Inverno parte IV

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6 dias depois

Que barulho ensurdecedor o de uma turbina de avião! Eu conhecia bem o som que ardia em meus ouvidos todos os meses antes de uma viagem de negócios, ecoava dentro do meu crânio como um grito grave e sacudia todos os sentidos minutos antes de sentir o frio na barriga e a instabilidade ao decolar. Certa instabilidade me lembrava de como minha vida se encontrava há tantos anos: barulhenta e instável, fora do chão, sacudindo, indo para qualquer destino. O sentimento de voar já era parte da minha rotina, mas não era exatamente o que me esperava naquela manhã. Sou suspeito para falar, mas súbitas alterações de rotinas não eram o que eu mais prezava para uma manhã de sexta-feira. Há quase uma semana atrás eu recebia uma notícia avassaladora e, como devo dizer, um tanto confusa, e naquela sexta-feira via todos meus planos para o fim de semana mudarem diante dos meus pés. De assistir futebol com o Siwon sexta-feira a noite, agora eu estaria desembarcando em meio ao lodo e enchendo meu nariz com o odor de esterco de animais por todo lado. Não fazia ideia de como era o ambiente rural, mas deveria ser assim. Meus planos de conversar fiado com Siwon até convencê-lo a ir sozinho em sua baladinha de sábado a noite e me deixar trabalhando em casa seria o melhor agito do meu fim de semana, eu não poderia perder isso. Mas aparentemente viajar 4 horas em um ônibus de quinta categoria com crianças transportando coelhos em uma caixa e senhoras lotando os assentos e os corredores com sacolas de legumes e dezenas de travesseiros não era o tipo de agito que eu procurava para o fim de semana.

Por que eu entrei neste ônibus? A princípio, porque Siwon me direcionou até a porta ignorando meus miados infantis pedindo para voltar ao hotel. Em segundo caso, para verificar como era a propriedade e se valeria a pena vendê-la algum dia. Sim, deveria ser por isso. Na pior das hipóteses, o que me levou até aquele ônibus foi aquela voz. Nada muito sombrio ou digno de um Edgar Allan Poe, apenas aquela voz doce mas atrevida que surtia dentro de mim falando às pressas: "Nos vemos em alguns dias, filho." A voz que me causava arrepios de frio em dias ensolarados e tremores de medo em dias de nuvens. Minha mãe não me cedeu uma despedida digna de glória ou de um livro, afinal, ninguém imaginava o que poderia acontecer. Mas ainda assim, algumas de suas ultimas palavras ainda entram pelos meus ouvidos em certos momentos, quando abro a janela esperando um tempo bom ou quando abro a porta do meu quarto de hotel torcendo para ninguém me esperar do lado de fora. Uma vez li em um livro que todo mundo tem seus fantasmas. Os meus me chamavam para aquele lugar no campo. E foi a primeira vez que optei por ouvir ao invés de me esconder.

Deixando de lado o cheiro de abóbora madura e terra úmida, a viagem não englobou nenhum evento extraordinário. Apenas minha pessoa, sentada no banco do corredor, vestindo uma camiseta meia manga azul marinho e calça jeans confortável, carregando uma mala de mão com meus equipamentos tecnológicos e anseiando por chegar logo antes que vomite em alguma das sacolas das senhoras. Todas pareciam muito carismáticas e me fez pensar em como era ter uma avó. Meus avôs moravam no outro lado do país, em um pequeno bairro de uma cidade que ninguém pagaria para visitar. Consequentemente, meus pais não dispojavam de muito tempo livre para visitá-los, então não lembro como eram. Recebi a notícia de que meu avô faleceu há 5 anos atrás e alguns meses depois minha avó adoeceu e o acompanhou. Siwon costumava dizer que este era um real ato de amor, morrer involuntariamente pela falta de outra pessoa. Eu achava isso um absurdo, afinal, eu amava Siwon mas não morreria se ele não estivesse mais comigo. Seria uma tragédia fatal, mas eu conseguiria viver com isso assim como tento sobreviver com a perda dos meus pais. Como eu disse antes, Siwon e eu temos opiniões controversas.

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Algumas horas depois, quando o cheiro de terra úmida de dentro do ônibus começou a se tornar conhecido pelo meu olfato, o que me esperava ao abrirem as portas do veículo era a surpresa de que qualquer odor é capaz de piorar quando você reclama dele. Aos poucos meu nariz começava a protestar internamente e minha respiração ficava cada vez mais pesada enquanto descia as escadas e me direcionava ao lado de fora. Para minha surpresa, meus pés não afundaram em nenhum barro espesso e escuro. Ao contrário disso, uma grama verde e encharcada lançou gotículas de água nos meus sapatos pretos quando subitamente pisei no chão e olhei ao redor. O clima bastante úmido e o vento gélido resultou instantaneamente em três altos e esbeltos espirros no silêncio da estrada. Percebi então o local nada convencional em que eu me encontrava: uma estrada de uma via coberta por areia avermelhada e cercada por grama baixa em cada lado. O ônibus mal cabia naquela rua fina e vazia, me obrigando a descer em meio ao mato que compunha a lateral da estrada. Arrisquei perguntar ao motorista já de fora do ônibus, como eu faria para chegar até o tal endereço. O sujeito com bigode ralo e magrelo soltou um riso cínico e disse "é só seguir a rua atrás da porteira". O veículo acelerou brutalmente arrancando toda a terra vermelha que podia ocupar espaço embaixo das rodas, espalhando-a por todos os lados. Meus sapatos já molhados pelo vestígio de chuva deixado na grama, agora adquiriu uma tonalidade preta avermelhada com toda aquela terra. Imaginei que deveria ter entrado terra até dentro das meias. Dirigi dois passos para a direita e vi o pequeno portão do qual o motorista mencionara, escondido por dentre os arbustos. Quem diria que em um local completamente vazio e sem vida, existiria a casa de uma família rica. Entrei pelo portão e outra estrada mais fina ainda me aguardava intocada. Caminhava a passos longos, tossindo pelo caminho e carregando minhas duas malas grandes, uma em cada braço, e a mala de mão pendurada no ombro. A areia se acumulava embaixo das rodinhas e achei que poderia cair com cada empacada que minhas malas decidiam dar, enterrando-se no chão. Certamente haveria areia também dentro das minhas roupas depois daquilo.

O que vi há 20 metros de mim não foi o pior causador do meu espanto, considerando o trator com rodas imensas que emergiu da pequena estrada logo atrás de mim. Como caberia um trator daquele tamanho naquela estrada que me espremi para caminhar com duas malas, era algo para se analisar posteriormente, mas o choque que percorreu do fio de meu cabelo até a ponta dos meus pés veio segundos após me livrar do susto com o veículo. Que meus pais eram portadores de uma das maiores fortunas da Ásia era fato concreto, o que não era concreto era a insanidade da casa de campo que eu avistei. Me direcionei até um fazendeiro que agora arrastava com dificuldade um ancinho por cima da grama espessa e bem cuidada do lote.

- Com licença, meu nome é Lee Hyukjae e eu procuro a Casa dos Lee, vim para ficar uns dias... Eu avisei os cuidadores da residência por e-mail mas não recebi resposta, então enviei uma carta...

- Bom dia moço - O senhor fazendeiro de meia idade fez uma reverência curta e seguiu varrendo perto de meus pés. - Siga até a casa e fica a vontade! Park Youngjun pode lhe ajudar a se alojar, sua carta foi lida por ele mas só o teremos de volta em dez dias. E-mail seria impossível por aqui! - Ele gargalhou por baixo do nariz comprido e continuou seu trabalho.

Tive receio em perguntar sobre o e-mail, mas temia já saber a resposta. De repente um arrepio percorreu minhas mãos e ombros e me senti desligado do mundo. Como conversaria com Siwon dali? E como continuaria meus projetos e trabalhos da empresa? Ficar sozinho em meu hotel não me causava tanto espanto como ficar ali, rodeado de fazendeiros, mas em total desconectividade. Engoli a seco a preocupação e resolvi focar na primeira e antes vista decepção daquele dia, a casa. Não podia acreditar que aquela era a propriedade de meus pais. De início, um dos meus motivos para visitar aquele lugar já havia sido eliminado, pois não poderia nem experimentar vender aquela casa. Eu nunca tinha colocado os pés em algo tão mediocre. Uma pequena casa de dois andares, onde supostamente o térreo seria a casa inteira e o primeiro andar seria um sótão, levando em consideração a qualidade das janelas emboloradas. Agora entendia um pouco do porquê minha familia nunca passara um único fim de semana em paz e harmonia ali. Se comparado à nossa antiga residência na cidade onde cresci, aquela casinha de campo inteiramente de madeira com a coloração descascando caberia dentro da nossa sala de estar. Já havia sido informado que nossas riquezas naquela vila estavam localizadas em milhares de hectares de terra contendo florestas e muito mato, mas não imaginava que seriam inteiramente nisso e não na moradia. Subitamente, meu único pensamento era nos dias de chuva. Como eu ficaria naquele lugar sem contato com o mundo arriscando ver a casa voar com um mínimo ventinho? "Certamente não voou até agora, Hyukjae", você deve pensar. Mas eu costumava atrair um azar absurdo quando se tratava de dias bons, parece que as nuvens me vêem chegar e logo resolvem chorar pela minha presença na luz do dia ou na calada da noite. A certeza de que não seria diferente naquele lugar era a única coisa estável na minha vida ao olhar para aquela casa.

Toquei a maçaneta gelada da porta e senti um frio repentino na nuca carregado pela incerteza. O sentimento de ter o chão instável e o coração acelerado atacou meu corpo e quase sentira o calor do sopro em minha orelha seguido pelo odor de pasta de dente ao ouvir aquela voz adentrar e falar ao redor de todo o ambiente. Meus fantasmas assopravam e rodopiavam ao redor do meu dorso enquanto o assobio do vento atrás de mim se misturava com a voz doce e incansável da minha mãe que se despedira de mim um dia. A despedida mais duradoura da minha vida.

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