Capítulo 1 - Ela sabe...

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 A voz de Anelise me segue pelas escadas quando desço correndo.

- VOCÊ SABE QUE HORAS SÃO!?.... Ande, pegue esse pedaço de bolo que cortei para você.... Poxa, está tão atrasada...

- É minha última semana de aula – digo a ela, mas Anelise não me ouve e me empurra de leve até a porta, agarrando firme minha mochila. A Mercedes preta parece um besouro adormecido na rua, sozinho, e mesmo com as janelas escuras fechadas eu sabia que não eram meus avós que me levariam a escola. Não havia o som, a voz de Sarah gritando para me apresar,  a buzina impaciente e olhar desesperado de Miguel pelos cinco centímetros de vidro aberto. Só havia silêncio e eu sabia que um motorista mudo me esperava.

Ando até o carro desejando estar errada, desejando abrir a porta do carro e me deparar com o sorriso de Sarah ou o perfume de Miguel, mas no fim...

- Está atrasada, senhorita Campomar.

Os motoristas daqui não são como nos filmes, confidentes de garotas e amigos leais, não. São mudos, plastificados, com cheiro de álcool em gel e isso me dá calafrios. Eles têm cheiro de hospital e confie em mim, não há nada pior do que um homem de dois metros mudo com cheiro de hospital. Prefiro mil vezes, um bilhão de vezes, o perfume extremamente doce de lavanda de Sarah, ou o amadeirado de Miguel, com toques de cravo. 

Sim, eu sei detalhes dos perfumes de meus avós e em resumo isso acontece por dois motivos: O primeiro é que vivo com eles desde os quatro anos de idade - porque meus pais morreram em um acidente e bla bla bla, longa história. O segundo é o fato de que eles nunca, mas NUNCA, trocaram de perfume em todos esses anos e então... Eu sei que cheiro de lavanda não é o álcool que Anelise passa no tapete – aquele que a sua avó provavelmente passa em casa – e trust me ela sempre, sempre, usa perfume, até para dormir. Já Miguel... Já disse, não é? Amadeirado, enfim...

Em um dia bom meus avós voltam para casa na noite anterior, me levam a escola de manhã, me contam histórias durante a viagem. Sarah me elogia enquanto voamos pela avenida paulista e Miguel me conta uma de suas histórias sobre a Argentina, onde nasceu. Mas hoje não. Não é um bom dia. É a última semana de novembro e os negócios estão uma loucura, não têm mais tempo para me levar, para histórias, para um grito que seja direcionado especialmente para mim.

Pensar nisso faz meu coração acelerar, as mãos ficam húmidas, e coloco os fones de ouvido. De novo não, de novo não... Aumento o volume da música e respiro fundo, inspirando quatro segundos, segurando dois, soltando o ar em seis... Não sei muito bem quando começou, mas de uns tempos para cá tenho estado mais... sensível, como diz Anelise, empática talvez, e não é uma coisa boa. Sempre começa assim, coração acelerado, suor... 

O próximo passo são as enxaquecas, o mundo girando rápido demais e o ciclo de pensamentos sem fim. Fico presa em uma montanha russa cheia deles, de vozes, de imagens, passando por mim na velocidade da luz e não consigo descer.

É desesperador e por algum motivo sempre acontece na escola, especialmente na entrada quando todos parecem mais ansiosos. As vezes não importa o quão calma estou, ou a altura da música, quando me aproximo da entrada e vejo os outros alunos correndo e entrando e conversando....

Bum! Ligam a montanha russa. O mundo se agita e só tem uma pessoa que faz as coisas ficarem calmas: Bárbara. Perto dela tudo se resumia a compartilhar o silêncio e isso era um alívio. Sem barulho, sem cansaço, sem imagens e vozes rápidas demais para serem compreendidas só... silêncio. Mas então Ivana decidiu que não gostava disso e agora preciso da musica alta.

- O que você quer com aquela estranha, Roberta? – Ainda me lembro do tom alterado de Ivana quando me encontrou no banheiro no fim do intervalo. – Ela é.... estranha, amiga, para com isso. Você é melhor do que isso, do que ela. Assim é fácil ficar com dor de cabeça. Ela tem... uma energia ruim, sabe? Eu sinto.

Deuses PerdidosWhere stories live. Discover now