Capítulo 4 - Um Porto Seguro

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Apesar de boa parte do dia já ter passado e o ar da tarde já estar fresco, ainda não consigo tirar aquela senhora da minha cabeça. Eu sempre soube que o destino — se é que essa divindade realmente existe — gostava de colocar situações estranhas no caminho da vida de qualquer um. Mas algo nela me perturbou, deixou minha mente, que já sofria com questões, ainda mais bagunçada. A mulher parecia saber demais, naquele momento eu não me liguei a isso, mas agora só consigo pensar que talvez ela me conheça. Não como um pai conhece um filho, ou como grandes amigos e grandes casais, mas num nível mais profundo. Eu sei que parece loucura da minha parte, mas nossas energias pareciam vibrar em sintonia.

Ilusionista.

Relembro e é como se a voz da senhora estivesse novamente invadindo meus pensamentos. Balanço a cabeça e sinto meu cérebro balançar dentro do meu crânio, causando uma dorzinha passageira de cabeça. Eu não podia, em hipótese alguma, afirmar que tudo o que está acontecendo é loucura minha. Vi muito bem como os dois homens ficaram, eles — e Bolt, recordo-me — estavam vendo as chamas também, era como se eles estivessem sendo consumidos. E mesmo não sentindo o calor do fogo na pele, aquilo os assustou tanto a ponto de acreditarem que era real. E eu fui o responsável. Devo mesmo ser uma aberração, não há outra explicação. Não quero ficar pensando nisso agora, as coisas já estão confusas o bastante para que eu fique remoendo um monte de coisas sem sentido.

Pelo menos consegui comer um belo cachorro-quente hoje, meu estômago e o de Bolt agradeceram infinitamente. Agora estou me preparando para adentrar a imponente Igreja da Sé. Preciso tomar um bom banho e não me custa nada perguntar ao Padre se não posso usar o banheiro particular dele. Já não estou mais aguentando meu fedor de bacalhau vencido e o grude do meu cabelo. Geralmente amo meus cachos mais do que qualquer outra parte do meu corpo, mas não neste estado.

Ao entrar na igreja, sou engolido por sua imensidão. Sombras tremulantes criadas pelas luzes dão um ar de mistério, que remete quase que instantaneamente ao sagrado. O teto alto o bastante para quase se perder de vista me torna minúsculo. O ar está tomado por um cheiro forte proveniente de incensos e cera derretida. Há imagens de santos para todos os lados. Uma verdadeira obra de arte aqui, no centro de São Paulo.

Por mais que eu sempre houvesse transitado por esta região da cidade, nunca fui muito de circular dentro de igrejas. A beleza colossal delas me assusta. Sempre me pego imaginando a quantidade de pessoas, o trabalho escravo para falar bem a verdade, que foi usado para erguer um trambolho deste tamanho. Mas já que está pronto, usando dinheiro de imposto e toda a sujeira que envolve religião, não vou morrer se tomar um banho.

Passo pelas fileiras intermináveis de bancos de madeira envernizada. Não há ninguém aqui dentro, também não vejo o padre. Deve ser por conta do horário, muitas pessoas já devem estar indo para casa e tudo mais. Me apresso até o altar e examino os diferentes formatos de cruzes presentes nele e na parede traseira. Suspiro e me lembro que não posso demorar, deixei Bolt sozinho do lado de fora. O banho dele vai ter que esperar mais um pouco. Faço menção a encostar no cálice enorme que está no centro da mesa, quando uma figura se move por detrás das sombras. O padre.

— Somente o sacerdote desta casa sagrada, ou alguém autorizado por ele, pode mexer no cálice sagrado. — Sua voz grossa e arranhada indica que os anos já passaram para ele. O senhor de túnica se aproxima de onde estou e me mede dos pés à cabeça. Deve estar pensando que sou algum tipo de trombadinha. — Em que posso lhe ajudar, meu filho? Estamos quase fechando a igreja.

Me viro de costas para ele e encaro o corredor entre os bancos. Me sinto tão pequeno aqui dentro, tão insignificante. Talvez eu seja mesmo uma aberração, um demônio desgarrado do inferno. Vai ver é por isso que não estou me sentindo nada bem neste lugar. A sensação de estar sendo observado a todos os momentos desde que passei pelo portal da igreja agride meu peito. Todas estas imagens, todas as sombras delas, tudo parece esperar que eu cometa alguma falha. Somente um deslize e eles revelarão ao Padre o que realmente sou.

SuperQueer (Fantasia LGBTQ)Where stories live. Discover now