Capítulo 6

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- Onde você estava?

Minha mãe me olhava furiosa. Paula estava ao seu lado, de braços cruzados e bem autoritária. Eu já suspeitava das suas reais intenções dede o momento em que voltei a ligar o celular e vi trinta e oito ligações dela e trinta e sete da minha mãe. Estava sentado na cadeira, estalando os dedos por debaixo da mesa, pronto para pensar em qual resposta apropriada que eu deveria dar as duas.

- Seu professor ligou para mim inúmeras vezes, querendo saber onde você estava, se tinha voltado para casa ou não. Você tem noção da sua tamanha inconsequência?

Mantive-me calado.

- Se não fosse a Paula para me ligar e dizer o que você fez... Para onde você foi? Onde você estava? Com quem estava?

- E-Eu... – gaguejei, olhando para os olhos arregalados da Paula.

- Ele me confessou que você precisava refletir um pouco, mas que acabou cometendo essa loucura, ou melhor, surto de fugir.

Eu não estava acreditando que a Paula estava livrando a minha cara depois de ter fugido e desligado o celular para não atender as suas ligações. Claro que eu surtei muito mais do que ela com a sua atitude. Nunca imaginei que a tão certinha Paula mentiria por minha causa. Entretanto, a sua "força" não me livrou de escutar os bons esporros da minha mãe até o momento em que ela viu que já eram quase sete da noite e que a Paula precisaria ir embora. Só assim eu pude ter um pouco de descanso, já que os meus ouvidos doíam demais.

Aprumei-me todo quando a Paula já me esperava na porta de saída ao lado da minha mãe.

- Quando você deixar a Paula em casa, venha direto pra casa – ordenou minha mãe com as sobrancelhas arqueadas. Mas não tão furiosa como antes. – Precisamos ver qual desculpa dar ao seu professor e ao diretor Ribeiro amanhã. Eu não sei o que fazer com você, Murilo.

Saí com pressa, agarrando o braço da Paula com força, em direção a rua. Atravessamos o portão e larguei-a do lado, quando já estávamos bem longe dos olhares vigilantes da minha mãe.

- Por quê? – perguntei, virando-me para encará-la.

- Porque eu ainda tenho fé que esse demônio chamado Fernanda não tardará em sair da escola e das nossas vidas. Ela nunca deveria ter entrado em nosso caminho porque ela não é do tipo de gente com quem devemos nos misturar.

- O que você está dizendo?

- Foi ela quem encheu sua cabeça, né? Você não vê que ela está te fazendo mal? Que ela é um ser perverso, de gostos estranhos e antinaturais?

Balancei a cabeça e voltei a andar. Eu quis que a casa da Paula fosse em frente a minha para que eu não tivesse de suportá-la por mais um segundo, mas ela morava a três quadras de mim.

- Você é má, Paula. Os gostos dela não me dizem respeito. Eu vejo muito além do que gente como você vê.

- Vou fingir que não ouvi isso – ela agarrou meu ombro direito e me puxou para que eu parasse de andar tão depressa. – Eu quero que se afaste dela. Foi por isso que eu não disse nada para a sua mãe. Você acha que ela gostará de saber que o seu filho mantém amizade com uma... uma...

- Lésbica? – gritei, confuso e ao mesmo tempo com raiva.

Olhei para as árvores nas calçadas para não olhar para a Paula. A olhei dos pés a cabeça: como eu pude me enganar?

- Poupe-me com esse seu comentário ridículo. Essa garota vai acabar destruindo você...

- Cala a boca, Paula. Porra! – mordi os dentes com raiva. Não me importei se havia alguém por perto capaz de ouvir alguma coisa que eu disse. Nem mesmo os vizinhos.

- O que você tem? Qual é o seu problema?

- VOCÊ! – rosnei, gesticulando com as mãos, parado de frente para ela. – Eu acho que já ouvi o suficiente da minha mãe. Não preciso ouvir coisas desnecessárias de você.

- Você nunca reagiu assim comigo! – vi que seus olhos se encheram de lágrimas. – O que aconteceu com você?

- Sempre tem a primeira vez – fui duro com ela e me mantive assim até aguardar alguma reação favorável, mas eu sabia que não iria sair mais alguma coisa boa da sua boca, a não ser sobre quanto a Fernanda é isso e aquilo.

Paula limpou o rosto. Não me comovi com a sua ceninha teatral.

- Você mudou...

- Posso voltar para casa? – na penúltima esquina parei. Avistei sua casa ao longe e dei-lhe um beijo na bochecha.

Voltei para casa sem esperar por alguma outra retaliação da sua parte. Só pude ver de rabo de olho, que ela ficou incrédula de não tê-la levado até a porta da sua casa. A Paula só me ajudou porque ainda tem alguma esperança de que eu me afaste da Fernanda. E se eu não me afastar, ela usaria tudo o que aconteceu hoje como uma vingancinha futura. Bom, eu nunca cheguei a provar do seu veneno porque nunca foi preciso, mas pelo muito que a conheço, dá pra ver que em seus olhos direcionados para mim, minariam algum tipo de vingança.

Quando cheguei em casa, minha mãe voltou a me encher com a sua indignação, mas agora ela tinha reforço: meu pai. O negócio é que a minha mãe é só de falar, e às vezes esgoelar, já com meu pai o buraco é mais embaixo. O respeito que tínhamos por ele chegava a dar calafrios toda vez que a sua reação fosse negativa caso meu irmão e eu fizéssemos algo de que ele não gostasse. O bom da verdade é que só a sua presença me deixava arrepiado. Sua altura, seu bigode bem aparado, emoldurado em seu rosto coberto de linhas de expressão o deixavam com ar autoritário e meio distante em alguns momentos. Não porque seja velho, pelo contrário, ele tinha quarenta e dois anos, três anos a mais que a minha mãe, mas sim, porque ele tinha que ser um tanto pai, um tanto ranzinza, um tanto tudo.

Tive que ouvi-los por um período duradouro, que chegou a prolongar, arrastando-se até o horário do jantar, quando, após termos orado para agradecer ao Senhor pela comida, a minha mãe quis saber o que estava havendo entre mim e a Paula. Tentei mudar o rumo da conversa para alguma coisa que eu já queria falar desde que cheguei do encontro com a Fernanda.

- Pai. – comecei. – Mãe?

Ambos prestaram atenção em mim instantaneamente, já que o meu tom de voz tornou-se lúgubre repentinamente. Olhei para o meu prato, temendo as suas reações antes de conta-lhes o que eu pretendia.

- Eu posso ir pra Petrópolis com alguns amigos da escola nas férias?

Meu pai respirou fundo, minha mãe largou o garfo no prato.

- Você irá com a Paula?

- Não sei se a Paula quer ir! – cortei meu pai. Ele não gostou muito.

- Se você não vai com a Paula, que obviamente os pais dela não a deixarão ir sozinha porque é menor de idade, você acha que deixaremos você ir? – disse mamãe. O telefone tocou da sala, mas minha mãe não cogitou em nenhum momento levantar-se para atender.

- Ué, eu vou com meus colegas. Vamos ficar na casa de um deles. Vocês sempre me dizem que devo sair da minha zona de conforto...

- Sair da zona de conforto para ser mais participante na igreja, já que a cada dia que passa vejo você mais distante e menos participativo – disse minha mãe segurando o garfo com força. – A apresentação será no dia vinte e sete de junho e você sequer sabe a letra direito. Quer me envergonhar ainda mais?

- Eu quero conhecer Petrópolis!

- Sozinho você não vai! Até parece que vou deixar você ir sozinho para um lugar longe desses, e ainda por cima sendo menor de idade.

Que parte de que eu não irei sozinho a minha mãe não entendeu?

Meu pai elevou a mão direita. Minha mãe, em tom de submissão, se calou.

- Precisamos entender que ele precisa explorar novos horizontes...

- Eu tenho algumas economias, posso arcar sozinho com os custos da viagem... Não precisam se preocupar.

- Mas a viagem com o grupo de jovens que fizemos para Resende não foi o suficiente?

Revirei, disfarçadamente, os olhos para o lado. Agora meu pai, com muita calma, olhou para a minha mãe. Ela ajeitou a toalha no seu colo e eu voltei a comer, rindo por dentro de pura satisfação. 

(IN)ALCANÇÁVELWhere stories live. Discover now