Parte 1

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Escrevo porque tenho medo de esquecer.

[Saturn - Sleeping at Last]

Olhando pela janela do avião, sentia um frio na barriga, era a minha primeira vez em um. Havia todo um mundo ali fora, todas as sensações eram novas, eu não sabia o que esperar. Passaria seis meses fora de casa, em um país diferente, estudando. Mas o intuito principal sempre foi a experiência, os estudos eram uma desculpa. Escapar por um momento da rotina de sempre e ver, pela primeira vez, o mundo fora da minha caixa. Durante quase todo o voo eu estava funcionando no piloto automático, não acreditava que estava ali e em tudo que estava prestes a acontecer.

Peguei minha mala e ao sair do aeroporto soltei o cabelo para me proteger do vento frio, apesar de ainda ser verão, o clima era outro. O inquilino, Paulo, foi me buscar e, no carro, eu observava cada detalhe, queria lembrar de tudo. Ele era português, alto e desengonçado, muito simpático. Aos poucos a cidade ia tomando forma pela janela, Porto. Pouco sabia sobre Portugal, fui com a cara e a coragem, mas tudo isso me deixava ainda mais animada. Fui a terceira a chegar no apartamento, posso dizer que ainda estava vazio. O Paulo me ajudou com as malas, me entregou as chaves e o contrato, me explicou as regras da casa, onde moraria com mais sete meninas e se despediu. A primeira que se apresentou, Letícia, sorridente, com longos cabelos castanhos e lisos. Logo em seguida veio a Bia, com sotaque neutro, como dizíamos. Era um pouco mais alta, cabelo loiro, curto e bagunçado. Elas tentaram me explicar onde ficava o mercado, meu celular estava sem chip e sem internet, apenas com o wi-fi. Mas o esforço delas foi em vão, visto que assim que saí do apartamento, já tinha esquecido todas as direções.

"Era esquerda ou direita?" Eu perguntava a mim mesma. Chutei a direita e acabei dando de cara com uma fonte. Ninguém falou de uma fonte, mas continuei. Parecia um bairro deserto, poucos carros e ninguém na rua. Achei um mercadinho no térreo de um prédio, bem pequeno com uma senhora no caixa. Comprei o que precisava para comer naquele dia e paguei com uma nota de vinte euros. 

- Não tem uma nota menor? - Ela perguntou, vinte euros é uma nota alta no país e não é muito usada no dia a dia.

- Desculpa, não tenho. Cheguei hoje de viagem.

Ela me deu as boas-vindas e o troco. Acabou que, depois que descobri o lado "certo", nunca mais voltei por ali. Do lado de casa tinha uma vendinha, daquelas que vende frutas e alguns frios. Na volta, entrei pra conhecer e o dono era um senhor, que também morava ali. Comprei uma manteiga e dois litros de suco de maçã, que provei pela primeira vez no jantar do voo e gostei. Levou uma semana pra eu tomar os dois litros. Nunca mais tomei suco de maçã.

No dia seguinte, nós três - eu, Bia e Letícia - estávamos na rua, elas iriam me apresentar o centro da cidade. Eu precisava comprar um chip de celular. As aulas não tinham começado, todas estavam descobrindo a cidade e sem compromisso nenhum. Então, nossos dias se resumiam em topar qualquer rolê. "Tô indo no mercado, querem ir?", "Querem ir passear no centro?" e a resposta era sempre sim.

A semana passou rápido, tudo era novo, as horas voavam e eu ainda estava me acostumando com o fuso horário. O verão estava no fim, mas os dias ainda eram longos, o pôr do sol acontecia por volta das 21h. Não demorou muito para chegar mais uma integrante da casa, ela se chamava Gabi e era minha colega de quarto, bem extrovertida e com grandes cachos com luzes. Alguns dias depois era o seu aniversário, 7 de setembro, e combinamos de sair, ir ao Jardim do Morro assistir o pôr do sol. A quinta menina chegou, Cris "Paulista", ela já era adulta, tinha uma filha da nossa idade. Mas isso não a impedia de se enturmar. Adorava bater um papo e trocar receitas. No dia do aniversário da Gabi, a Cris precisou resolver algumas coisas e não foi, então eram só eu, Gabi, Bia e Letícia. O nome Jardim do Morro já se descreve por si só, é um morro acima do rio, formado por um grande jardim e food trucks sazonais, que são montados no verão ou em alguma ocasião especial. Nesse dia aconteceu um festival de cerveja, estava bem cheio, porém agradável. Gaivotas pousavam de vez em quando para agarrar algum resto de comida deixado pelas pessoas. Eu levei brigadeiro, tiramos fotos, conversamos, rimos e o sol se pôs. Fomos dar uma volta pelo jardim, eu estava seguindo o fluxo, a Gabi estava atrás de um amigo em comum, que eu já tinha ouvido falar. Ainda restava um pouco de luz do sol no céu, mas as luzes do jardim já haviam sido ligadas, uma música tocava no fundo e as meninas pararam de andar. Gabi se afastou e logo voltou em nossa direção com um menino, ele segurava um copo de cerveja. Ele era mais ou menos da mesma altura que ela, cabelo curto, escuro e uma barba, típico português.

- Meninas, deixem eu apresentar para vocês, esse é o Miguel. Ele mora em uma cidade perto, mas estuda aqui. Temos uns amigos em comum. Miguel, essas são Bia, Letícia e Camila." - Eu já tinha visto ele. Fiquei nervosa. Tínhamos os mesmos amigos em comum, eu o tinha visto no Instagram. Lembro de tê-lo achado simpático na época. Continuei nervosa, o que ele tinha achado de mim? Enquanto Gabi falava, ele cumprimentava as meninas. Nós nos juntamos ao resto do grupo de amigos e ficamos conversando o resto da noite. O grupo foi se dispersando.

- Por acaso, vocês já comeram francesinha? - Miguel perguntou pra mim e Gabi ao nos despedirmos. Eu já tinha ouvido falar, mas ainda não tinha tido a oportunidade de provar.

Ao dizermos que não, marcamos de sair e comer francesinha no dia seguinte. Era um prato típico portuense, pão, alguns tipos de carne, queijo, fiambre, ovo e molho de francesinha. Encontramos com ele e um amigo brasileiro no Jardim do Morro no fim da tarde, conversamos um pouco por lá e a fome bateu. Fomos nos dois restaurantes mais famosos pelo prato típico, um fica ao lado do outro e ambos tem uma placa "A melhor Francesinha do mundo!". Mas a fila pra entrar estava grande. Seguimos andando pelas ruas do Porto, procurando um restaurante que servisse francesinha e que estivesse sem fila, enquanto isso, a conversa fluía. Eu e Miguel começamos uma conversa sem fim, um assunto emendava em outro. Ele me mostrou o Fado, rimos, achamos um gosto incomum, Imagine Dragons. Seu sotaque português era hipnotizante, engraçado, amava o jeito que ele falava "mas". Entramos em um restaurante, o dono nos levou até a mesa e deixou os cardápios. Não demorou muito até escolhermos e fazermos o pedido. Eu e Gabi dividimos uma francesinha, caso não gostássemos. Os meninos pediram duas e duas "finas", que é o nosso chopp. Eu, particularmente, amei o prato, sabores e temperos diferentes. Foi o primeiro prato típico português que provei e se tornou o meu favorito. A noite passou rápido e quando vimos, estávamos nos despedindo.

- Ele é legal, né? - Gabi se virou pra mim e perguntou, na volta pra casa.

- Sim, até demais. - eu respondi em meio a mil pensamentos.

A semana passou com eventos da faculdade, festas de boas-vindas, piqueniques com os alunos internacionais no Parque da Cidade. Em todos esses eventos citados, eu e minhas roomates levávamos comida pra casa, a famigerada marmita. Na semana anterior ao início das aulas, ganhamos uma pulseira da U.Porto que nos dava acesso a vários museus e locais turísticos da cidade durante essa semana. Uma parceria da universidade com a prefeitura (lá chamada de câmara municipal) para promover o turismo, fomos ao planetário e à Casa da Música. Inevitavelmente, mesmo com tudo isso, Miguel não saia da minha cabeça. Em uma terça-feira, a Gabi chegou pra mim e disse que ele nos chamou pra assistir um jogo na Adega Sports Bar. Não sou muito fã de futebol, mas topava tudo pela experiência. Estive na Adega com as meninas há alguns dias, mas estava bem cheia e não ficamos muito. Dessa vez, iríamos assistir um jogo. Saímos de casa uns trinta minutos antes, mas eles já estavam lá. Miguel me mandou uma mensagem perguntando se íamos demorar porque o bar estava cheio. Eu disse que deveríamos chegar em vinte minutos.  

"Eu vejo em pé se for preciso" Ele respondeu, mas não foi preciso. 

Ao chegarmos tinha lugar na mesa, estávamos ao lado de uma mesa de franceses, o jogo era Liverpool x Paris Saint-Germain. Não lembro quem ganhou, mas foi divertido assistir rodeada de torcedores. Fui pra casa com a sensação de que precisava conversar mais com ele, queria conhecê-lo mais. No dia seguinte, arrumei coragem.

"Tá a fim de fazer alguma coisa amanhã?" Mandei a mensagem.

"Eiii, então? Amanhã não posso ir ao Porto, mas talvez na sexta de tarde."

Concordei.

"Tavas a pensar fazer o que?"

"Eu ia pedir pra você sugerir, não sei se tem algum lugar legal que preciso conhecer."

"Pronto, deixa-me pensar...Já foste ao Palácio de Cristal?"

"Já, mas foi rápido, não sei se vimos tudo."

"Hmmm, e ao Base Porto já foste?"

"Não"

"Bora lá então, depois vamos à Ribeira ou assim."

Era oficial, voltei a ficar nervosa.

high hopesWhere stories live. Discover now