Oferta de carne

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                 Os sapatos já tinham se transformado em cruéis torturadores àquela altura e os joelhos quase batiam um no outro de fraqueza ou de frio,não saberia dizer.

               Caminhara se embrenhando cada vez mais no bosque, o olhar voltado para os dois picos brancos na distância. Por duas vezes precisara subir em árvores para vê-los e em três ocasiões tivera de despejar pedaços de carne pelo caminho, duas delas para darfs outra para uma bela e negra pantera híbrida, que lhe exibira o ferrão em gancho na pontada sua cauda.

             Estranhamente, Belvereth era a única coisa que parecia-lhe amigável.Principalmente porque se dedicara muito na tentativa de se esquecer de que o lugar estava infestado de darfs. Mesmo assim, nalgumas vezes o pensamento voltava e cutucava-o como uma câimbra, lembrando-o de que estava caminhando para ele, os comedores de carne, fugindo na direção do lugar mais violento do mundo.

              "Para Ictar", corrigiu-se. "Fugindo na direção de Ictar".

              "Se é que ele ainda o queria".Respondeu-lhe a consciência, implacável. E dava medo pensar que talvez não. Talvez Ictar simplesmente o olhasse e não mais reconhecesse nele a sua Borboleta. Afinal, despido de suas sedas e de sua trança vermelha, o que lhe restara? Transformara-se simplesmente num garoto pedinte, os olhos afundados de fome. Ainda haveria neles algum brilho dourado? Os ossos da face, todos à mostra, ferido, violado. Um traidor.

            O que tinha para oferecer a quem quer que fosse? Sequer possuía um sobrenome para dizer. Um nada que era e no entanto, recusara-se a partir quando pôde. Recusara-o quando ele o pediu que o acompanhasse. E se Ictar simplesmente não o quisesse mais? A ideia era assustadora, porém perfeitamente cabível, e a percepção dela doeu-lhe muito.

               Marion tinha dito algo sobre aquilo, contara que o irmão perguntara por ele. Teria alguma verdade nas suas palavras ou o outro inventara tudo somente com a finalidade de machucá-lo um pouco mais?

               Felps estava pensando essas coisas quando olhos de contas brilharam na penumbra dos arbustos baixos outra vez. Sem deixar de encará-los de volta, o rapaz vasculhou o interior da bolsa leve, para sacar o último pedaço de carne.

                 No silêncio da floresta uma moça, pouco mais jovem que ele, ficou de pé e se adiantou dentre dos arbustos. Os pés descalços, os cabelos verdes como lalus, organizados num rabo de cavalo torto.

                Tinha a pele do rosto coberta de sujeiras do bosque e as roupas pareciam improvisadas. Como alguém que, dispondo dos tecidos certos, não soubesse como costurá-los. E assim, suas peles de pantera híbrida tinham sido amarradas de qualquer jeito na cintura e pescoço, imitando um vestido.

 E assim, suas peles de pantera híbrida tinham sido amarradas de qualquer jeito na cintura e pescoço, imitando um vestido

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                Ofereceu-lhe a carne, mas a desconhecida franziu o cenho como que ofendida pelo gesto. E mostrando-lhe o dedo do meio foi embora correndo com sua roupa feia de remendos e os seus sapatos desparelhados e ridículos, vendo-a partir Felps surpreendeu-se pensando no que não daria para possuí-los, aqueles pareciam calçados tão confortáveis!

                Os sons dos passos dela sobre as folhas era leve, mesmo assim foi ouvido por muito tempo, conforme se afastava, num batucar contínuo que parecia mais um trote. Prendeu a respiração para ouvir. Sim, aquilo era um trote. Um cavalo na distância.

              A menina estava acompanhada de alguém? Estaria o cavaleiro de que lado do rio e indo para atrás ou para diante? Ora, os ecos do galope pareciam vir de todos os lados.

              Valia a pena desembocar logo na Estrada Branca? Ou era de lá que vinham os sons? Talvez se tratasse de um viajante. Alguém chegando em Portão Branco. Estava pensando assim quando o grito cortante de mulher fez os pássaros próximos levantarem voo ao mesmo tempo.

            "Siri" Pensou Felps com medo. Mas então se lembrou de que ela ficara muito atrás. A jovem, por outro lado, não devia estar muito longe dali. Pôs se a caminho de novo, dessa vez mais depressa.

             "Não seja Marion, não seja Marion, não seja..."

               Se Marion tivesse encontrado a desconhecida, quanto tempo demoraria atéque ela lhe apontasse a direção onde avistara um rapaz?

            Correndo mais que nunca, Felps estendia as mãos para afastar os galhos baixo se finos, empurrando arbustos, buscando as montanhas quase como se pudesse tocá-las com os dedos.

           Tinha que alcançá-las se quisesse viver. O norte, a reserva de darfs, como aquilo poderia dar certo? E se nunca pudesse chegar? E se Marion...? As pernas tremiam conforme o som do cavalo crescia ao redor. Uma voz de homem gritando uma palavra que ele não pôde ouvir direito por causa dos barulhos do rio.

             Descobriu que quem quer que fosse o cavaleiro, não queria encontrar com ele.

                –Garoto! – A voz se repetiu parecia mais alta do que nunca,solitária no meio do bosque, uma voz musical que fez Felps soluçar de susto– Garoooooto?

              Gong tinha que tê-lo prendido no casebre. Ele o trancaria lá dentro até o anoitecer, era o plano. Será que tinha mudado de ideia? Que coisas terríveis poderiam ter acontecido com ele aquela altura e que coisas aconteceriam a Felps se Marion o alcançasse outra vez...?

                O outro devia estar perto porque a voz tão clara, soando sua melodia acima dos burburinhos comuns da floresta era cada vez mais fácil de entender. "Ga-ro-to".

              Ouvira-ocorrer? Claro que Marion poderia ouvi-lo. Há tempos Felps tinha deixado de evitar pisar nos galhos maiores, por causa da pressa, do medo. Estas coisas o impeliam para frente, adormecendo boa parte das suas dores, os pés, tão ligeiros como se flutuassem, os joelhos, tão rápidos que não se lembrava mais de senti-los tremer. Corria,corria o quanto podia, com o olhar voltado para adiante, o ar faltando, o suor escorrendo da testa.

                O rio. Tinha que ficar perto do rio, mas não sabia se conseguia ouvira água ainda. Então alguma coisa mordeu-o na perna e um gritou quase tão alto quanto o de Marion escapou de sua garganta. O cavalo do outro fazendo o chão estremecer sob os sapatos largos de Siri. Ador no joelho aumentou fazendo-o guinchar mais. Tentou ainda alguns passos, puxando a perna ferida com esforço, mas ela estava ali, ador, subindo depressa até a coxa. Correr. Tinha que correr.

             Mal se içara para frente outra vez quando caiu de bruços, o rosto se chocando violentamente contra um montinho de terra, um formigueiro talvez.

              –Ictar...– Pediu tolamente, se virando para olhar a perna, onde uma flecha curta como um antebraço e fina como um dedo mínimo, atravessara seu joelho. Um cavalo enorme, negro como as sombras do medo, se avolumando sobre ele enquanto seu cavaleiro baixava o arco.

Borboleta (COMPLETO)Where stories live. Discover now