Capítulo 36

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Nan sentiu um arrepio estranho nas costas quando virou para a alameda.
Seria possível que o ramo seco de ácer se tivesse mexido? Não, ela
tinha escapado…já estava longe. Aha, velha bruxa, não me apanhaste!
Ela seguia pela alameda e nem a lama nem as raízes tinham força para
lhe estragar a antecipação. Só mais uns passos...a Casa Sombria estava
à sua frente, entre e por detrás daquelas árvores escuras. Ela ia
finalmente vê-la! Tremeu um pouco…e não se apercebeu que era um pouco
por medo de perder o seu sonho. O que é sempre, na juventude como na
maturidade, uma catástrofe.
Ela seguiu através de uma vereda aberta entre vários abetos pequenos
que abafavam a saída da alameda. Os seus olhos estavam fechados;
atrever-se-ia a abri-los? Por um momento, o mais puro terror
trespassou-a e por pouco não se voltou e fugiu. Afinal...a Dama era
má. Quem sabe o que lhe poderia fazer? Poderia até ser uma bruxa. Como
é que não lhe tinha ocorrido antes que a Dama poderia ser uma bruxa?
Então, resoluta ela abriu os olhos e olhou em volta angustiada.
Era isto a Casa Sombria...a mansão escura, imponente, cheia de torres
dos seus sonhos? Isto!
Era uma casa grande, antes branca, agora de um cinzento indistinto.
Por aqui e por ali pendiam persianas antes verdes. Os degraus da
frente estavam partidos. Um triste alpendre envidraçado tinha agora a
maior parte dos vidros partidos. O trabalhado em volta da varanda
estava partido. Pois era apenas uma velha casa cansada de viver!
Nan olhou desesperada. Não havia nenhuma fonte…nenhum jardim...bem,
nada a que se pudesse chamar de jardim. O espaço em frente à casa,
rodeado de uma vedação esburacada, estava cheio de ervas daninhas
emaranhadas à altura dos joelhos. Um porco pachorrento entrincheirava-
se por detrás da vedação. Cresciam burdocks em volta do passeio do
meio. Pelos cantos cresciam ramos desmazelados de golden-clow mas
havia uma esplêndida braçada de lírios e perto dos degraus gastos via-
se um alegre canteiro de margaridas amarelas.
Lentamente, Nan seguiu em frente até ao canteiro das margaridas. A
Casa Sombria tinha desaparecido para sempre. Mas a Dama dos Olhos
Misteriosos permanecia. Com certeza ela era real...tinha que ser! O
que é que a Susan tinha realmente dito sobre ela há tanto tempo?
“Bendito seja Deus, quase me borrei de medo!” disse uma voz abafada,
se bem que amigável.
Nan olhou para a figura que aparecera subitamente por detrás do
canteiro das margaridas. Quem era esta? Não podia ser…Nan recusava-se
a acreditar que esta era a Tomasine Fair. Seria demasiado terrível!
“Ora,” pensou Nan, magoada pela desilusão, ”ela...ela é velha!”
Thomasine Fair, se realmente era ela...e Nan sabia agora que era a
Thomasine Fair...era com certeza velha. E gorda! Parecia um edredão de
penas com um cordel atado ao meio, como dizia a Susan sempre que se
falava de uma senhora mais forte. Estava descalça, usava um vestido
verde que desbotara para um tom amarelado, e um velho chapéu de homem
em feltro por cima dos poucos cabelos cinzentos. O seu rosto era redondo como um O, enrugado e avermelhado, com um nariz esborrachado.
Os olhos dela eram de um azul pálido, rodeados por grandes pés de
galinha de aspecto alegre.
Oh, minha senhora...minha delicada Dama Malvada com os Olhos
Misteriosos, onde estás? No que te tornaste? Tu exististe!
“Bem, linda menina, e então tu és quem?” perguntou Thomasine Fair.
Nan agarrou-se à sua boa educação.
“Eu...eu sou a Nan Blythe. Eu vim cá trazer-lhe isto.”
Thomasine agarrou no pacote muito contente.
“Bem, que alegria ter os meus óculos de volta!” disse. “Senti-lhes
muito a falta para ler os meus almanaques nos Domingos. E tu és uma
das meninas Blythe? Que cabelo tão bonito que tu tens! Eu sempre tive
vontade de as conhecer. Ouvi dizer que a vossa Mãe as está a educar
cientificamente. Vocês gostam?”
“Se gostamos do quê?” Oh, Dama malvada e encantadora, tu não lias o
almanaque aos domingos. Nem falavas da Mamã.
“Ora, de serem educados cientificamente.”
“Eu gosto da maneira como estou a ser educada,” disse Nan, tentando
sorrir, mas não sendo muito bem sucedida.
“Pois, a tua Mãe é uma grande senhora. Ela tem-se aguentado. Eu da
primeira vez que a vi no funeral da Libby Taylor eu achei que ela era
uma noiva, de tão feliz que parecia. Eu sempre achei que quando a tua
mãe entra numa sala as pessoas ficam assim arrebitadas, à espera que
aconteça alguma coisa. As modas de agora ficam-lhe muito bem. A maior
parte de nós não fomos talhadas para elas, parece-me. Mas entra e
senta-te um bocadinho...eu fico sempre contente por ver alguém...isto
é um bocado sozinho de vez em quando. Eu não posso pagar o telefone.
As flores fazem-me companhia...já alguma vez viste margaridas mais
bonitas? E eu tenho um gato.”
Nan só pensava em fugir para os confins da Terra, mas sentiu que não
seria bom magoar os sentimentos da velhota recusando-se a entrar.
Thomasine, com o saiote a aparecer por baixo da saia, entrou à sua
frente rangendo os degraus para uma divisão que era sem dúvida uma
cozinha e sala de estar combinadas. Estava escrupulosamente limpa e
alegre com muitas plantas de interior. O ar estava cheio do aroma
agradável do pão acabado de fazer.
“Senta-te aqui,” disse gentilmente Thomasine, indicando-lhe uma
cadeira de baloiço com uma almofada de retalhos alegres. “Eu vou tirar
esses jarros do seu caminho. Eu vou tirar a minha placa de baixo. Fico
sempre um bocado estranha sem ela, não fico? Mas magoa-me um bocado.
Bem assim já falo melhor.”
Um gato ás manchas, emitindo vários tipos de miaus, veio cumprimentá-
la. Oh, os galgos de um sonho desaparecido!
“Esse gato é um grande caçador de ratos,” disse Thomasine. “Este sítio
está cheio de ratos. Mas é um bom tecto e eu fartei-me de viver com
parentes. Não tinha nada à minha vontade. Toda a gente me dava ordens.
A mulher do Jim era a pior. Queixou-se que eu estava a fazer caretas à
Lua numa noite. E depois, se estivesse? Será que a Lua se ofendia? E
eu disse-lhes: ‘não vou ser esfregão muito mais tempo.’ Por isso vim
para aqui sozinha e vou cá continuar enquanto as minhas pernas puderem
comigo. E então, o que queres comer? Queres que te faça uma sandes de
cebola?”
“Não...não, obrigada.”
“Fazem muito bem ás constipações. Eu ando com uma...reparaste como
estou rouca? Mas eu ato um bocado de flanela encarnada com turpentine
e gordura de ganso à volta da garganta quando me vou deitar. Não há
nada melhor.”
Flanela encarnada e gordura de ganso! Já para não falar da
Turpentine!”
“Se não queres a sandes...de certeza que não?...vai lá ver o que está
naquela caixa de biscoitos?”
As bolachas...cortadas com o feitio de galos e patos...eram
surpreendentemente boas e quase se derretiam na boca. A senhora Fair
brilhava de orgulho, olhando para Nan com os seus olhos redondos.
“Agora vais gostar de mim, não vais? Eu gosto que as meninas gostem de
mim.”
“Eu vou tentar,” gaguejou Nan, que naquele momento odiava a pobre
Thomasine Fair como só se pode odiar aqueles que nos destroem as
ilusões.
"Now you'll like me, won't you? I like to have little girls like
me."
“Eu também tenho uns netinhos lá para o Oeste, sabes?”
Netinhos!
“Eu mostro-te as fotografias deles. São bonitos, não são? E este é o
meu pobre Paizinho. Faz vinte anos que morreu.”
O retrato do pobre Paizinho, o marido de Thomasine Fair, era um grande
desenho a carvão de um homem com barba e uma franja de cabelo branco
encaracolado rodeando uma cabeça careca.
Oh, amor desdenhado!
“Ele era um bom marido, apesar de ter ficado careca aos trinta anos,”
disse a senhora Fair emocionada. “Eu tive muitos pretendentes quando
era nova. Eu agora estou velha, mas diverti-me muito em nova. Os
namorados no Domingo à noite! A tentarem empurrar-se uns aos outros! E
eu a fazer-me mais esquisita que uma rainha! O Paizinho esteve lá
desde o princípio mas eu não tinha nada para lhe dizer. Eu gostava
deles um bocado mais vistosos. Havia o Andrew Metcalf…eu estive quase
para fugir com ele. Mas eu sabia que não me ia dar sorte. Nunca fujas
com ninguém, pequena. Dá azar, não deixes que ninguém te convença do
contrário.”
“Eu não fujo...de verdade que não.”
“E acabei por casar com o Paizinho. A paciência dele acabou e deu-me
vinte e quatro horas para me decidir. O meu Pai queria que eu
assentasse. Enervou-se quando o Jim Hewitt se afogou porque eu não o
quis. Eu e o Paizinho fomos muito felizes assim que nos habituámos um
ao outro. Ele dizia que eu estava bem para ele porque não era de
pensar muito. O Paizinho dizia que as mulheres não se tinham feito
para pensar. Dizia que ficavam ‘ressequidas e pouco naturais’. Não
podia comer feijões guisados e tinha ataques de lumbago mas o meu
bálsamo de balmagília ajudava-o sempre. Houve um especialista na
cidade que lhe disse que o curava para sempre, mas o Paizinho disse
que se um homem se metia nas mãos desses especialistas nunca mais se
dava curado...nunca mais. Eu sinto tanto a falta dele para alimentar o
porco. Ele gostava muito de porco. Eu nunca como um bocadinho de bacon
que não me lembre dele. Aquela figura ao lado da do Paizinho é a da
Rainha Vitória. Ás vezes eu digo-lhe, ‘Se te tirassem as rendas e as
jóias, minha querida, duvido que fosses mais bonita do que eu.’”
Antes de deixar que a Nan se fosse embora ela insistiu que a pequena
levasse um saquinho de rebuçados de hortelã-pimenta, uma jarrinha de
vidro cor-de-rosa e um copo de geleia de arandos.
“Isso é para a tua mãe. Eu sempre tive sorte com a minha geleia de
arandos. Eu vou a Ingleside um dia destes. Quero ver esses vossos cães
de porcelana. Diz à Susan Baker que eu lhe agradeço muito o molho de
nabiças que ela me mandou na primavera.”
“Nabiças!”
“Eu ia-lhe agradecer no funeral do Jacob Warren mas ela foi-se embora
muito cedo. Eu gosto de me demorar nos funerais. Há um mês que não
temos nenhum. Eu acho sempre que é um aborrecimento quando passa muito
tempo sem um funeral. Em Lowbridge têm sempre muitos. Não parece
justo. Vens cá ver-me mais vezes, não vens? Tu tens qualquer coisa de
especial…’um serviço dedicado é mais valioso que o ouro e a prata’ é o
que diz na Bíblia, e eu acho que é verdade.”
Ela sorriu de maneira agradável a Nan...ela tinha um sorriso muito
doce. Nele se podia ver a bela Thomasine de há muitos anos. Nan
conseguiu retribuir-lhe outro. Os olhos dela ardiam-lhe. Ela tinha que
se ir embora antes que começasse a chorar.
“Que menina tão bem comportada,” pensou a velha Thomasine Fair,
olhando através da janela para Nan. “Não tem o dom da palavra como a
Mãe dela, mas talvez até seja o melhor. A maior parte das crianças
hoje em dia acham-se muito espertas quando estão só a ser atrevidas. A
visita da pequena quase me fez sentir jovem outra vez.”
Thomasine suspirou e saiu para acabar de cortar as suas margaridas e
mondar alguns burdocks.
“Graças a Deus, tenho-me conservado ligeira,” reflectiu.
Nan voltou a Ingleside mais pobre por um sonho perdido. Um vale cheio
de malmequeres não a conseguiu atrair...a água corrente chamou por ela
em vão. Ela só queria chegar a casa e fechar-se longe da vista de
todos. Duas meninas que se cruzaram com ela riram-se nas suas costas.
Estariam a rir-se de si? Agora toda a gente se podia rir dela se
soubesse! A palerma da Nan Blythe que teceu um romance com teias de
fantasia sobre uma rainha pálida e misteriosa, e em vez disso
encontrou a viúva do paizinho e rebuçados de hortelã-pimenta.
Hortelã-pimenta!
Nan não ia chorar. As meninas de dez anos eram grandes demais para
chorar. Mas sentia-se incrivelmente desanimada. Qualquer coisa
preciosa e linda se tinha perdido...desaparecido…um segredo que lhe
trazia alegria e que nunca mais seria dela outra vez. Encontrou
Ingleside cheia do cheiro delicioso de bolachas de especiarias mas não
foi à cozinha pedir algumas a Susan. Ao jantar o seu apetite estava
visivelmente fraco, apesar de ver nos olhos de Susan a ameaça de óleo
de fígado de bacalhau. Anne tinha reparado que Nan estava muito calada
desde que regressara da velha casa do MacAllister...Nan que cantava
desde o nascer do sol até ao anoitecer. Será que a caminhada naquela
tarde quente tinha feito mal à criança?
“Porque é que estás tão angustiada, filha?” perguntou, quando foi ao
quarto das gémeas pôr toalhas lavadas ao anoitecer e encontrou Nan
enrolada no banco da janela, em vez de estar com os outros a caçar
tigres em Rainbow Valley.
Nan tinha decidido não dizer a ninguém que tinha sido tão tola. Mas
com a Mãe, certas coisas descobriam-se sozinhas.
“Oh, Mãe, tudo na vida tem que ser uma desilusão?”
“Nem tudo, querida. Queres contar-me o que te desiludiu hoje?”
“Oh, Mamã, a Thomasine Fair é...é boa! E tem o nariz arrebitado!”
“Mas filha,” perguntou Anne com uma surpresa sincera,”o que é que
interessa se ela tem o nariz arrebitado ou não?”
E ela explicou tudo. Anne escutou com a sua usual expressão séria,
rezando para não se descair em riso. Lembrou-se da criança que fora em
Green Gables. Lembrou-se do bosque assombrado e de duas meninas que
tinham ficado apavoradas com as suas próprias histórias. E ela
conhecia bem a amargura de perder um sonho.
“Não podes levar as tuas fantasias tão a peito, querida.”
“Eu não consigo evitar,” disse Nan desesperada. “SE eu pudesse viver a
minha vida outra vez não ia imaginar nada de nada. E nunca mais o vou
fazer.”
“Minha palerma querida…minha querida palerma querida, não digas isso.
A imaginação é uma coisa maravilhosa...mas como todos os dons somos
nós que temos que o possuir e não deixarmos que ele nos possua a nós.
Tu levas a tua imaginação um bocadinho a sério demais. Oh, é
maravilhoso...eu sei como é. Mas tu tens que saber em que lado estás
da fronteira entre o real e o imaginário. Nessa altura a tua
capacidade de fugir quando quiseres para um mundo lindo à tua vontade
vai ajudar-te a ultrapassar algumas situações mais duras na vida. Eu consigo sempre resolver melhor um problema da vida depois de uma
viagem ou duas à Ilha dos Encantamentos.”
Nan sentiu-se a recuperar o respeito por si mesma com estas palavras
de conforto e sabedoria. A Mãe afinal não a achava palerma. E sem
dúvida que algures no mundo havia uma Dama linda e malvada com Olhos
misteriosos, mesmo que não vivesse na Casa Sombria...que, como Nan
agora conseguia ver, não era um lugar tão mau afinal de contas, com
todas as suas margaridas e o seu amigável gatos malhado, os seus
gerânios e o retrato do pobre Paizinho. Era um sítio muito alegre e
talvez um destes dias ela fosse ver a Thomasine Fair e comesse mais
daquelas maravilhosas bolachas. Ela já não odiava a Thomasine.
“Que mãe tão boa que a Mãe é!” suspirou, no abrigo e santuário
daqueles braços tão amados.
A noite caía violeta acinzentada sobre a colina. A noite de Verão
escurecia à sua volta...uma noite de veludo e sussurros. Uma estrela
despontou sobre a grande macieira. Quando chegou a senhora Marshall
Elliot e a Mãe teve que ir para baixo, Nan estava novamente feliz. A
Mãe tinha dito que ia forrar o quarto com um papel novo amarelo botão
de ouro e comprar uma nova arca de cerdo para ela e para a Di
guardarem as suas coisas. Só que não seria uma arca de cedro. Seria
uma arca do tesouro encantada, que só se abriria se se murmurassem
umas palavras mágicas. Uma seria dita pela bruxa da neve, a fria e
linda branca bruxa da neve. O vento dir-lhe-ia outra, ao soprar-lhe ao
ouvido...um vento triste e cinzento que chorava. Mais tarde ou mais
cedo ela conseguiria descobrir todas as palavras que abriam a arca,
para a encontrar repleta de rubis, diamantes e pérolas.
Oh, a velha magia não tinha desaparecido. O mundo ainda estava repleto
dela.

Anne de Ingleside- L.M. MontgomeryOnde as histórias ganham vida. Descobre agora