Cena VII

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Saímos por onde entramos, pela porta dos fundos, e seguimos nos escorando pela lateral da igreja até alcançar o largo à frente, onde faziam as quermesses. A surpresa nos atingiu em cheio quando encontramos nossas bicicletas totalmente retorcidas, como se por ali houvesse passado um rolo compressor. Creia, isto ainda não era o pior. Ao redor de todo o largo da Matriz, vimos corpos, muitos corpos, uns pendurados em postes, outros largados em cima dos telhados e outros estirados no chão. O padeiro, a mulher do padeiro, os conhecidos que chamávamos simplesmente de vizinhos, nossa professora de artes, todos mortos bem à nossa frente.

— Deve ser só uma ilusão, um pesadelo — quase gritei. — O Freddy pode brincar com a gente usando aquilo que nos causa mais medo.

— Mas tem sangue, eu sinto o cheiro! — Paio berrou. — É real! É real!

— É ilusão, mas vamos correr mesmo assim. Bento, consegue correr? Bento? — berrei.

— Dou p'ro gasto. Vumbora! Vumbora! Precisamos chegar na casa de Paio.

De súbito, Paio estancou os passos e nos observou lívido. Fitou-nos com um olhar sonso de peixe morto.

— Ir até a minha casa? Mas... por quê? O que tem na minha casa? — ele indagou incrédulo, talvez prevendo algo ruim.

— A fita! Vamos lá pra pegar a fita, bocó! Não foi tua ideia destruirmos a fita do filme? - redargui sem paciência. Minhas mãos tremiam.

— Mas...

— Mas o quê? Fala logo! — Apressei.

— A fita do filme não tá em casa. Pedi p'ro Mauro devolver lá na locadora ontem à tarde, logo depois da gente assistir.

— Como é que é? — Fiz escândalo. Jumento! Anta! Esfreguei as mãos pelos cabelos, esticando a pele da testa até onde pude. Ouvi Bento ao meu lado murmurar uma imprecação cabulosa.

— Chega! Estamos perdendo tempo. Merda! Diacho! — Ele impôs a mão sobre a mancha de sangue na camisa e apertou os beiços. — Vamos só endireitar nossa rota e ir pra locadora — disse.

O galo da madrugada cantou três vezes antes de emitir gritos de alerta desesperados. Um frio perpassou por toda nossa espinha dorsal e percebemos o quanto estávamos vulneráveis parados ali, em meio à pracinha cheia de cadáveres. A gargalhada de Freddy Krueger ecoou vinda de algum lugar próximo a nós, alvoroçando copas de árvores distantes. Sua influência era maligna e já controlava os elementos! Bento nos empurrou pelos ombros, incitando que corrêssemos. Mesmo coxeando, o descendente dos muruanases corria rápido, com suas pernas mais longas que as nossas, segurando o lado ferido da barriga. Tinha, de fato, sangue de guerreiro a correr pelas veias.

Atravessamos o largo ouvindo as gargalhadas do demônio ecoarem mais alto e mais fortes. Às vezes, o monstro imitava até mesmo as vozes de nossas mães, só para nos confundir. "Alguém me ajude", diziam as vozes femininas que ecoavam cada vez mais próximas . "Freddy veio te pegar, meu filhinho". Aquele diacho não parava de repetir!

— Vamos lá, boys! Façam minha estadia nesse fim de mundo valer a pena! — O maldito caçoou com sua voz enrouquecida e nos arrepiamos com a capacidade poderosa que ele possuía mesmo estando fora do filme.

— Ah, merda! Corre cacete! Tá colado em nós em já! — Paio acelerou e passou à frente de Bento.

Fiquei para trás dos dois, em último. Que má sorte! Freddy Krueger vinha a poucos metros de distância de mim. Olhei para trás e o vi sorrindo de forma pervertida, suas pernas pareciam se esvanecer no ar de tão rápidas que se moviam. Sua mão passou zunindo sobre o topo de minha cabeça, arrancando alguns fios. Desviei e acelerei os passos. Por pouco, pensei.

Senhor dos Sonhos | WATTYS 2019Onde as histórias ganham vida. Descobre agora