Especial Que Sou

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Suiko se viu ansiosa pela chegada do irmão quando a tarde foi dando lugar à noite. O combinado era que ele relatasse o que acontecesse durante sua aula de desenvolvimento de habilidade naquela tarde, para que ela pudesse ficar a par de qualquer coisa que pudesse alimentar seu mau pressentimento sobre a viagem à Capital. Suiko inclusive resolveu cortar o final da própria aula de manejo de espada longa para chegar em casa mais cedo. Ela não costumava fazer isso, mas não era algo que incomodava o mestre, ele a achava talentosa e a deixava fazer seus próprios horários a curto prazo.

Já em casa, enquanto esperava, resolveu fazer algo que raramente atiçava sua curiosidade: Mexer nos livros da Amabel. Parte da inquietação sobre essa viagem era culpa de Amabel, que constantemente mencionava o fato d'ela querer visitar a estátua de Rafael. Então Suiko dedilhou pelos livros mais novos da irmã, procurando o que ela mencionara ter lido mais recentemente.

– A vida e obra de Rafael Swatzi – falou ela baixinho, quando leu o título na capa.

Puxou o livro da estante, apoiou em uma mão e com a outra folheou em busca de um índice. Os itens eram listados de forma cronológica, Suiko leu um a um cuidadosamente em busca de algo que lhe chamasse a atenção.

Nada.

Ela então foi para o primeiro capítulo. Decidiu tentar ler por alto alguns trechos novamente esperando que algo lhe fizesse saltar os olhos. "Infância" leu Suiko "imagino se eles já contam a história certa" pensou ela.

O que foi contado por muito tempo na Capital era que os pais de Rafael trabalhavam para o Castelo e foram assassinados durante a Revolta Amaturi, que dividiu a já segregada história dos Katuri e Amaturi, e fez com que uma quantidade enorme de Amaturi precisasse fugir da Capital para um lugar onde hoje é o Refúgio.

A história amplamente divulgada no Refúgio foi contada majoritariamente por Rhody Anuan – uma das líderes do movimento que desencadeou a revolta e tia de Rafael – e Jordan Canzed – o fundador oficial do Refúgio.

Essa versão, que possuía uma imensa credibilidade entre os moradores do Refúgio tanto por ser trazida por seu fundador quanto por ser fundamentada pela própria tia de Rafael, contava que o pai de Rafael foi um dos líderes da Revolta Amaturi, que foi assassinado e teve os filhos sequestrados a mando do Rei em exercício. Os meninos, então, foram criados por tutores dentro do Castelo, e cresceram acreditando na história contada por eles.

– Justamente como pensei – falou Suiko, ao ler que o livro contava a versão do Castelo.

"Imagino qual seria o motivo" pensou, enquanto passava os olhos pelo resto do livro "de um livro que parece ser referência para a história de Rafael contar a versão errada. Todas as pessoas que seriam afetadas diretamente pela verdade já não estão entre nós. Talvez eles tenham medo do que o público em geral pode pensar ao saber da verdade sobre a origem de um dos Amaturi mais influentes da história da Capital. "

A medida que lia um parágrafo ou outro do livro Suiko foi nutrindo a ideia de que Rafael não tinha nada demais. Decerto que ele foi o grande oponente do Refúgio durante a Guerra de Raziel, mas ele estava apenas defendendo a história que ele conhecia, e se defendendo do povo que se rebelou contra o reino e que matou seu irmão.

Inclusive era senso comum que a morte do irmão foi o estopim para Rafael ter se tornado um Amaturi tão importante, e esse fato era apenas brevemente mencionado no livro.

– O livro quase não menciona Ramon, – balbuciou Suiko – Ele era a obsessão de Rafael antes e principalmente depois da sua morte. Tomara que Amabel saiba fazer suas pesquisas a respeito dessas histórias.

– Suiko? – era a voz de Lurien vinda da porta, por reflexo a menina fechou o livro e olhou em sua direção – Você já está em casa.

Lurien normalmente era o primeiro a chegar no fim da tarde, depois vinham Amabel e Lia, Michel e por último Suiko.

– Saí mais cedo hoje – respondeu ela – queria fazer algumas coisas e te ver antes da casa ficar cheia.

Lurien se aproximou e assentiu. Suiko continuou:

– E eu achei que você fosse chegar mais cedo também. Como ontem.

– Hoje não deu – disse ele com desanimo e se jogou no tapete da sala, aparentemente bastante cansado – Não me saí tão bem quanto ontem. Aliás, hoje foi um fiasco.

– Como assim? – perguntou Suiko, genuinamente curiosa.

– Minhas habilidades pareciam ter desligado. Eu não consegui fazer nada. Provavelmente fui uma decepção para Lucius.

– Entendo, mas não acho que tenha sido decepção nenhuma.

O comentário fez Lurien levantar o corpo e se aprumar sobre os joelhos para ouvir.

– Nessa idade é normal as habilidades se comportarem de forma imprevisível. É normal haverem aumentos em intensidade e até aparentes desligamentos.

– Lucius me falou algo assim, mas pensei que ele só queria amenizar a situação.

– E queria, mas ele não disse nenhuma mentira. – concluiu ela, ao que Lurien suspirou sonoramente.

– Foi assim com você também? – perguntou ele. De certa forma Suiko já previa aquela pergunta.

– Não – respondeu, pensando cuidadosamente sobre o que iria falar – Comigo foi bem diferente.

– É... – Lurien desviou o olhar e cruzou os dedos.

– Não significa que o que aconteceu com você não seja normal, Lurien! – Suiko já parecia irritada.

– Não é isso... – respondeu ele, e logo continuou sem esperar que a irmã perguntasse, pois se esperasse ele sabia que ela explodiria para cima dele – Só me parece que todo mundo nessa família tem algo especial para mostrar, e eu estou aqui, sendo normal.

– Quê?

– Quem foi o Amaturi mais jovem a entrar no Rank A?

– Nosso pai, e daí?

– Quem foi que convenceu, sozinha, o então líder da secção Amaturi do Castelo a renunciar ao cargo para amenizar o efeito da segregação pós-guerra?

– Foi a Lia, ainda não sei onde você quer chegar.

– Estou querendo dizer que sou de uma família que não é normal ser normal. Amabel tem seis anos de idade e já está desenvolvendo muito bem sua habilidade, além de ser uma estudiosa da Teoria da Energia, eu tiro minhas dúvidas com ela!

Suiko juntou as sobrancelhas e deixou o irmão continuar.

– Com seis anos eu estava aprendendo o básico sobre energia e nem fazia ideia de qual seria minha habilidade. E agora você vem me dizer que "comigo foi bem diferente", o que você quer que eu pense?

Lurien se jogou de volta no tapete, agora ainda mais exausto por conta do desabafo. Suiko analisou a situação. Nunca imaginou que o irmão pudesse se sentir excluído, e nem que esse pudesse vir a ser o motivo.

– Você não vai falar nada? – indagou ele.

A menina deitou no chão ao lado do irmão, ainda pensativa sobre o que deveria falar.

– Você pensa demais sobre essas coisas, Lurien. Tenho certeza que você está sendo enviesado no seu julgamento sobre o que é especial e o que é normal. Michel e Lia viveram numa época que era preciso ter muita desenvoltura a respeito de tudo que os cercavam. Nada do que eles fizeram foi na tentativa de serem especiais, e ainda assim são considerados especiais por você. – ela deu uma pausa pra respirar profundamente – E quanto à Amabel, você e eu... Nós três somos apenas muito diferentes, é injusto nos comparar em qualquer aspecto que seja. 

RecomeçoWhere stories live. Discover now