou Anne
inocentemente.
“Não reparaste? Oh, não deves ter apanhado...não és nada assim. Bem,
não interessa. Aquele riso dela fez-me mal à cabeça. E ela engordou.
Graças a Deus que tu não engordaste, miúda-Anne.”
“Oh, eu não a achei gorda,” disse Anne caridosa. “E ela é uma mulher
muito bonita.”
“Mais ou menos. A expressão dela está muito dura...tem a mesma idade
que tu mas parece dez anos mais velha.”
“E tu a falares-lhe da eterna juventude!”
Gilbert riu-se com ar culpado.
“Temos que ser educados. E a educação não existe sem uma pequena dose
de hipocrisia. Oh, bem, a Christine até nem é má de todo, mesmo que
não pertença à raça de José. Não tem culpa de ter saído um bocado
insonsa. O que é isto?”
“A minha lembrança de aniversário para ti. E quero que me dês um
cêntimo por ela...não vou correr riscos. As torturas que eu passei
esta noite! Estava roída de ciúmes da Christine.”
Gilbert ficou genuinamente espantado. Nunca imaginara que a Anne
pudesse ter ciúmes de ninguém.
“Oh, minha miúda-Anne, nunca pensei que fosses capaz disso.”
“Mas sou. Há uns anos atrás eu tinha uns ciúmes doidos da tua
correspondência com a Ruby Gillis.”
“Mas eu troquei cartas com a Ruby Gillis? Não me lembro. Pobre Ruby!
Mas então e o Roy Gardner? Diz o roto para o nu.”
O Roy Gardner? A Philippa escreveu-me a dizer que o viu e que ele está
absolutamente corpulento. Gilbert, o doutor Murray pode ser um homem
muito eminente na sua profissão mas parece uma tábua, e o doutor
Fowler parece um donut. Tu parecias tão bonito...e elegante…ao pé
deles.”
“Oh, obrigado…obrigado. Isso é sempre uma coisa boa de se ouvir da
esposa. Mas para te devolver o cumprimento, tu hoje também estavas
especialmente bonita, Anne, apesar do vestido. Tinhas um bocadinho de
cor e os teus olhos estavam fabulosos. Ahhh, que bom. Não há melhor
lugar que a nossa cama quando lá estamos dentro. Há outro versículo da
Bíblia...estranho como as coisas que aprendemos na escola dominical
nos ocorrem ao longo da vida!...’Vou deitar-me em paz e dormir.’ Em
paz...e dormir...boa noite.”
Gilbert adormeceu antes de acabar a frase. Querido Gilbert! Esta noite
bem podiam vir bebés que nenhum lhe ia perturbar a noite. O telefone
bem podia tocar.
Anne não tinha sono. Estava feliz demais para dormir. Saiu suavemente
do quarto, arrumando as coisas, entrançando o cabelo, como uma mulher
muito amada. Finalmente vestiu a camisa de noite e atravessou o
corredor até ao quarto dos rapazes. O Walter e o Jem nas suas camas e
o Shirley na sua cama de grades dormiam a sono solto. O Camarão, que
sobrevivera a gerações de gatinhos e se transformara num hábito de
família estava enrolado aos pés do Shirley. Jem tinha adormecido a ler
“O Livro da Vida do Capitão Jim”...estava aberto em cima da colcha.
Que alto que o Jem parecia debaixo dos lençóis! Qualquer dia era
crescido. Que rapaz tão fiável que ele era! O Walter sorria a dormir,
como alguém que sabe um segredo agradável. A lua brilhava-lhe na
almofada através dos riscos da janela pintada a chumbo...projectando a
sombra de uma cruz na parede por cima da cabeceira. Anos depois Anne
lembrar-se-ia disso e interrogar-se-ia se era um presságio de
Courcelette...de uma campa com uma cruz “algures em França.” Mas esta
noite era apenas uma sombra...nada mais. As borbulhas tinham
desaparecido do pescoço do Shirley. O Gilbert tinha razão. Ele tinha
sempre razão.
A Nan e a Diana estavam no quarto seguinte...a Diana com lindos
caracóis ruivos transpirados em volta da cabeça e uma pequena mão
queimada do sol por baixo da bochecha, e a Nan com grandes pestanas a
tocarem as dela. Os olhos por de trás das pálpebras com veiazinhas
azuis eram cor de avelã como os do pai. E a Rilla dormia de barriga
para baixo. Anne virou-a para cima mas os seus olhos não se abriram.
Cresciam todos tão depressa. Em poucos anos seriam todos jovens
homens e mulheres...a juventude a entrar de
mansinho...expectante...ponteada de sonhos selvagens...pequenos navios
saindo dos portos seguros para costas desconhecidas. Os rapazes
partiriam para vidas de trabalho, e as raparigas...ah, as formas
enevoadas das lindas noivas que se veriam nas escadas de Ingleside.
Mas ainda eram seus por uns anos...seus para amar e guiar...para
cantar canções que tantas mães tinham cantado. Seus...e do Gilbert.
Ela saiu e atravessou o hall até à janela. Todas as suas suspeitas e
ciúmes tinham ido para onde vão as luas passadas. Sentia-se alegre,
confiante e abençoada.
“Abençoada! Sinto-me abençoada,” disse, rindo-se. “Sinto-me
exactamente como senti na manhã em que o Pacifique me disse que o
Gilbert tinha ‘dado a volta por cima’.”
Abaixo de si estava o mistério e o encanto de um jardim à noite. Os
montes longínquos, salpicados de luar, eram um poema. Dali por uns meses iria ver o luar nos montes distantes da Escócia...por cima de
Melrose...das ruínas de Kenilworth...da igreja junto ao Avon onde
Shakespeare dormiu...talvez até sobre o Coliseu...sobre a
Acrópole...sobre rios correndo sobre impérios ultrapassados.
A noite estava fria; em breve viriam as noites mais frias e
penetrantes de Outono; depois a neve profunda...a neve branca e
profunda do Inverno...noites selvagens de vento e tempestade. Mas quem
é que se importava? Haveria a magia do lume em muitas divisões…o
Gilbert não tinha falado de uns troncos de macieira que ia trazer para
a lareira? Iam glorificar os dias cinzentos que estavam para vir. E o
que é que era a neve e o vento comparados com a primavera que vinha a
seguir? E todas as pequenas doçuras da vida a despontar ao longo da
estrada.
Ela afastou-se da janela. Na sua camisa de noite branca, com o cabelo
entrançado em duas longas traças, parecia a Anne de Green Gables...de
Redmond...dos dias da Casa de Sonho. Aquele brilho interno brilhava
ainda dentro dela. Através das portas abertas ouvia-se o suave
respirar das crianças. Gilbert, que poucas vezes ressonava, ouvia-se
distintamente agora. Anne riu-se. Lembrou-se de algo que a Christine
tinha dito. Pobre Christine sem filhos, disparando as suas pequenas
setas de sarcasmo.
“Que família!” repetiu Anne exultante.

Anne de Ingleside- L.M. MontgomeryOnde as histórias ganham vida. Descobre agora