Capítulo LXVII - Fale-me sobre culpa

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- Não, ele é engenheiro. - Respondeu Vitória, casualmente, enquanto procurava em suas gavetas um papel para fazer de recibo.

- Ele parece se interessar muito por botânica, então. - riu - E fósseis.

- Doutor, este escritório é meu. - Informou Vitória, seca, erguendo a sobrancelha ao entregar o papel e a caneta para o médico.

- A senhora se interessa por ciência? - Perguntou Doutor Emílio enquanto assinava o recibo.

- Talvez um pouco. - Respondeu Vitória, sarcástica, ponderando se o médico ignorava o diploma dela na parede de propósito ou apenas era desatento. - Mais alguma coisa, Doutor?

- Tudo certo. Qualquer emergência, basta chamar.

- Claro. Sofia? - Gritou Vitória, já impaciente com a presença do médico ali.

Como esperado, a noite foi longa. Benício foi acometido por febres intensas e dores muito fortes. Vitória novamente passou a madrugada em um cadeira ao pé de sua cama tentando controlar sua temperatura. O dia já estava amanhecendo quando ele começou a dar sinais de melhora. Vitória tinha o semblante cansado, mas estava bem desperta - e, surpreendentemente, de bom humor. Os dois não conversavam, Benício apenas queixava-se da dor e Vitória andava de um lado para o outro fazendo o possível para amenizar. Era agoniante para Benício vê-la tão quieta e prestativa; e era quase instintivo para ele querer irritá-la ao ponto de vê-la surtar e largá-lo ali para morrer ou, quem sabe, tentar sufocá-lo com o travesseiro. Mas ela parecia inabalável, uma cuidadora experiente e amável que mal abria a boca. Aquela era uma parte dela que ele desejou jamais ter conhecido.

- Estou lisonjeada. - Comentou Vitória, ironicamente, enquanto limpava Benício pela manhã ao perceber que ele se enrijecera.

- Desculpe. - Respondeu ele, sonolento, sem dar muita importância.

- Tudo bem. Já vi muitas vezes.

- Eu quero morrer.

- Não se preocupe, soldado. Estou quase acabando.

Benício riu e arrependeu-se logo em seguida; seu abdômen doeu imediatamente em resposta. Vitória ajudou-o a vestir a calça.

- Os pontos estão bem feitos. Eu teria feito melhor, mas... - Comentou Vitória ao limpar a ferida costurada. Ela aplicou um líquido amarelo que fez Benício dividir-se entre a ardência e a dor nos músculos e grunhir resposta. - Desculpe. O da mão agora.

A mão de Benício que foi usada para defender-se do primeiro golpe de Narciso com a garrafa quebrada tinha um total de oito pontos. Eram dois cortes feios, mas não profundos. Nenhum nervo foi atingido, mas Vitória temia que, caso a cicatrização não fosse boa, os movimentos da mão dele ficassem comprometidos. Um silêncio pesado formou-se entre eles. Benício já estava bem desperto e encarava o nada, reagindo apenas à dor dos remédios que Vitória aplicava em suas feridas.

- Queres conversar sobre isso? - Perguntou Vitória, quebrando o silêncio.

- Isso o quê?

- Sobre o porquê de ter envolvido-se em uma briga de bar.

- Homens brigam.

- Você não. - sussurrou - O que fazias no subúrbio?

- Usarei uma das tuas sentenças favoritas: o que faço ou deixo de fazer não é da tua conta.

- É, talvez eu mereça isso. - revirou os olhos - Fiquei preocupada contigo.

- Pare de fingir que se importa.

- Não estou fingindo, Benício. Deus, achas mesmo que eu, de qualquer forma, gostaria de vê-lo assim?

- Acho.

- O drama lhe cai bem. - Murmurou Vitória, sarcástica.

- Como pensas que a viuvez lhe cairia.

- Deus do céu. - riu - Olhe, eu sei que as coisas ficaram simplesmente péssimas entre nós desde... Bem, desde o Natal. Eu sinto muito, de verdade.

- Sentes? - Perguntou Benício, irônico.

- Eu me excedi. Fui desnecessariamente rude e arrogante. Sinto muito por isso.

- Por que eu sinto que essa desculpa de merda é seguida de um "porém"?

- Benício...

- Desembuche.

- Bem, eu sinto muito por como tudo aconteceu. Mas, não. Eu não acho que estava errada quanto ao fato de que nós não temos mais nada. E aquilo que pensavas ser amor era nada mais que culpa por estar acorrentado em mim pelo resto da vida e desespero por saber que eu tornei-me a tua última chance de viveres um amor que não lhe custasses o respeito por si próprio.

- Alguma hora acreditas mesmo no que dizes?

- O quê?

- Inacreditável. - riu - Culpa? Casar contigo foi uma das piores experiências da minha vida e eu estava tão dopado no dia do nosso casamento que eu pouco me lembro daquele dia. Eu não via a hora de me ver livre de tu, nosso casamento e todo caos que acabou levando a ele. E por um dia eu estava livre de tudo isso. De tudo. Escândalos, fofocas, brigas, segredos... E eu senti tua falta. Não parava de pensar no teu cheiro, no teu sorriso, nas tuas manias e pareceu desesperador pensar que, agora que a tinha para mim, estavas mais longe do que nunca. E eu tentei tê-la de volta. A garota cujo beijo me fez vencer uma corrida, a garota que eu levei para ver a cidade de cima, a garota com quem eu planejei um assassinato e por quem eu matei e morreria sem pensar duas vezes. Eu queria ela de volta. E agora ela está aqui, sentada ao pé da minha cama, dizendo que meus sentimentos não são reais enquanto limpa as minhas feridas que consegui após beber demais perguntando-me se ela existiu mesmo ou foi um delírio meu. Então, fale-me sobre culpa, Doutora, enquanto brincas de enfermeira e pune a si própria às custas do meu sofrimento. Que tipo de senso de obrigação a mantém ao meu lado agora?

Vitória procurou palavras para ao menos reagir ao que acabara de escutar, mas nada era capaz de atravessar sua garganta. Desligou-se do mundo por um momento e encarou o nada, engolindo seco para conter o impacto daquele discurso pelo qual ela não esperava. Benício respirou fundo; parte dele arrependia-se de não ter guardado aquilo tudo para si próprio, outra parte não se importava. Um profundo silêncio com ares de abismo instaurou-se entre os dois.

- Bem, eu já acabei. - Informou Vitória, casualmente, como se nada tivesse acontecido.

- Vitória... - Disse Benício, como se quisesse dar continuidade àquela conversa.

- Caso precises, é só chamar. - Interrompeu Vitória, arrumando seus aparatos médicos. - Estarei em meu escritório.

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