O U T U B R O

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H A R R Y

Levei dez anos para aprender a odiar meu pai. Ele passava pela cidade com frequência suficiente apenas para ferrar com a cabeça da minha mãe até ela perder o emprego, dar todo o dinheiro que tinha para ele, entregar-lhe o coração mais uma vez, só para vê-lo ir embora de novo. No verão em que fiz 10 anos, minha mãe chorou por uma semana. Eu visitava os nossos vizinhos no estacionamento de trailers e contava-lhes a história de modo que tudo parecesse engraçado, esperando que me dessem algo para comer. Na cidade nos cafundós do Oregon de onde eu sou, costumava haver empregos em madeireiras, mas agora não há nada além de trabalhos de meio período que pagam por hora e com os quais é impossível sustentar uma família. Lá as mulheres trabalham e os homens só prestam para duas coisas: brigar e trepar. Aprendi bem cedo a brigar e, quando eu tinha 12 anos, a amiga do meu primo Kay lee me levou para o armário da área de serviço e me mostrou como trepar.

Com alguma prática, fiquei bom nisso também.

Talvez isso devesse ter bastado para mim. Parecia o suficiente para todo mundo. Mas há algo em mim que é como uma erva-daninha, sempre forçando caminho pelas frestas em busca de luz, em busca de uma raiz mais profunda em solo inadequado. Eu sou curioso. Gosto de saber como as coisas funcionam, consertar as que estão quebradas, melhorá-las. Sou assim desde sempre. Quando três das cinco secadoras paravam de funcionar na lavanderia do estacionamento de trailers, eu precisava saber por quê. Se não conseguisse uma boa resposta, desmontava aquelas merdas e tentava descobrir. Quando algo pode ser feito, eu preciso fazer.

Acho que é isso que faz um homem de verdade. Não as brigas que arranjamos nem nossas trepadas, mas o que fazemos. Quanto trabalhamos pelas pessoas que dependem de nós. O que conseguimos lhes dar. Aquela vez que meu pai apareceu quando eu tinha 10 anos – a vez que o enfrentei e ele me bateu tanto que eu enfim comecei a odiá-lo –, ele engravidou minha mãe antes de ir embora. Minha irmã, Gemma, veio ao mundo já com dois pontos de desvantagem. Nossa mãe não havia planejado outro filho e não ficou muito empolgada. Gemma nasceu pequenininha demais e dormia muito. Como sou curioso, li um panfleto que veio do hospital, dentro da embalagem de leite em pó. O texto dizia que bebês devem acordar a cada três ou quatro horas para mamar, mas Gemma não fazia isso. Não mesmo.

“Que bebê boazinha”, todo mundo dizia.

Ninguém queria ouvir que ela estava faminta. Eu não queria amar Gemma. Só queria consertá-la. O problema é que, ao tomarmos conta de um bebê – preparando a mamadeira no meio da noite, cobrindo-o, trocando suas fraldas e passando as unhas pela sola de seus pezinhos até ele estar suficientemente desperto para comer –, quando menos esperamos, ele já enrolou os dedinhos ao redor da nossa alma, para nunca mais soltar. Eu precisava fazer as coisas para Gemma. O que fosse necessário, eu precisava fazer.

Então descobri o horário de funcionamento do departamento de assistência social, os documentos que era preciso apresentar no escritório, a pessoa para quem deveria ligar se não houvesse crédito no cartão do benefício porque minha mãe perdeu o prazo para recarga e não avisou. Descobri aonde ir para conseguir roupinhas usadas, as pessoas que doavam leite em pó e em que dias, como trocar latas vazias por moedas para usar na lavanderia, onde conseguir trabalho quando todos diziam que não havia trabalho disponível. Descobri tudo. Tenho talento para isso.

Quando fiz 14 anos, ganhava mais do que a minha mãe, e acho que comecei a pensar que era o homem da casa. O porto seguro da família. Invencível. Então meu pai apareceu.

Se eu era o porto seguro, ele era a correnteza. Não havia nada que eu pudesse fazer para evitar que meu pai arrastasse minha mãe de volta para o mar. Tudo o que consegui foi evitar que Gemma fosse levada junto. Depois, comecei a pensar no que mais eu poderia fazer. Só trabalhar e dar conta das coisas, como eu já vinha fazendo, jamais seria o suficiente. Eu precisava proporcionar à minha irmã uma vida em outro lugar, um lugar melhor, ou ela acabaria como as outras garotas, dando para garotos de 12 anos em armários, trepando com qualquer infeliz imprestável por quem se apaixonasse.

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