Desliguei o gravador e voltei a fechar o corpo do homem.

A agulha de sutura se infiltrava na pele gélida e ligava uma ponta à outra.

O ciclo se repetia.

Ponto por ponto.

Empurrei a mesa assim que terminei. As rodinhas se arrastavam pelo chão, e era tudo o que eu e Robin escutávamos durante o expediente. Eu gostava do silêncio que se instalava. Era assustador, e eu amava tudo o que era definido como assustador. Me sentia quase confortável.

Eu passava horas trancada no necrotério e, a noite, quando chegava em meu apartamento no centro de Detroit, ficava mais alguns minutos sentada no sofá da sala, bebendo um vinho e sem absolutamente nada em meus ouvidos além dos sons de fora.

Empurrei o homem para a gaveta gelada e fechei a porta prateada, de número 004. Tirei as luvas, a máscara e os óculos de proteção. Joguei fora no primeiro lixo de materiais infectantes que vi, junto com o avental que vestia.

Caminhei até a pia, meus sapatos batendo contra o chão cinza e ecoando como se estivesse em uma caverna. Meus olhos encararam Robin, enquanto eu lavava minhas mãos. Ela estava concentrada, seus fios negros estavam severamente amarrados em um coque no topo da cabeça, seus olhos presos nas etiquetas para identificar os tubos com as amostras do sangue para as análises.

Sequei minhas mãos, soltei meus cabelos e vesti meu jaleco. Caminhei até a garota com os óculos de grau na ponta do nariz.

— Robin — chamei.

Ela levantou a cabeça, me encarando.

— É a terceira vez que isso acontece.

Robin suspirou, desapontada.

— Desculpe, doutora. Eu ainda não me acostumei.

Robin Allen era uma boa garota. Estava cursando o último ano de medicina e foi esperta o suficiente para conseguir um estágio remunerado no departamento. E, na verdade, eu não tinha muito o que reclamar dela. Ela era inteligente, e foi a única ajudante que ainda não vomitou por causa do estado que alguns corpos chegam.

Alguns eu nem chamaria de corpos.

— Tente pensar em coisas boas quando estiver aqui — eu disse.

Andei até o balcão que ela estava, me sentando em um dos bancos e calçando mais uma vez um par de luvas azuis. Me estiquei até os tubos com as amostras e peguei um deles com a ponta dos dedos.

— Como você consegue? — sua voz soou novamente.

— Consigo o quê?— questionei, preparando o microscópio.

— Pensar em coisas boas quando está aqui.

Parei o que estava fazendo e virei meu rosto em sua direção . Robin ajeitava seus óculos de grau enquanto observava o ambiente.

— É tudo tão cinza, mórbido, sozinho... — continuou — Tudo aqui cheira a morte. Como consegue ficar bem aqui? Como consegue pensar em coisas boas?

Seus olhos escuros e curiosos se voltaram para mim novamente.

Acho que o conselho que dei à Robin não passava de um daqueles que nós falamos para as pessoas fazerem, quando nós mesmos não seguimos. Aquele ditado "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço", nunca se aplicou tão bem.

Acontece que eu não tinha pensamentos bons.

Todos eram lembranças podres de uma vida podre.

Talvez seja por isso que eu sempre aguentei toda essa paisagem sombria que me rodeava. Eu não era acostumada com coisas boas, então, conviver com coisas ruins era normal. Natural. Eu não tinha um bom exemplo de vida para ser objeto de comparação.

Na verdade, a vida que levava hoje era o mais próximo de boa que eu provavelmente poderia alcançar.

E, bem, eu aprendi que a morte pode ser tão reconfortante quanto é assustadora.

— Eu só penso, Robin — eu disse, voltando minha atenção para o microscópio.— Deveria tentar.

Silêncio.

Eu e Robin não tínhamos uma relação de parceria, como deveria acontecer em um ambiente de trabalho. Nós apenas nos aturávamos. Ela precisava de dinheiro e de conhecimento sobre anatomia, nada que um bom necrotério não renda. Detroit era uma cidade relativamente violenta, e material para estudo — os corpos — nunca faltariam. E, modéstia parte, não havia um pedaço sequer do corpo de um humano que eu não soubesse identificar.

Ela poderia sair daqui traumatizada. E também, sairia com um conhecimento inegavelmente amplo.

— Vou fazer o relatório.

Escutei seus passos se afastando de mim e, em seguida, o som dos seus dedos digitando freneticamente o laptop.

Concentrei-me no sangue que estava analisando. Aquele era provavelmente mais um caso comum. O assassino sequestra a vítima por algum motivo qualquer. Talvez vingança, ou só prazer. Ele a tortura e, depois de fazê-la sentir muita dor, tira sua vida de uma forma rápida. Quase como se já estivesse enjoado daquilo e pudesse jogar a vítima fora, como se joga um brinquedo quebrado.

Algumas vezes, quando Robin finalizava o relatório clínico e eu precisava oferecer um laudo, eu colocava a minha opinião em relação ao assassino.

Psicopata?

Sociopata?

Apenas uma pessoa completamente perturbada?

Eu percebia.

Percebia na forma como os corpos eram encontrados.

Percebia pelos hematomas.

Pelos sinais.

E entre todos eles, os mais fáceis de identificar, com certeza, eram os Seriais Killers.

Eles matavam como se aquilo fosse a coisa mais prazerosa que já haviam inventado.

Matavam com todos os detalhes que poderiam colocar. Detalhes que nunca deixavam de ser captados pelo meu radar.

E assinavam. Assinavam como um maldito pintor assina seu quadro. Sua obra prima.

E, droga, aquilo me interessava.

Muito.

Eu nunca segui um caminho, um norte, um lema, mas eu sempre tive uma frase tatuada em minha mente:

Manter os amigos por perto. A morte mais perto ainda.


D E A T H (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora