Capítulo 35

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As crianças de Ingleside brincavam juntas, andavam juntas e tinham
todo o tipo de aventuras juntas; e cada uma delas, para além disto,
tinha a sua própria vida de sonho e fantasia.
Especialmente Nan, que primeiro que tudo inventada dramas secretos em
tudo o que via ouvia ou sonhava em reinos de maravilhas e romances
insuspeitos no seu círculo familiar. Começou por imaginar padrões de
danças élficas nos vales assombrados e dríades nas bétulas. Ela murmurava segredos ao velho salgueiro do portão e a velha casa dos
Bayley, agora desabitada, do outro lado de Rainbow Valley, era o que
restava da torre de um castelo em ruínas. Durante semanas podia
imaginar-se a filha de um rei sequestrada num castelo solitário frente
ao mar...durante meses uma enfermeira numa colónia de leprosos na
índia ou noutra qualquer região “lá muito longe”. “Lá muito longe”
sempre fora uma expressão mágica para Nan...como uma música que
vagamente se ouve num monte ventoso.
Á medida que crescia imaginava as suas histórias sobre as pessoas
reais que via na sua pequena vida. Especialmente as pessoas que via na
igreja. Nan gostava de observar as pessoas na igreja porque estavam
todos muito bem vestidos. Parecia quase um milagre. Eram tão
diferentes nos outros dias da semana.
Os calmos e respeitáveis ocupantes dos vários bancos de família teriam
ficado surpreendidos e talvez um pouco horrorizados se soubessem os
romances que a donzela de olhos castanho de Ingleside estava a tecer à
sua volta. A Anneta Millison, de cabelos castanho e coração terno,
teria ficado petrificada se soubesse que a Nan Blythe a imaginava uma
raptora de crianças, cozendo-as vivas para preparar poções que a
manteriam jovem para sempre. Nan imaginava isto com tanta convicção
que ficou em pânico certo dia em que encontro a Anneta Millison ao
anoitecer numa alameda repleta do murmúrio dourado dos botões d’ouro.
Foi simplesmente incapaz de responder ao cumprimento amigável de
Anneta pelo que ela concluiu que a Nan Blythe ia ser uma pequena
arrogante se alguém não lhe corrigisse severamente as maneiras. A
pálida senhora Palmer nunca sonhou que tivesse envenenado alguém e
estivesse a morrer de remorsos. O senhor Gordon MacAllister com o seu
rosto solene não sabia que uma bruxa lhe lançara uma maldição à
nascença, em resultado da qual ele nunca seria capaz de sorrir. O
Frase Palmer, de bigode negro e vida imaculada mal sabia que quando
Nan Blythe olhava para ele pensava “tenho a certeza que este homem
cometeu um acto desesperado e cruel. Parece ter um segredo terrível na
consciência.” E o Archibald Fyfe nunca suspeitou que sempre que a Nan
Blythe o via se apressava a inventar uma rima para lhe responder,
porque a ele só se podia responder em verso. Ele nunca lhe chegou a
dirigir a palavra, tendo um medo profundamente enraizado de crianças,
mas a Nan divertia-se imenso a inventar rimas sempre que o via.
“Estou muito bem, obrigada senhor Fyfe
E como está o senhor e a sua esposa (wife)?”
Ou
“Sim, é mesmo um lindo dia
Num dia assim é que se assobia.”
Nem se soube o que diria a senhora Kirk se soubesse que a Nan nunca
entraria na sua casa...mesmo que ela a tivesse convidado...porque
havia uma pegada vermelha no degrau de entrada dela; e a sua cunhada,
a calma gentil e negligenciada Elizabeth Kirk nunca sonhou que fosse
uma velha solteirona porque o seu noivo caiu morto no altar mesmo
antes do casamento.
Isto era tudo muito divertido e a Nan nunca se deixava perder entre
factos e ficção até que ficou possuída pela Dama dos Olhos
Misteriosos.
Nem vale a pena perguntar como é que os sonhos crescem. A própria Nan
nunca seria capaz de explicar como é que tudo se deu. Começou com a
Casa Sombria...Nan sempre a vira assim, em maiúsculas. Ela gostava de
imaginar novelas sobre os sítios tal como sobre as pessoas e a Casa
Sombria era o único sítio próximo, para além da velha casa do Bayley,
que se prestava a isso. Nan nunca vira a casa em si...ela apenas sabia
que ela lá estava , por detrás de um escuro e espesso abeto na estrada
para Lowbridge, e que tinha estado vaga desde tempos imemoriais, ou
pelo menos era o que dizia Susan. Nan não sabia na altura o que era imemorial, mas era uma palavra que ficava muito bem numa frase, mesmo
adequada a casas sombrias.
Nan corria sempre como doida quando passada pela alameda que dava para
a Casa Sombria quando ia pela estrada de Lowbrigde visitar a sua amiga
Dora Clow. Era uma alameda comprida e coberta de árvores escuras e
arqueadas, com uma relva grossa a crescer-lhes por entre as raízes e
fetos que lhe chegariam à cintura entre os abetos. Havia um grande
ramo de ácer cinzento perto do portão caído que parecia um velho braço
empenado que a procurava agarrar. Nan imaginava que um dia podia
esticar-se um pouco mais e agarrá-la. Davam-lhe arrepios de cada vez
que lhe escapava.
Certo dia, para seu assombro, Nan ouviu Susan dizer que a Tomasine
Fair ia viver para a Casa Sombria..., ou para a Velha casa dos
MacAllister, como a Susan sempre se referia a ela.
“Ela vai achá-la um bocado sozinha, imagino,” tinha dito a Mãe. “É tão
longe de tudo.”
“A ela não lhe vai fazer diferença,” disse Susan. “Ela nunca vai a
lado nenhum, nem sequer à igreja. Há anos que não sai de casa...apesar
de dizerem que ela passeia no jardim de noite. Pois pois, só de
imaginar no que ela se tornou...ela que era tão bonita e tão
namoradeira. Os corações que ela despedaçou no tempo dela! E quem
diria isso agora. Pois, é um aviso, é o que é.”
A quem exactamente se dirigia o aviso foi coisa que a Susan não
explicou e não se falou mais no assunto, porque ninguém em Ingleside
estava muito interessado na Tomasine Fair. Mas a Nan, que andava um
pouco aborrecida das suas fantasias antigas e ansiosa por arranjar
umas novas interessou-se pela Tomasine Fair na Casa Sombria. A pouco e
pouco, dia após dia, noite após noite...à noite conseguimos acreditar
em tudo...ela construiu toda uma lenda sobre ela até que todo o
conjunto surgiu irreconhecível e se tornou uma fantasia mais querida
por Nan do que qualquer outra que ela tivesse conhecido. Nada antes
lhe parecera tão excitante, tão real como esta história da Dama dos
Olhos Misteriosos. Grandes olhos negros como veludo...olhos vazios…
olhos assombrados…cheios de remorsos pelos corações que haviam
destruído. Olhos malévolos...qualquer pessoa que tivesse partido
corações e nunca fosse à igreja teria que ser maléfica. As pessoas más
eram tão interessantes. A Senhora isolava-se do mundo em penitência
pelos seus crimes.
Poderia ela ser uma princesa? Não, as princesas eram raras na ilha do
Príncipe Eduardo. Mas ela era alta, magra, distante, de uma beleza
gélida como a de uma princesa, com longos cabelos negros entrançados
por detrás dos ombros que lhe caíam até aos pés. Ela teria tido um
rosto de marfim, bem delineado, um lindo nariz grego como o da Artemis
do Arco Prateado da Mãe, e lindas mãos brancas que apertaria enquanto
passeava pelo jardim durante a noite, esperando o amor desprezado que
tarde demais aprendera a amar...compreendem como crescia a
lenda?...enquanto as suas longas saias de veludo negro deslizavam
sobre a relva. Ela usava um cinto dourado e grandes brincos de
pérolas, e teria que viver uma vida de mistério e sombra até o seu
amor a viesse libertar. Então, arrepender-se-ia da sua malvadez, da
sua insensibilidade, e estender-lhe-ia as suas lindas mãos e baixaria
a sua cabeça orgulhosa por fim em submissão. Sentar-se-iam perto da
fonte...nesta altura já havia uma fonte...e trocariam juras de amor, e
ela segui-lo-ia, “sobre os montes e mais além, para lá das orlas mais
púrpura”, tal como a Princesa Adormecida do poema que a Mãe lhe lia,
daquele velho volume de Tennison que o Pai lhe dera há muitos muitos
anos. Mas o amor da Dama dos Olhos Misteriosos dava-lhe jóias
incomparáveis.
A Casa Sombria estaria agora lindamente mobilada, claro, e haveriam
quartos secretos e escadas, e a Dama dos Olhos Misteriosos dormiria
numa cama de madrepérola debaixo de um dossel de veludo lilás. Seria servida por um galgo...por uma série deles...todo um séquito...e
estaria sempre à escuta...à escuta...buscando a música de uma harpa
distante. Mas não a conseguiria ouvir enquanto o seu amado viesse
perdoá-la...e assim era.
Claro que tudo parece agora uma palermice. As fantasias todas parecem
palermas quando são postas em palavras frias e brutais. Aos dez anos,
a Nan não as punha em palavras...apenas as vivia. Esta fantasia da
Dama dos Olhos Misteriosos tornou-se para ela tão real como a vida que
se passava à sua volta. Tomou posse dela. Há dois anos que fazia parte
dela…e de certa forma, começava a acreditar nela. Nunca na vida diria
nada a ninguém, nem mesmo à Mãe. Era o seu tesouro particular, o seu
segredo inalienável, sem o qual ela não conseguia imaginar o mundo.
Ela preferia ficar a sonhar com a Dama dos Olhos Misteriosos do que ir
brincar para Rainbow Valley.
Anne reparou nesta tendência e preocupou-se um pouco com ela. Nan
isolava-se muito. Gilbert pensou em mandá-la a Avonlea para fazer uma
visita, mas pela primeira vez Nan implorou que não a mandassem. Não
queria sair de casa, disse tristemente. Para si própria dizia que
morreria se tivesse que se afastar da estranha bela Dama dos Olhos
Misteriosos. Para dizer a verdade, a Dama nunca ia a lado nenhum. Mas
poderia fazê-lo, e se Nan estivesse fora perderia essa oportunidade de
a ver. Como seria maravilhoso apenas vislumbrá-la! A própria estrada
por onde ela passasse ficaria para sempre romântica. O dia em que isso
acontecesse seria diferente de todos os outros dias. Ela marcá-lo-ia
no calendário. Nan chegou ao ponto em que o que mais desejava era vê-
la, nem que fosse uma só vez. Ela sabia bem que muito do que ela
imaginara só existia na sua imaginação. Mas não tinha a mais pequena
dúvida que a Tomasine Fair era jovem e bela, malvada e provocante...na
tinha nesta altura a certeza que ouvira Susan dizê-lo...e enquanto ela
assim fosse, Nan podia continuar a imaginar coisas sobre ela para
sempre.
Nan mal podia acreditar nos seus ouvidos quando certa manhã ouviu
Susan dizer:
“Tenho aqui um pacote que quero mandar à Tomasine Fair, lá para a casa
velha do MacAllister. O teu Pai trouxe-o da cidade ontem à noite. Não
ias lá esta tarde, querida?”
E pronto! Nan retomou o fôlego. Iria mesmo? Será que os sonhos se
realizam mesmo assim? Será que ela ia ver a Casa Sombria e a Dama dos
Olhos Misteriosos? Vê-la realmente...talvez ouvi-la falar…talvez…oh,
abençoada sorte!...tocar-lhe na esguia mão branca. E quanto aos galgos
e à fonte e assim, Nan apenas os tinha imaginado mas com certeza que a
realidade seria igualmente encantadora.
Nan ouviu o relógio toda a manhã, vendo o tempo passar
lentamente...oh, tão lentamente...cada vez mais perto. Quando caiu uma
trovoada e a chuva começou a bater contra os vidros das janelas ela
mal susteve as lágrimas.
“Eu não sei como é que Deus permitiu que chovesse hoje,” murmurava
rebelde.
Mas a chuvada depressa passou e o sol brilhou novamente. Nan mal
conseguiu almoçar com a excitação.
“Mamã, posso usar o meu vestido amarelo?”
“Porque é que queres usar esse vestido para ires a casa de uma
vizinha, filha?”
Uma vizinha! Mas claro que a Mãe não compreendia...não podia
compreender.
“Por favor, Mamã.”
“Leva-o lá,” disse Anne. O vestido amarelo depressa lhe ficaria curto.
Bem podia deixar a Nan aproveitá-lo agora.
As pernitas de Nan tremiam quando ela saiu de casa, com o precioso
pequeno embrulho na mão. Ela tomou um atalho através de Rainbow
Valley, subindo uma colina e indo dar à estrada. As gotas de chuva ainda brilhavam nas folhas dos nastúrios como grandes pérolas; havia
uma deliciosa frescura no ar; as abelhas zuniam no trevo branco que
ladeava o riacho; libelinhas elegantes e azuis brilhavam por cima da
água...agulhas do demónio, chamava-lhes Susan; nas pastagens do monte
os malmequeres acenavam-lhe...cativavam-na...riam-se para ela com um
riso fresco de ouro e prata. Estava tudo tão lindo e ela ia ver a
linda Dama dos olhos Misteriosos. O que lhe diria a Dama? E se ela
ficasse com ela apenas uns minutos e descobrisse que tinham passado
anos, como naquela história que o Walter tinha lido na semana passada?

Anne de Ingleside- L.M. MontgomeryOnde as histórias ganham vida. Descobre agora