Capítulo 18

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“’Chegou a altura em que Walrus fala de’...arranjar-mos um cão,” disse
Gilbert.
Eles não tinham um cão em Ingleside desde que o velho Rex tinha sido
envenenado: mas os rapazes deviam ter um cão e o doutor decidiu que
tinha que lhes arranjar outro. Mas andava tão atarefado que passava a
vida a adiar o assunto; até que finalmente certo dia de Novembro o Jem
voltou a casa de uma tarde passada com um amigo carregando um cão...um
pequeno cão tipo dingo com duas orelhas pretas espetadas para fora.
“O Joe Reese deu-mos, Mãe. O nome dele é Gyp. Não tem uma cauda
engraçada? Posso ficar com ele, não posso, Mãe?”
“E de que raça é ele, querido?” perguntou Anne duvidosa.
“Eu…eu acho que ele é uma mistura de raças,” disse Jem. “E isso torna-
o mais interessante, não acha Mãe? Mais excitante do que se só tivesse
uma. Por favor, Mãe.”
“Oh, se o teu Pai concordar...”
E o Gilbert concordou, pelo que Jem tomou posse do seu presente. Toda
a gente em Ingleside deu as boas vindas a Gyp, excepto o Camarão, que
expressou a sua opinião sem grande discrição. Até a Susan se afeiçoou
a ele e quando ela fiava no sótão em dias de chuva o Gyp, com o dono
ausente na escola, ficava com ela, perseguindo ratos imaginários nos
cantos escuros e dando gritos de terror sempre que a sua agitação o
levava a aproximar-se mais da pequena roda de fiar. Nunca era
usada...os Morgans tinham-na lá deixado quando venderam a casa...e
para ali estava num canto escuro como uma velhinha curvada. Ninguém
conseguia compreender o medo que Gyp tinha dela. Ele não se incomodava
com a grande roda de fiar, até se sentava ao pé dela quando Susan a
fazia girar , e corria para trás e para a frente com ela enquanto ela
dobava os longos novelos de fio. A Susan admitia que um cão podia ser
uma boa companhia e achava que a maneira como ele se deitava de costas
abanando as patas da frente no ar quando queria um osso era a
habilidade canina mais inteligente de todos os tempos. Chegou a ficar
tão zangada quanto o Jem quando o Bertie Shakespeare perguntou
desdenhoso: “Chamas a isso um cão?”
“Nós chamamos-lhe um cão,” disse Susan com grande calma. “Talvez tu
lhe chames um hipopótamos.” E nesse dia o Bertie teve que regressar a
casa sem ter provado uma fatia da maravilhosa tarte estaladiça de maçã
que a Susan sempre fazia sempre para os dois rapazes e para os amigos
que vinham lanchar. Ela não estava presente quando o Mac Reese
perguntou, “Isso veio com a maré?” mas o Jem foi capaz de defender o
cão dele, e quando o Nat Flagg disse que as pernas do Gyp eram
compridas demais para o tamanho dele o Jem respondeu que as pernas de
um cão tinham que ser suficientemente compridas para chegar ao chão. O
Nat não era muito esperto e essa afirmação baralhou-o.
O mês de Novembro foi cheio de sol nesse ano: o vento soprava através
dos ramos despidos do bosque de aceres prateados e o vale estava quase
constantemente coberto de névoa...não uma névoa graciosa e aérea como
um nevoeiro mas o que o Pai chamava uma névoa espessa escura e
deprimente. Os miúdos de Ingleside tinham que passar a maior parte do
tempo a brincar no sótão, mas fizeram amizade com duas grandes
perdizes que vinham todos os fins de tarde ter a uma enorme macieira,
e cinco dos seus pássaros mantinham-se fiéis, piando desavergonhados
enquanto comiam as migalhas que as crianças lhes davam. Só que eles
eram egoístas e gananciosos e mantinham os outros pássaros à
distância.
O Inverno instalou-se em Dezembro e nevou incessantemente durante três
semanas. Os campos para além de Ingleside eram pastagens de prata sem
fim, as cancelas e as vedações usavam grandes capas brancas, as
janelas estavam cobertas de padrões de fadas e em Ingleside as luzes
brilhavam através do anoitecer dando as boas vindas a todos os
viajantes. Parecia à Susan que nunca tinham havido tantos bebés a
nascer no Inverno como naquele ano; e quando noite após noite deixava um lanche nocturno para o doutor na despensa ia pensando que seria um
milagre se ele aguentasse à primavera.
“O nono bebé Drew! Como se já não houvessem Drews suficientes no
mundo!”
“A senhora Drew deve-o achar uma maravilha tão grande como a Rilla foi
para nós, Susan.”
“Se isso é uma piada, minha querida senhora...”
Mas na biblioteca ou na grande cozinha as crianças planearam uma
casinha de brincar para o Verão a fazer no Vale enquanto as
tempestades rugiam lá fora, ou nuvens fofas e brancas se deslocavam
sobre estrelas geladas. Fosse como fosse, em Ingleside havia sempre
uma lareira acesa, o conforto, o abrigo das tempestades, odores de
boas comidas, camas para pequenas criaturas cansadas.
O Natal veio e passou sem qualquer sombra da Tia Mary Maria. Haviam
rastos de coelhos na neve para seguir e grandes campos cobertos para
as crianças perseguirem as suas sombras, encostas brilhantes para
descer deslizando e novos patins para experimentar no gelo do lago, ao
anoitecer rosado de um dia de Inverno. E havia sempre um cão amarelo
de orelhas pretas que corria com eles ou ao encontro deles, que dormia
aos pés da cama ou se deitava aos pés deles enquanto faziam os
trabalhos da escola, se sentava ao lado deles à hora das refeições e
os lembrava disso com pancadinhas nas pernas.
“Mãe querida, eu não sei como vivia antes de vir o Gyp. Ele fala,
Mãe...ele fala mesmo...com os olhos, sabe?”
Então...que tragédia! Certo dia o Gyp parecia um pouco mole. Não
queria comer apesar de a Susan o desafiar com uma costeleta de que ele
tanto gostava; no dia seguinte o veterinário de Lowbridge foi chamado
e saiu abanando a cabeça. Era difícil de saber...o cão podia ter
apanhado qualquer coisa venenosa no bosque...podia recuperar ou não. O
pequeno cão estava deitado muito quieto, não ligando a nada a não ser
ao Jem; até ao fim tentando abanar a cauda quando Jem lhe tocava.
“Mãe, faz mal se eu rezar pelo Gyp?”
“Claro que não, querido. Nós podemos rezar por tudo o que gostamos.
Mas parece-me...que o Gyp é um cãozinho muito doente.”
“Mãe, você não pensa que o Gyppy vai morrer!”
Gyp morreu na manhã seguinte. Foi a primeira vez que a morte entrou no
mundo de Jem. Nenhum de nós consegue esquecer a experiência de ver
morrer qualquer coisa de que gostamos, mesmo quando é “só um cão”.
Ninguém na chorosa Ingleside usou essa expressão, nem mesmo a Susan,
que limpava um nariz muito vermelho e resmungava:
“Eu nunca tinha gostado de um cão...e nunca mais vou gostar. Dói
demais.”
A Susan não tinha conhecimento do poema de Kipling sobre como é louco
quem dá a um cão o seu coração para despedaçar; mas se conhecesse
apesar do seu desinteresse pela poesia, teria pensado que por uma vez,
um poeta tinha dito uma coisa com senso.
A noite foi dura para o pobre Jem. A Mãe e o Pai tiveram que sair. O
Walter tinha adormecido a chorar e ele estava sozinho...sem ter sequer
um cão com quem conversar. Os queridos olhos castanhos que se
levantavam para ele com tanta confiança estavam vidrados para sempre.
“Querido Deus,” rezou Jem, “por favor toma conta do meu cãozinho que
morreu hoje. Vai conhecê-lo pelas orelhas pretas. Não o deixe ter
saudades minhas...”
Jem enterrou a cara na almofada para dar um soluço. Quando ele
apagasse a luz a noite escura estaria à sua espera e não haveria mais
Gyp. A manhã fria de Inverno viria também e não haveria mais Gyp. Os
dias seguir-se-iam uns aos outros durante anos e não haveria mais Gyp.
Ele não aguentava isso.
Então um braço meigo enlaçou-o e abraçou-o com calor e ternura. Oh,
ainda havia amor no mundo, mesmo se o Gyppy não estivesse lá.
“Mamã, vai ser sempre assim?”
“Não para sempre.” Anne não lhe disse que ele depressa o ia
esquecer...que daí a a pouco o Gyp seria apenas uma boa memória. “Não
para sempre, pequeno Jem. Vais ficar bom outra vez…da mesma maneira
que ficaste bom da mão que te doía tanto ao princípio.”
“O Pai disse que me ia arranjar outro cão. Eu não tenho que ficar com
ele, pois não? Eu não quero outro cão Mãe...nunca mais.”
“Eu sei, querido.”
A Mãe sabia tudo. Ninguém tinha uma mãe como a dele. Ele queria fazer
qualquer coisa por ela...e de súbito ocorreu-lhe o que podia fazer.
Ele ia comprar-lhe um colar de pérolas da loja do senhor Flagg. Ele
tinha-a ouvido um dia dizer ao pai que gostava de ter um colar de
pérolas, e o Pai tinha dito, “Quando chegar o nosso barco eu compro-te
um miúda-Anne.”
E tinha que pensar em como arranjar o dinheiro para ele; tinha uma
mesada mas era só para coisas que precisava e colares de pérolas não
estavam entre elas. Além disso, queria ser ele a ganhar o dinheiro.
Seria realmente um presente dele dessa maneira. O aniversário da mãe
era em Março...só dali por seis semanas. E o colar custava cinquenta
cêntimos!

Anne de Ingleside- L.M. MontgomeryOnde as histórias ganham vida. Descobre agora