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Enquanto o gato atravessava o asfalto resplandecente, o bueiro, com aquela tampa mal posicionada, rangia com o bater do vento insistente que aquela noite proporcionava.

Quase madrugada, o breu se estabelecia na rua de iluminação singela. O silêncio que as patas molhadas do gato ostentavam, faziam com que ele não estivesse ali. O príncipe invisível perambulava de casa em casa com o passo ligeiro como se já estivesse atrasado logo no começo da madrugada.

Um filete de água que se jogava no buraco negro destampado era um dos pouquíssimos ruídos audíveis naquela hora. O odor de betume molhado se confundia com o leve fedor de esgoto que se desprendia dali. O tampão quebrado de ferro fundido discriminava o nome da cidade: Dois Corações.

Então, na cidade dos Dois Corações, o gato caminhava. Dos vários endereços que passaram desavisados por ele, um chamou a preciosa atenção do felino. Uma fachada pacata e tradicional, com um jardim que cercava o caminho de pedregulhos que levavam até a entrada. Entrada essa enfeitada com o que pareciam ser mexericas gigantes com rostos escabrosos.

É claro que o príncipe invisível não iria pelo caminho mais óbvio. Já que sua intenção de invadir a casa se tornava cada vez mais clara.

Uma janela trincada e semi-aberta no topo do casarão fazia um convite perfeito para o bichano.

Ele entrou.

Aquela janela o levou à um quarto. O gato, calculando cuidadosamente seu próximo movimento, fitava aquele ambiente aconchegante. A porta, semi-aberta assim como a janela, declarava que a luz do corredor estava suavemente acesa.

Na cama, alguém repousava entrelaçado com cobertas tão grossas que faziam o sujeito parecer maior do que realmente era.

Finalmente o felino concluiu o cálculo.

Da janela para a cômoda, da cômoda para o armário, do armário para a cama.

Suas patas, de modo delicado, subiam o dorso afofado pelas cobertas até o rosto serenamente adormecido do garoto.

O focinho desbotado do animal se aproximou do rosto corado. Os olhos do bichano eram diferentes. Duas bolas brilhosas prateadas onde as pulpilas, de tão esguias, quase desapareciam do olhar demoníaco.

Estes olhos observavam o rosto inocente do garoto com uma força ruim. Algo parecido com algum tipo de mal agouro, uma maldição.

Enquanto aquela criatura o encarava, a luz pacífica que emanava do corredor para a porta semi-aberta do quarto começou à oscilar. Entre suas falhas luminosas, ela finalmente cessou. Agora estava tudo mergulhado no mais perfeito breu.

Silêncio.

Mas ele ainda estava lá. O sentimento de que algo estava ali no meio das trevas observando uma possível vítima se tornava inconscientemente forte.

Até que outro par de olhos se abriu. O vento gelado que uivava na fresta da janela banhava a bochecha do garoto meio desperto. Do corredor, uma luz suave afagava seu sono.

Estava tudo do jeito que estava. Tudo normal.

Então, rapidamente, João se pôs à dormir denovo.

Dois CoraçõesOnde histórias criam vida. Descubra agora