O Grande Defeito

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terça-feira, 29 de maio de 2018 -- 22:22


Ver o mundo por uma janela acinzentada sempre me fez questionar as cores reais de uma paisagem. E logo fico deprimido. Já que apenas a dessaturação de um cenário é o bastante para tornar sombria e desesperançosamente infértil a perspectiva de uma pessoa. Ó, sim! Qualquer lugar pode ter tantas camadas e tons como a alma volúvel de alguém que chegou recentemente à vida, pois a mais brilhante luz poderia inteirar o vazio do exato espaço e intrusivas sombras o consumirem. E, dependendo de como a paisagem levanta-se aos seus olhos, de como o solo parece afetar a projeção do seu passo, você pode viver centenas de vezes no mesmo lugar e ainda assim testemunhar, a cada recente vivência, novos lados, um intrínseco ao outro, homogêneos, nascidos do um e multiplicados pela infinitude individualizada do ser.


Confesso: às vezes gosto de me sentir frustrado. Às vezes, gosto de me sentir deprimido, chateado. As pessoas estão o tempo todo fingindo felicidade, enganando a amargura, sorrindo com os temores mais cruéis da incerteza emocional enquanto os seus rostos são esmagados; são pavores oriundos de uma alma enganosamente alegre. Bem, sentimentos são sempre subjetivos. Quero dizer: a forma em que as pessoas interpretam esses sentimentos é particular. Os sentimentos ainda estarão ali, exatamente como foram, inicialmente, concebidos, mas, dependendo de quem você é, você pode se sentir bem estando triste — ou o oposto. Talvez nos sintamos tristes porque a tristeza foi vendida como uma sensação ruim, entretanto, se por meio de dados irrefutáveis, provassem o contrário, que a tristeza é demasiadamente valiosa e deveria ser a condição primária do ser humano, teríamos espasmos de ódio quando estivéssemos felizes. Pense nisso: se a massa, aquela que trata com indiferença as complexidades humanas, fosse historicamente moldada à infelicidade (e foi, apenas não admitimos), seríamos uma sociedade profundamente consciente, pois entende-se muito mais da vida ao sofrer do que sorrir e gozar. Na verdade, as pequenas parcelas do legítimo prazer seriam extraordinariamente mais palpáveis. A nossa senciência, em seus dourados pisques casuais, transcenderia o regozijo humano e nos transmitiria um júbilo minimamente divino. Agora invertam a situação. Troquem todo o prazer que citei em infelicidade. Conseguem agora perceber o motivo no qual aprecio tanto os meus momentos frustrantes? Porque de tanto mentirmos e omitirmos os nossos sentimentos, criamos uma ilusão forte o bastante para simular. E essa felicidade falsificada passa a ter uma nítida influência em nossas vidas. Deste modo, quando entristecemos, quando conhecemos o sentimento puro e primário, aquele que suscitou nossa esfera de emoções, nos sentimos bem, únicos, os eleitos pela existência para prová-la do jeito que fora criada para ser provada.


Eu não sei. Não sei por que reprimimos e escondemos demasiadamente a condição de estarmos, no exato momento que antevemos a lucidez, amargurados com a existência. Pois logo vociferam a tua pessoa que é um paciente da depressão, de que está quebrado nos detalhes internos, e que o sofrimento prolongado é uma característica de enfermidades mentais e não da condição humana. Esse desprezo é indigno. Não deveria ser direcionado à melancolia — mas à felicidade. Se há algo corrosivo o suficiente para destroçar uma vida é a perseguição cíclica da alegria. Um ontológico jogo onde o sentimento perseguido é a criação personalizada do indivíduo. Onde o resultado não importa; é inconclusivo, imaterial e instável. A satisfação dura o quanto você demora para compreender que, seja lá o que estiver sentindo, não é satisfação e nem tristeza, é nada; é somente um preenchimento e a ilusão da barriga cheia, cuja esperança é a de aliviar a dor, que mudará quantas vezes for necessária para continuar criando ilusões de perseguição.


Ah! Mas grite a alguém o quão triste é e de morte será amaldiçoado. A maioria das pessoas, seletivamente cegas, apavoram-se com a dor do outro e fogem, utilizando um de seus instintos primitivos mais básicos, o de fugir — afinal, quanto mais básica é a consciência de uma criatura, mais ela temerá a dor e o dano à sua integridade —, para o refúgio plastificado do prazer e a caverna vergonhosa do conformismo. Lugares ilegítimos da realidade. A passividade emocional não pode ser confundida com covardia. Não! As pessoas não fogem do sofrimento por fraqueza — nós somos especialmente adaptados a suportá-la, na verdade —, elas foram projetadas a evitá-lo. São convencidas de que há muito mais força em se viver num recanto abundante de felicidade e desviar de infortúnios. Condicionadas a achar que a infelicidade é tola e irremediável sinal de fragilidade.


Ninguém é apto a lidar com a tristeza alheia — e haverá, sempre, de tratá-la ou com desrespeito, ou indiferença ou incômodo. Tristezas alheias são desinteressantes e pouco acrescentam para o nosso egocentrismo existencial; são, na verdade, dramáticas. Pois a melancolia é emocional, e aos olhos frios e lógicos de alguém que não a sente; de alguém que a recebe gratuitamente e não tem correspondimento emotivo; e sob uma perspectiva racional, nada soa profundo, espirituoso ou empático. Pelo contrário, adicionará melosidade supérflua, dramaticidade exacerbada, soará como uma carta de suicídio — o ápice do sofrimento humano, mas impossível de encaixar um motivo crível capaz de explanar em absoluto as causas sem cair em relativismos, visto que a aniquilação própria jamais poderá ser quantificada racionalmente. Ninguém sente dor com a razão.


Não é à toa que para se ter um defeito, basta confessar a sua inclinação à solidão. E tudo que remete ao pensamento e à reflexão, quando submetido à correção melancólica, é excessivamente deprimente e desesperançoso — é niilista, é pessimista; mas não poderia ser realista, nem de relevância cultural. Apenas porque a alegria é a pátria da nossa sociedade. A quimera da perfeição. A falácia de que o ser humano é muito mais absoluto se for resplandecentemente disposto ao agradável e ao iluminado, se a autoestima for elevada, o amor próprio exagerado, e as suas características transcenderem os defeitos e os tornassem somente em qualidades. E por que a tristeza precisa ser o defeito e a alegria a qualidade?


Não há amor no mundo para mim. Porque nasci do avesso. Todas as minhas qualidades são os meus defeitos, e não estou disposto a mudar.

As Piadas de BazilioOnde as histórias ganham vida. Descobre agora