Capítulo 2

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Já era maio quando recebi meu boletim com as notas do primeiro bimestre. Senti-me feliz por haver conquistado bons resultados em praticamente todas as matérias, exceto em Educação Física, onde fiquei abaixo da média. A verdade deve ser dita, mas eu sempre a escondia de todos, inventando, desde a quarta série, lesões em alguma parte do corpo que me impossibilitariam de jogar qualquer modalidade que tivesse mais meninos do que meninas. Mas isso é um segredo que eu sempre carreguei comigo. Muitos estranhavam porque eu não andava com tantos garotos ou porque eu não fazia educação física, mas nunca disseram nada desconfortável sobre a minha masculinidade, já que eu namorava uma garota e tinha uma reputação a zelar. Isso ajuda muito para que a gozação de alguns escrotinhos não vá para frente.

Prestava atenção na professora Margareth, de geometria, quando ela parou abruptamente as explicações ao ver alguém na porta. Era uma menina de pele alva, com o rosto coberto com a uma maquiagem pesada e gótica. A garota fugia de qualquer padrão de beleza que existia na escola, seus cabelos eram arroxeados cortados à maquina na lateral esquerda, em ambas orelhas haviam dois grandes alargadores, eu não sei os outros, mas seu jeito masculino, me intrigou um pouco. Ao contrário de todos na classe, ela parecia bem calma ao direcionar um olhar decidido à professora. Então andou até a carteira ao meu lado direito e se sentou, jogando sua mochila cheia de bottons para frente do corpo. A olhei de rabo de olho e percebi que ela deu um risinho meia boca mostrando um grande piercing smile. Seus lábios eram cobertos por batom preto, assim como as suas roupas fúnebres. Paula, do meu lado esquerdo, me cutucou para eu cair na real. Mas eu não lhe dei muita bola, o que provocou certa reação desnecessária da sua parte.

- Pare de olhá-la, Murilo! – sussurrou bem baixinho. Senti seu hálito quente no pé da minha orelha.

- Acho melhor você escutar a sua namoradinha – soltou a novata, querendo provocar a Paula. Suas palavras soaram quase a uma ordem. Fiquei sem reação e fingi estar escrevendo alguma coisa.

Paula balançou a cabeça negativamente, como se quisesse dizer alguma coisa, mas estivesse impedida por alguma força maior. A professora voltou a falar após parar de escrever alguns gráficos no quadro negro.

- Você viu que garota estranha? –Paula tinha a boca tão venenosa quanto suas ações. Saímos para o recreio em direção ao pátio juntos, como de costume.

- Só porque ela se veste diferente de todos nós? Ela está mais do que certa!

Paula puxou o meu braço.

- Claro que não está! As roupas são a consequência do que a levaram ser assim...

- E o que ela é? – fiz-me de desentendido.

- Lésbica, é óbvio!

Continuei a andar, balançando a cabeça. Notei que certos alunos da escola olhavam a novata com muita atenção quando ela foi até a cantina comprar alguma coisa.

- O fato de ela ser lésbica não interfere no seu caráter – me sentei numa mureta. Paula fez o mesmo.

- Mas isso é errado, Murilo – vociferou Paula, querendo parar com o assunto imediatamente. – Não sei como esta escola, que se diz "tradicional" aceitou esse tipo de gente.

Levantei-me num salto, incrédulo com o que acabei de ouvir.

- Que foi?

Saí de perto dela sem dizer uma só palavra e passei pela novata sentada na mureta que dividia o jardim do pátio apoiando as suas costas num pilar. Estava com abafadores nas orelhas e comia alguma coisa que não pude distinguir o que era. Ela me encarou antes de eu virar o corredor. Enchi-me de vergonha e andei mais rápido, até desaparecer das suas vistas. Passei por alguns conhecidos até que encontrei um lugar vazio em que eu pudesse por meus pensamentos em ordem, a fim de clarear a minha mente. Como eu poderia estar com alguém tão mesquinha e preconceituosa como a Paula? Por mais que eu ainda sinta algo por ela, não consigo enxergar uma única qualidade que pudesse me fazer esquecer o que eu pensava sobre ela. Só vejo preconceito e rancor entranhados no coração de uma menina de apenas dezesseis anos. Ela era o reflexo daqueles que levam a religiosidade ao extremo.

Conforme a semana se arrastava rapidamente, eu não imaginava que alguém como a Fernanda me atrairia tanta atenção. Claro que não era a atenção que um garoto tem pela garota com a qual tem segundas intenções, mas porque o seu jeito espontâneo me agradava cada vez mais, embora poucos conversassem com ela e, quando o faziam, era somente o necessário. Muitos não queriam se misturar com alguém como ela, porque tinham certo preconceito por ela ser lésbica. Só que eu conseguia vê-la além do que os outros viam. Ela é diferente de tudo o que a sociedade quer que sejamos. Tentei criar coragem para ao menos dizer um "oi", mas a Paula vivia grudada em mim como um sanguessuga. Não sei qual seria a sua reação se me visse falar com a Fernanda algum dia. Claro que não seria nada positivo. Mas nós não temos que amar o próximo como a nós mesmos? Por que devemos nos sentir tão acima dos demais só porque somos de uma igreja?

- Você fica me rondando como um cão sem dono o tempo todo – ela me olhou por sobre o livro que lia. Fiquei nervoso, analisando-a ao passar por ela. Era um exemplar de Harry Potter e o Enigma do Príncipe bem surrado. – Você sabia que eu posso prestar queixa ao diretor por assédio?

Tomei um susto ao escutar suas palavras.

- Eu tô brincando, Murilo. Esse é o seu nome, não é mesmo?

- Sim. – respondi, gaguejando. Ela retirou seus pés da mureta dando lugar para que eu me sentasse.

Olhei para os lados antes de me sentar.

- Eu só quero pedir desculpas por alguns colegas te tratarem com certa indiferença.

- O diferente incomoda, Murilo. Relaxa, eu já estou tão acostumada a certos tipos de piadinhas de alguns babacas sem noção que já criei anticorpos contra qualquer tipo de ofensa – Fernanda dobrou o livro que lia e o depositou no colo. – Você deveria experimentar também!

- Eu não sei nem porque estou fazendo isso.

- Aquela sua namorada não vai gostar nem um pouco de te ver aqui comigo – cortou-me antes que eu terminasse a minha frase. – Deu para ver que ela não deixa você respirar direito.

- Você tem razão – ameacei me levantar quando, de repente, senti sua mão quente segurar o meu braço.

- Você não precisa ser o que você não é, só para agradar os outros – seus olhos azuis, profundos, entre a pesada maquiagem preta me fitaram sem parar.

Fiquei na ponta da mureta, olhando para os quatro cantos para ver se eu encontrava a Paula.

- Do que é que você está falando?

- ESQUECE! – exclamou, reabrindo o seu livro, mas sem antes deixar a sua autoafirmação no ar. Senti que o meu rosto encheu-se de espasmos antes de partir para a cantina, empertigado com a direta da novata, que mais parecia a algum tipo de afirmação sobre quem eu sou verdadeiramente.

Fiquei tão nervoso e sem reação que não tive argumentos para debater contra a Fernanda. Eu não fazia ideia do que ela pretendia ao dizer aquilo, embora dentro de mim dissesse o contrário, eu sabia que havia algo estranho comigo que começou a aflorar desde o dia em que essa tal garota entrou na escola. Eu não queria mais pensar na conversa que tive com ela, só queria pedir ao Pai para que tirasse qualquer pensamento impuro que começasse a rondar a minha mente. Vaguei, sem rumo, por toda a escola, até achar um bom lugar em que eu pudesse por em ordem os meus pensamentos sem que alguém chegasse para me atrapalhar. Eu não queria ser grosseiro com ninguém se tivesse que abrir a boca para dizer o que estava acontecendo comigo.

Paula não havia descido para o recreio. O que eu logo estranhei, já que ela nunca perdia uma oportunidade de descer para me pegar desprevenido quando eu tinha a oportunidade de falar com alguém que não fosse de seu agrado.

(IN)ALCANÇÁVELWhere stories live. Discover now