1- ONDINA "Praia Fria"

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Ulisses desceu alguns passos e resolver acompanhar a retirada das redes mais ao norte. Tirou suas sandálias e caminhou desenhando com os pés por onde passava, deixando um "rastro" que vez por outra era apagado por uma ou outra onda mais atrevida. Em sua mão o smartphone chamava sua atenção para mais uma visualização na imagem da menina ao fundo em suas fotos pela manhã. O jovem parou e deu o "zoom" na fotografia, levantou a cabeça e a procurou por todos os lados. — Cadê você?! — Perguntou-se o rapaz em voz baixa.
Uma onda quebrou e molhou seus pés, a água estava mais fria que o normal, os ventos acompanhavam a temperatura da água, e a noite chegava discreta e sem alarde. Ao longe meia dúzia de pessoas se amontoavam na retirada das redes de "emalhar" já que o preamar viria com a noite.
— Muito raro ter um "Barros" na praia por essas horas. — Disse um rapazinho ao se aproximar.
— O que é isso meu amigo? — Ulisses sorriu e estendeu as mãos ao conhecido. Os dois apertaram forte as mãos oferecendo sorrisos verdadeiros. Cássio de Ondina era um jovem franzino, queimado pelo sol e de sorriso fácil. Os cabelos curtos quase inexistiam sobre as orelhas grandes. Seu nome verdadeiro era Cássio de Souza, mas o rapaz ganhou o sobrenome dos turistas há mais de uma década enquanto servia de guia na praia boemia de Ondina, uma das duas que formavam o conjunto de "2 amores".
— Só achei estranho você por aqui depois do verão, seu lugar é naquela casa e na boate da rua principal em frente à segunda praia. — Cássio bateu no ombro do amigo e deixou outro sorriso escapulir. — Vai... Me diz?
— Pensei que você só era guia, mas vejo que é mais que isso! — Disse Ulisses se perdendo entre as redes a frente.
— É isso, Ondina é mais que aqueles botecos e aqueles poucos bêbados. Essa nossa praia tá morrendo pros turistas. Ninguém gosta de um lugar que só "se chora" o passado. Então em janeiro, fevereiro e março a pesca é rentável. — Cássio apontou para as redes. — Na baixa-mar a gente estende as redes de emalhar, e antes do preamar retiramos. Garçons, cozinheiros e pescadores fazem "bicos" por aqui após o verão e o carnaval. Cássio de Ondina é um deles.
— Cara, que bacana poder ver esse trabalho além da praia. — Ulisses deu mais alguns passos.
Olá! - Saldaram alguns pescadores ao notarem o curioso.
— Agora me fala, o que Ulisses Barros está fazendo em Ondina? — Disse o rapaz girando para o lado direito de Ulisses.
— Seu danado de uma figa! — Ulisses sorriu. — Juro que não estava procurando o maior informante de Ondina!
— Eiii! Pera lá! De Ondina, não! Sou o maior guia e informante de "2 amores" inteira, chegando até as fronteiras de São Miguel do Gostoso!— Cássio pulou uma onda.
— Bem... — Começou Ulisses.
— Fala o nome dela! — Se adiantou o informante. Ulisses fingiu "socar" Cássio.
Os dois riram enquanto as ondas avançavam.
— Não sei o nome. Infelizmente. — Ulisses chutou um monte de areia. Cássio sorriu e fez um barulho estranho com a boca.
— Eu sabia!!! Sabia de verdade!
Enquanto ouvia os "vivas" do jovem à frente, Ulisses retirou do bolso o smartphone.
— Mas tenho uma foto.
— Mostra! — Cássio chegou mais perto e observou o amigo procurar na galeria a foto da menina.
Enquanto abria seus arquivos o telefone apagou.
— Acho que sua bateria descarregou... — Disse Cássio se mostrando frustrado, fazendo outro barulho com a boca.
— Droga.
— Recarregue seu celular, venha até Ondina que Cássio pode dar a você a "ficha" completa da pessoa! Caiçara ou turista. Cássio conhece todo mundo. — Tenho que ir, se não fico fora da divisão dos peixes. — O jovem pulou outra onda e sorriu. — Até mais meu querido!
Cássio de Ondina saiu correndo pela praia apressado.
— Sim!! — Cássio retornou girando. — Cuidado com as sereias, elas odeiam o mar frio e buscam por fogueiras. — Cássio riu.
— Ondina seria a última praia que as sereias procurariam abrigo. — Ulisses sorriu de volta vendo Cássio correr em direção aos outros pescadores.
— Verdade! Em Ondina não existe calor a noite! — Gritou o rapaz enquanto corria para as redes.

...

Ulisses aguardou de longe o sol deitar por trás das falésias enquanto observava a divisão dos peixes, sem medo do frio ou da solidão que aquela noite estava trazendo.
Assim que os últimos pescadores se perderam no breu evidente, o rapaz levantou e resolveu caminhar pela praça de Ondina, jogou as sandalhas sobre o pequeno estreito de paralelepípedos rodeado de coqueiros, retirou o excesso de areia dos pés e seguiu.
Os bares de Ondina sempre foram os mais escuros e os que mais possuíam cadeiras vazias. Dizem por esses lados do Nordeste que os donos das "espeluncas" ao redor daquela praça abandonada eram patrimônios daquela praia e médicos do coração, mas nunca cardiologistas. Outros diziam que os homens de cabelo branco por trás dos balcões eram ótimos terapeutas, e além disso, excelentes enciclopédias musicais.
Ulisses pouco passou por ali, nas raras vezes que desceu no verão para a praia dos boêmios, foi para buscar sua mãe em suas fugas alcólicas. — Era deprimente.
Mais da metade dos bares estava fechado, e naquele círculo de decorações e músicas do passado, todos estavam dirigindo sua atenção ao homen de cabelos longos e desarrumados que não tocava para uma platéia, mas pra si mesmo.

🎵
Agora está tão longe
Vê, a linha do horizonte me distrai
Dos nossos planos é que tenho mais saudade
Quando olhávamos juntos na mesma direção
Aonde está você agora
Além de aqui dentro de mim?
🎶

O coração de Ulisses doía com aquela música que era a cara de sua mãe, e sem planejar, tendo outros interesses, aquela praia e aquela música o levou a encontrar sua mãe outra vez em um estado nada agradável.
— Vem aqui! — Gritou ela de onde estava. Uma garrafa de Campari e uma carteira de cigarros Free a acompanhavam. Ulisses não estava bem com a situação, mas achava curioso tentar entender sua mãe.
Marta Barros foi uma dessas princesas que desembarcam na praia. A menina loira do fim dos anos 80, se bronzeou no início da década de 90 e arrasava naqueles verões.
O avô de Ulisses correu do sul após se aposentar e resolveu vender pizza e filé à parmegiana naquela praia semi-deserta. "2 amores" era um paraíso, e criar sua única filha longe dos grandes centros era um sonho. Foram poucos os verões na condição de solteira, porém intensos. Entre fogueiras e drinks, Marta conheceu Augusto, o pai de Ulisses.

Ulisses arrastou uma das cadeiras e sentou ao lado da mãe, e enquanto ela deu um gole em seu Campari, o rapaz lamentou o que os anos fizeram a ela. Marta não possuía vaidades, seus vestidos coloridos e seu cabelo loiro com a raiz por retocar, eram sua marca. Os dentes amarelos não impediam as gargalhadas altas e peculiares.
— Sabe filho... — Um trago no cigarro. — A primeira vez que ouvi essa musica, eu tinha uns 15 anos.
Ulisses virou os ouvidos e fitou o rapaz que tocava seu violão em outra mesa solitária.
— Verão de 1991! — Ela riu. — Isso! 1991! 15 anos.
Ela riu alto.
— Sua mãe ainda era virgem no verão de 1991!
— Vento no litoral. — Disse ele. — Cresci ouvindo em um RoadStar.
— Perfeito! — Disse ela enquanto ajustava o cigarro na boca para conseguir deixar as mãos livres para se servir de mais uma dose.
Em meio ao som daquela antiga canção que os remetia a outros verões, os dois se calaram por algum tempo, ambos consumiam em seus leves pensamentos um sentimento nostálgico. Sim, aquela música os levava para longe do Campari, para o mais distante possível daquela noite fria que parecia dizer: "— Tarde demais... Tarde demais!".
Naquele instante os dois perderam a visão entre o horizonte, o violão e o preamar que quebrava as ondas mais à frente. Naquele instante eles sentiram o peso dos "tarde demais" que carregavam. Reverte-los era impossível, e consumi-los inevitável.
Parecia que as meia dúzia de cadeiras vazias correriam dali graças aos fortes "ventos noturnos de sudeste", e por vezes a música se fazia mais baixa aos ouvidos.
Enquanto se perdiam entre a canção e os ventos fortes, Ulisses acordou do seu leve devaneio e observou uma pequena casa logo a frente, entre a praça e a pequena morada existia apenas um caminho de areia. A casa era baixa e minúscula, comum naquelas vilas de pescadores do Nordeste. Sua porta permitia duas aberturas, e naquele momento apenas a parte superior estava aberta, levando para fora a luz baixa de suas lâmpadas fluorescentes.
Algo lá dentro chamou sua atenção.
Ele não acreditou.

Ulisses levantou-se, ao som da música que hipnotizava sua mãe, o rapaz caminhou por entre as cadeiras, o músico e sua pequena plateia. Os ventos arrastavam algumas cadeiras de plástico tatuadas por uma velha marca de cerveja. Quanto mais se aproximava da casa, mais nítida era a fotografia da menina em uma grande moldura sobre uma estante antiga que ficava de frente para a porta de entrada.
Mais alguns passos e o jovem obteve a reposta: Era Maressa, a menina por trás de suas fotos.
— O que você quer aqui? — Falou alto um homem idoso de dentro da casa, aparecendo logo em seguida por trás da porta semi-aberta. Ele parecia cansado, porém seu olhar trazia uma fúria gigantesca.
— Desculpa... É que eu estava logo ali com minha mãe e... — O jovem estava nervoso, mas não conseguia encarar o homem por trás da porta, pois seus olhos estavam fixos na jovem dos cabelos longos estampada na fotografia.
— Volte para sua música. Evite problemas meu jovem. — O homem de barba branca e uma careca bronzeada não estava para brincadeiras.
— Ela é sua filha? — Ulisses apontou para a menina e só então encarou os olhos negros do velho.
— Já mandei você sair! — Gritou o homem. — Suma!!!
O velho bateu a parte de cima da porta com toda sua força, a trancando logo em seguida e apagando a luz.
Ulisses ficou estático olhando para a morada toda fechada, mas não demorou muito.
O jovem retornou para sua casa, a música continuou, sua mãe e o Campari continuaram.
No fim da noite Marta Barros e o cantor rolaram na areia em algum lugar de "Ondina" e transaram mais de uma vez.

"DEPOIS DO VERÃO"Where stories live. Discover now