Cena I

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O desejo por esse submundo dos filmes de terror começou em 1986, quando Paio nos trouxe uma revista que seu pai havia comprado na capital. Era uma revista de papel bem vagabundo que estampava alguns lançamentos de filmes e resumos semanais de novelas. Lá tinha um promocional sobre o lançamento do filme A hora do pesadelo nos cinemas brasileiros. "No cinema mais próximo de você", dizia o anúncio em letras garrafais, e ficamos fascinados com a sinopse, chupando dedo porque o cinema mais próximo ficava cerca de quatro horas de distância de Soure, o município onde morávamos. Esse era o mal de morarmos no interior, enfiados dentro de um dos maiores blocos de ilha fluvial do mundo que é a Marajó. Como se já não nos bastasse morar no Brasil, onde os lançamentos de filmes legais levavam uma "década" para chegar.

Bento, Paio e eu tínhamos apenas treze anos de idade, frequentávamos a escola pela manhã e à tarde gastávamos nossas horas ociosas vadiando de bicicleta por ruas de terra batida, margeadas por matas e igarapés de água preta. Dá pra esperar mais um pouco, daqui a alguns anos o filme passa na tevê, pensei sem muitas esperanças, já que até o sinal analógico de televisão era difícil por ali. Mas fazer o quê? Precisávamos vencer a ansiedade e matar o tempo com algumas estripulias. Quando garotos se juntam, há muitas merdas legais que se pode fazer.

E o tempo passou, até que um dia o pai de Paio comprou um Video Home System, o famoso aparelho de VHS, ou simplesmente videocassete, uma novidade tecnológica que sempre víamos estampada em alguns encartes de lojas da capital, vendida a preços absurdos. Poucos em nossa cidade possuíam um — contando Paio, creio que umas cinco pessoas no total — e quem os tinha era invejado secretamente, pois era como ter um cinema dentro da própria casa. Quem não gostaria de ter um? Só um louco diria que não.

— Um videocassete, cara. E tudo o que tem em casa são duas fitas VHS: uma com uma animação chata da Disney, cheia de cantorias e lari laris, e a outra é um romance água com açúcar que minha mãe já assistiu três vezes só essa semana — reclamou Paio certa vez. — Queria um filme de terror pra gente assistir. Mauro vive me chamando de mané por eu nunca ter assistido um.

— E ele já assistiu algum? — Bento perguntou, e seus olhos se arregalaram de tal forma que imaginei que ele pudesse ouvir com os olhos e não com os ouvidos.

Mauro era um terror para Paio, assim como todo irmão mais velho, enquanto que para nós ele era quase uma lenda, um símbolo do sucesso que a virilidade poderia trazer. O cara mal pisava em casa por conta do serviço militar, assistia filmes de terror sem precisar se preocupar com o que a família iria falar, contava os detalhes sangrentos sobre cada um deles para Paio, até que o garoto se mijasse nas calças; mesmo assim, Bento e eu o admirávamos.

— Vários. Ele vive contando sobre um chamado Sexta-feira 13. — Paio deu de ombros. No fundo, ele também queria ser como o irmão mais velho, que era o astro da família. Inclusive, sua família gabava-se por ter dado ao mundo várias gerações de militares. Era por isso que chamávamos Alexandre pelo seu sobrenome, Paio, o qual ele dizia ser seu "nome de guerra". — Que diacho de cidade a nossa que nem locadora tem! Égua, queria tanto assistir um filme desses... Mas minha mãe é muito católica e diz que assistir esses filmes invoca o capeta pra dentro de casa.

— Minha família também é católica — comentei. — Quando a tevê anuncia que vai passar algum filme de terror, sou obrigado a me trancar no quarto e a não sair de lá até o dia seguinte.

— A minha mãe também é muito religiosa, os santinhos vivem com as velas acesas — Bento afirmou. Pareceu-nos que queria falar mais alguma coisa, mas acabou desistindo. Ele era mais sensível, misterioso e meio caladão. O mais alto dentre nós três, de pele morena, e jurava ser descendente dos antigos muruanases.

Quando Bento deu a entender que sua mãe era católica, Paio e eu nos entreolhamos cismados. Minha mãe, e quase todos que eu conhecia, sempre contava sobre a má fama da mãe de Bento. O pai dele havia dado no pé logo após seu nascimento e sua mãe, a fim de sustentar o lar e pôr comida na mesa, se prostituía levando vários homens para dentro de casa. Um escândalo, dizia minha mãe. Ainda lembro quando nós três estávamos na primeira série do ensino fundamental, a cada semana Bento nos apresentava a um pai diferente. Teve uma vez que até o meu pai foi pai de Bento. Mas isso é assunto para outra história.

O fato é que mal sabíamos que éramos felizes assim, dentro daquela nossa bolha de infinita ignorância, longe dos cinemas da vida e sem um puto no bolso para gastar com ingressos ou com a passagem da rabeta. Em questão de meses nossa realidade iria mudar drasticamente, algo que marcaria nossas vidas para sempre. O ano de 1986 foi embora com suas festas chatas de fim de ano e no verão de 1987 uma pequena locadora de fitas VHS finalmente abriu as portas em nosso bairro. Foi uma grande novidade. Já até podíamos sentir A hora do pesadelo chegando até nós.

Senhor dos Sonhos | WATTYS 2019Onde as histórias ganham vida. Descobre agora