Cada vez melhor! Será?

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Após a ilustração da história de vida do André, que deixou se levar pelas reações negativas, tomando atitudes que o levaram a resultados mais negativos ainda, pode-se perceber que um mesmo problema pode ter diferentes soluções. O seu enfrentamento, com iniciativa, criatividade e flexibilidade, certamente o teria levado para um desfecho melhor. Mas isso não quer dizer que basta imaginar para que tudo lhe seja dado. Da forma como esse texto tem sido conduzido, até parece que basta você querer para que o universo conspire e tudo lhe seja oferecido. Parece até que com o simples facto de pensar positivamente, tudo se pode alcançar, pois a fonte é o universo e este é inesgotável. A ideia defendida, entretanto, não é essa. Particularmente, acredito no direito de ser ranzinza, inclusive, que deveria ser tão relevante quanto a obrigação de ser sorridente. Muitos livros de auto-ajuda sustentam a ideia de sorrir sempre. Com isso, perdeu-se o direito de não estar de bom humor, independentemente da condição emocional na qual o sujeito se encontra.
A história abaixo ilustra muito bem a tendência que se criou com a ditadura da auto-ajuda. Trata- se de um facto verídico em que o principal personagem, em qualquer situação, sempre afirmava: "Cada vez melhor...".
Peter e José eram amigos desde a infância. Foram criados no mesmo bairro. Desde criança, estudaram juntos, sempre na mesma sala, na mesma turma e no mesmo horário. Quando terminaram o Ensino Médio, a vida os enviou para caminhos diferentes. Peter seguiu os estudos universitários, fez uma graduação em engenharia e mais tarde tornou-se empresário. José parou de estudar, casou-se cedo e engajou-se na vida comunitária do bairro. Passado um tempo, candidatou-se e foi eleito Administrador. Os dois ainda continuavam grandes amigos, embora seus encontros fossem cada vez mais raros, porque cada um tinha a sua vida para gerir.
Peter se preocupava com os seus clientes, com a qualidade dos serviços prestados, com o atendimento que deveria sempre ser impecável, porque uma ponta solta ou uma situação mal resolvida com algum cliente poderia gerar grandes perdas no seu negócio. Assim, Peter sempre apresentava-se bem vestido e com modos extremamente educados. Havia adotado também uma postura que demonstrava a visão positiva que tinha do mundo. Essa postura estava fundamentada em cursos, formação, nas necessidades do mercado e na alta concorrência que assim o exigia. Lembrava-se sempre de que o sorriso e o bom humor cativam as pessoas.
Por outro lado, José vivia a sua roda viva de forma semelhante, embora com muito menos tempo dedicado aos estudos ou a uma formação específica. Mas, para ele, "o melhor curso é a vida!" e acreditava que era o exemplo disso. Sem nenhum curso universitário, havia formado e sustentado uma família. Seus três filhos já eram adultos e estavam na universidade. A esposa cuidava da casa e ainda fabricava doces, pães e outras guloseimas caseiras, que eram vendidas de porta em porta no bairro. E ele trabalhava na associação comunitária, resolvendo problemas e atendendo as situações mais difíceis de muitas pessoas. Mas, mesmo assim, ele havia dedicado algum tempo para a sua formação. Logo após a primeira eleição em que concorreu foi derrotado, aprendeu a cuidar da imagem frente ao público de interesse. Rapidamente, incorporou na sua forma de ser frases positivas ao cumprimentar as pessoas, os seus clientes. Assim, quando lhe perguntavam como ele estava, sempre respondia com presteza: "Cada vez melhor!", dava um firme aperto de mão e abria um sorriso.
Sorriso esse que servia para aproximar seus futuros eleitores. Com essa estratégia, partiu para a segunda eleição e obteve uma vitória.
Certa vez, Peter estava entrando no prédio de sua cidade e viu, ao longe, o seu amigo José. Peter circulava nesse espaço semanalmente para resolver alguma pendência dos seus negócios, pois sua empresa funcionava a apenas alguns quarteirões dali. José, que ainda morava no bairro e estava participando das disputas de sua terceira eleição, parecia que estava um pouco deslocado ao olhar para as placas e letreiros, notadamente buscando alguma informação. Parecia também um tanto preocupado, com uma feição muito séria e, até certo ponto, triste. Peter dirigiu-se a ele, que, quando o viu, abriu um largo sorriso e veio ao seu encontro. Peter disse: "Bom dia, José, que bom vê-lo! Quanto tempo? Como você está?"
José, como de hábito, respondeu com um sorriso no rosto: "Cada vez melhor! E você?"
Peter continua: "Também estou bem. Mas o que você está fazendo por aqui? Acho que nunca te encontrei por estes lados..."
Rapidamente a expressão do rosto de José se alterou, voltando aquela expressão de preocupação e tristeza anteriores. Como que caindo em si, sem saber como dizer, com a voz quase sumindo, comenta: "Na verdade, estou voltando do enterro da minha mãe, que faleceu ontem. Estou procurando o Cartório de Registro Civil que fica neste prédio e..."
Parou de falar, porque seus olhos se encheram de lágrimas. Ele se havia dado conta de que nem sempre se está "cada vez melhor!".
O exemplo chega a ser cruel; entretanto, é verdadeiro. Desse modo, a ditadura da auto-ajuda tem roubado das pessoas o direito às frustrações a que todos estão sujeitos, sejam elas profissionais ou pessoais. Com isso quero dizer que é fundamental ter uma visão positiva, assim como olhar mais uma vez para todas as situações, porém não de uma forma tão superficial como expressada por tantos livros. Não sem dar o direito às pessoas a constatar a existência de problemas, que existem e afetam diretamente quem neles se vê envolvido.
Veja então um e-mail enviado, próximo aos dias de Natal, por uma tia para a sua sobrinha: Querida sobrinha:
Aqui tudo bem...... Natal com chuva.....
A tia Iracelma tropeçou e torceu o pé em três lugares, teve que fazer cirurgia.....no mais a mais a família tá bem....gripe de verão afectou-nos.
Trabalhamos muitoooo.....uma loucura.
Não vejo a hora de tirar férias.....
Beijos..... um Natal muito.... muitooooo.... felizzzz.... Saudades.
Tia Catarina
Alguém consegue acreditar que esteja realmente tudo bem? Essa pessoa está com problemas, mas, pela pressão da ditadura da auto-ajuda, sente a necessidade de sempre mostrar uma face positiva. Apresenta a mesma superficialidade expressada por José. Por que essa pessoa, com tantas notícias desagradáveis, não pode ter o direito de não estar bem nesse momento?
Entretanto, quando a competição da miséria é uma constante, de nada adianta dizer "Por aqui tudo bem..." para depois emendar uma sequência de notícias más, próprias, dos vizinhos, ou dos parentes. Nesse caso, o exemplo pode ocultar uma pessoa completamente negativa,

daquelas que pensam "No dia em que eu montar uma empresa para vender chapéus o povo vai nascer sem cabeça".
Certamente que técnicas de auto-ajuda e programação mental, entre outras, podem ser aproveitadas porque colaboram na manutenção do foco e, consequentemente, no alcance de resultados. Muitas dessas técnicas podem atuar em diferentes esferas da vida, prestando-se a organizar, disciplinar, mentalizar e executar o planejado em aspectos pessoais, profissionais e sociais. Apenas deve-se ressaltar para a superficialidade do proposto, que termina por padronizar as acções, as reacções, os sentimentos, deixando o comportamento parecido com o de computadores com movimentos. Nada contra a adoção de práticas que possibilitem ao indivíduo a sua auto-realização, muito pelo contrário, tudo a favor. Mas o problema é que, invariavelmente, as metodologias propostas levam as pessoas a acreditar que a realização dos sonhos passa pela necessidade de ter e não de ser. Pode-se começar com algumas historias bonitas que destacam a importância da pessoa estar bem consigo mesma, mas termina-se com a descrição dos sonhos de cada um, em que aparecem carrões e mansões, demonstrando o materialismo absoluto. Com a adoção das práticas de programação mental ou de auto-ajuda propostas em todas as esferas da vida, cria-se o sujeito idiota, sempre feliz, com uma resposta para todas as perguntas, pois tem a certeza e a segurança absoluta que o universo lhe pertence. Não há espaço para a dúvida, para a incerteza, para a ansiedade ou para o medo, que dentro de dosagens sadias estimulam o indivíduo a pensar, a criar e a agir. Nos sujeitos cem por cento programados, a originalidade e a criatividade são aspectos afetados imediatamente. Isso porque com a vida programada em todas as suas áreas, que papel restaria para a espontaneidade, que é a mãe de ambas. Vale a pena Sei lá, eu ainda prefiro sentir um certo medo e uma dose de ansiedade antes de um encontro romântico ou de uma competição. Por isso, não se deve permitir a exclusão do direito de se emocionar, de sentir, de chorar, seja de alegria ou de tristeza, pois é isso que faz com que alguém se sinta humano. Por fim, isso não quer dizer que não se deva acreditar que em todas as situações, mesmo nas aparentemente mais negativas, existam aspectos positivos a serem considerados.
Sempre se pode olhar mais uma vez.

Uma nova oportunidadeWhere stories live. Discover now