Diná

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– O sangue vertido, a inocência perdida. Não mais serás menina, serás agora mulher. – disse a anciã a olhar as pernas manchadas da garota.

Todos à sua volta festejavam e ela não conseguia ver motivo. Sentia dor em suas entranhas, estava ferida. O sangue provava! Como podiam ser tão cegos? Como podiam ficar felizes em vê-la morrer em rios vermelhos? Mas eles insistiam. Era como se nada mais vissem em suas vidas, e isso a assustava mais do que as historias contadas pelos mais velhos sobre terríveis monstros e fantasmas.

– E agora mamãe, o que será dela? – perguntou a mulher de fartas carnes e ar cansado, de quem vem lutando a vida inteira por seu lugar no mundo.

– Agora só resta a ela um caminho. Pela idade e a época...

– Não! Isso nunca! Não podemos fazer isso, tem de haver outra maneira! – as lágrimas brotavam dos olhos vermelhos.

– Não pode ser diferente. Sabem bem como são as leis. – a velha continuou, apoiada em seu cajado, caminhando para a cadeira de balanço – temos de prepará-la antes que a lua cheia preencha o céu.

– Leis podem ser reescritas, ela é a filha do chefe! – uma voz se ergueu, e outras se uniram ao coro familiar.

– Basta! Um bom chefe é aquele que cumpre as normas pelo bem de todos. Pensem em todas as outras que foram antes dela, e todas as que irão depois... Agora pensem em seus pais e mães, na injustiça que seria com todos eles se, por um simples capricho, apenas eles sofressem a perda. Isso sem falar nos pais das dezenas de crianças que serão massacradas se Diná não for levada agora.

Todos, menos a menina, sabiam que caminho era aquele. Ante aquela lembrança alguns baixaram as cabeças, outros suspiraram, a mãe chorava inconsolável como se o destino que aguardava sua filhinha fosse negro demais para suportar. As mulheres deram-lhe um banho, a matriarca a vestiu e pegou-a pelo braço, praticamente a arrastando para fora, entregando ao pai a responsabilidade. A mãe saiu correndo do quarto onde esteve todo o tempo, entregue ao pranto, e deu uma bofetada em sua face.

– Por que não esperou? Por que não segurou o sangue dentro de ti? Por que não foi forte e impediu?

As companheiras a seguravam, para não deixar que tocasse novamente a pequena e assustada Diná, que nada entendia. Primeiro estavam todos felizes com sua morte, e agora era como um enterro. Talvez aquilo fosse realmente fatal. O chefe da família, com grande pesar, seguiu o livro das leis, tentando ignorar os gritos desesperados da esposa e o coração que lhe implorava para fugir. A garota, de não mais que nove anos, trazia no semblante a dor e a duvida. Por que a estavam levando para longe? Todos, quando iam morrer, eram movidos às pressas para junto dos seus, para dar seu ultimo suspiro em casa, rodeados de carinho e rezas. Por que justo com ela teria de ser diferente?

– Papai...

Mas o homem de cabelos grisalhos e semblante sombrio nada respondeu. Tinha um dever a cumprir e seria mais fácil se não pensasse na doce garotinha de olhos curiosos e pensamento ágil, aquela que, até horas atrás, era sua princesa e agora não era nada além de um sacrifício.

Passaram por um portão de grades altas e pontudas, e a imponência do local fez a menina tremer. À sua frente se erguia um enorme templo de mármore o qual adentraram trêmulos. Diná olhava para as enormes estátuas brancas e bem polidas, os altares secundários – de pedra rajada – aos cantos e o principal à frente, cheio de boa comida e bebida. Havia ali coisas que jamais sonhara conhecer o sabor, seus olhinhos se enchiam de felicidade. Seria uma recompensa por ter suportado aquelas horas de dor e agonia? O banquete do moribundo, talvez? Morrer não parecia tão ruim assim... Talvez aquela fosse uma festa, como as que os ricos davam para seus mortos mais queridos. Se fosse assim, por que a mamãe ficara tão brava? E onde estava ela? Nenhuma de suas perguntas parecia ter resposta, mas o que isso importava? Ia morrer mesmo... Pararam diante daquela imensidão negra e brilhante, repleta de cores e sabores, e o homem se ajoelhou diante dela.

– Ouça minha filha, aqui é o local onde terá direito a seu ultimo banquete antes do momento do sacrifício.

– Sacrificio? O que é isso? – o ânimo de ver todas aquelas coisas bonitas foi se desvanecendo.

– Apenas me escute, não temos muito tempo. A lei diz que se um sacrifício sobrevive por um mês, como mínimo, e consegue sair, então ganha sua liberdade para sempre e nosso povo não é penalizado. Não se pode permitir a um sacrifício que saia antes de um mês, ou um grande massacre será realizado. Apenas uma pessoa, um ladrão, conseguiu escapar. Antes que se fosse de nossas terras, foi-lhe perguntado seu segredo e ele o confiou somente a mim, com a promessa que só revelaria em caso de extrema importância.

– Papai, não consigo entender o que diz... Não faz sentido...

– Shh, escute criança! Coma apenas coisas saudáveis aqui. Frutas, carne e grãos, mas não demais. Coma doces também, pois te darão energia, mas não exagere ou ficará lenta. Quando terminar passe por aquele umbral.

Apontou a entrada do enorme labirinto de trepadeiras verdes floridas 

– E corra.  Corra como jamais em toda sua vida pensou em correr. Não pare por nada até que o dia amanheça. Ele disse também que há comida e água a cada esquina, e que são como manjares dos Deuses, mas não se engane e não pare! Pegue o que puder, coma e beba enquanto foge. Dizem que a criatura, seja o que for que há aí, se aproveita da noite para pegar suas vitimas, então seja mais esperta. Use o dia para dormir e descansar. Use a luz do sol como seu escudo protetor e guardião.  Segundo a lenda, os raios do dia o enfraquecem.  – com a manga enxugou os olhinhos pretos – E o mais importante: não chore nunca! É assim que ele te encontra. – segurou o delicado rosto com força, como se não quisesse que escapasse – Você só tem de ficar viva até a próxima lua cheia... Só isso... Então poderá encontrar o caminho de volta e tudo ficará bem. Viva, minha filha! Viva!

Diná não compreendia nada. Queria voltar para casa, mesmo que isso significasse comer a sopa de aipo, tão rala quanto ruim, mas que era o manjar de seu lar, ouvir as historias da velha matriarca da família... Não queria ser nenhum sacrifício, mesmo sem saber o que isso significava ao certo. Não queria nenhuma comida gostosa se tivesse que ficar tanto tempo longe da família. Se seu pai dizia que ela tinha de correr e de ficar viva, só podia ser por não estar morrendo. Se não estava morrendo não havia motivo para nada daquilo, ou havia? Sua lógica infantil começava a se bater com as falhas na rede do mundo, e suas certezas inocentes começavam a ser corrompidas pela crueldade. Enquanto pensava no que ouvira, em tudo que teria de fazer, as coisas que planejava dizer a seu pai para convencê-lo a voltarem logo para casa, não notou quando o homem – de olhos rasos de água – se foi. Tentou chamar, gritar, correr, mas tudo que encontrou foi um grande portão fechado.

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