Capítulo 3: Kângelus, a escrita dos anjos

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— TRAGA A GARRAFA. TRAGA A GARRAFA. — exigiu o dono da cantina da escola, Seu Nélson, um senhor rechonchudo com cabelos grisalhos divididos de lado em uma cabeça grande. Ele sempre advertia os alunos para devolverem as garrafas de vidro de refrigerante de 250 ml. No entanto, muitas delas ficavam espalhadas pela escola.

Um garoto negro e mirrado com enormes óculos de lentes grossas se aproximou da cantina observando o vai e vem de alunos com seus salgados e refrigerantes. Ele nem sequer entrou na fila, pois não tinha dinheiro algum. Já havia comido o lanche trazido de casa e ainda sentia fome. E a merenda nunca era uma boa opção, ainda mais quando serviam a rotineira polenta rala com couve.

Seu nome era Cauã Nascimento Travassos e seu cabelo afro era sua marca registrada, sobretudo porque ele tinha um cachinho ruivo bem acima do centro da testa.

— Sai do caminho, Sarará. — um garoto loiro de franja disse para Cauã que se chegou para a esquerda.

O apelido lhe foi dado na primeira série quando aquele cacho apareceu. Na época, Cauã chegou a raspar a cabeça várias vezes para que os fios cobreados parassem de aparecer, mas não deu certo. Sempre que seu cabelo crescia, o cacho voltava com força total. Agora na quarta série, ele já nem ligava mais para o apelido e eram poucos os que o chamavam daquele jeito. Até já chegou a acreditar que um dia parariam com aquilo de vez. Uma das poucas pessoas que insistiam em chamá-lo daquele jeito era Lucca Cincinato Fernandes, o tal menino que pedira para Cauã sair do caminho há pouco.

Luquinha, como era chamado por todos, era uma espécie de arqui-inimigo de Cauã. Os dois estudavam juntos desde a primeira série e sempre caíram na mesma turma. Cauã pegou antipatia por Luquinha na primeira vez em que ele abriu a boca para se gabar do fato de que seu pai era um diplomata que sempre viajava enquanto que o pai de Cauã era um mecânico que vivia sujo de graxa.

Luquinha era o tipo de pessoa que tinha uma lista de coisas para odiar. E parecia que o próximo item da lista era sempre o Cauã Travassos. Dessa forma, Cauã nunca estava presente na lista de convidados das festas de aniversário de Luquinha. A última havia sido há algumas semanas quando Luquinha completou onze anos. E o menino ainda se gabava de ter ganhado muitos brinquedos que, é claro, não iria emprestar para ninguém.

E para piorar tudo, Luquinha era o aluno mais brilhante da turma e por isso era o representante de sala. Não era de se espantar que o nome de Cauã fosse sempre reportado para a professora.

O que animava Cauã era o fato de que o ano letivo estava acabando, e ele não via a hora de ir para a quinta série. Luquinha iria se mudar para outra escola, um colégio particular que, segundo seu pai diplomata, só aceitava "garotos fabulosos como ele".

Contudo, isso não iria livrar Cauã de ver Luquinha de vez, pois os dois moravam no mesmo bairro e na mesma rua, a pacata Brigadeiro Luís Antônio, popularmente chamada de Rua 17. Sem contar que a mãe de Cauã, Dona Bernadete, fazia faxina para os Cincinato Fernandes três vezes por semana na casa de número 66.

O recreio havia começado há pouco, e Cauã continuava imóvel próximo à cantina da Monteiro Lobato. Sua boca salivava enquanto ele observava os pedidos. Seu estômago roncou quando ele se aproximou, mas acabou sendo afastado pelas crianças que saíam alvoroçadas da área da cantina com suas guloseimas nas mãos. "Você de novo, Sarará!", ele ouviu. Era o Luquinha mais uma vez.

— Traga a garrafa! — Seu Nélson relembrou os alunos pela milésima vez de devolver os vasilhames. Em troca, ele costumava dar uma bala. No entanto, nem todos traziam, seja por preguiça ou pelo fato das balas serem muito baratas.

Foi nesse momento que Cauã teve uma das maiores ideias de sua vida. Aos dez anos e com um corpo mirrado, ele saiu pela escola determinado a fazer algo que ninguém havia pensado antes. Quinze minutos depois, ele reapareceu com dez garrafas que havia depositado na parte inferior da camiseta do uniforme escolar que ele usou como uma espécie de sacola de pano.

Os Fabulosos & O Artefato Milenar - Livro 1Onde as histórias ganham vida. Descobre agora