Capítulo 1

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O vento fazia soprar tapetes de nuvens escuras por todo o céu do Rio de Janeiro e o tempo frio que vinha com ele anunciava a aproximação de algo mais importante que a preocupação com o mal tempo a caminho. Eu me chamo Murilo Abreu, tenho dezesseis anos, preocupado sempre em agradar e satisfazer as vontades, ou melhor, os caprichos. Esquecendo-me, por essas e outras razões, de quem eu verdadeiramente sou ao perder pouco a pouco a minha própria identidade. Desde pequeno, frequento a igreja, uma vez que o meu pai é o pastor e a minha mãe uma fiel devota – devota não, eu diria fanática. Tenho também um irmão, dois anos mais velho, chamado Benjamin, mas este estuda medicina na UFMG, em outro estado, bem longe da superproteção da mamãe. Claro que há uma aparente e escancarada demonstração de afeto e preocupação dada pela Sra. Vilma ao Benjamin. O que deixa bem clara a distinção do amor que ela dedica ao seu filho predileto. Contudo orgulha-se, perante as suas poucas e muito bem selecionadas amigas, de ter uma família muito bem estruturada.

Vivo, desde sempre, no Jardim Botânico, não que isso signifique que somos ricos, mas porque meu pai herdou a casa dos meus falecidos avós. É claro que o salário que meu pai ganha como pastor não garantiria uma renda consideravelmente satisfatória para nos darmos ao luxo de viver num bairro de classe média alta. O que ele fazia fora dos seus compromissos na igreja fazia com que a comunidade o olhasse com certo respeito, fazendo crescer a sua influencia entre todos os fiéis. Já minha mãe, participa ativamente de cada pormenor que acontece na igreja e é responsável também pelo coral, na qual ela insistia que eu ainda fizesse parte, por mais que eu não tenha nenhum dom para o canto. Mas eu ficava na fileira da frente dos demais coristas, ao lado da minha namorada, Paula, com quem um dia meus pais sonham em ver-me casado. Não é preciso explicar mais nada, levando em consideração que minha família, faz, de fato, parte da mais bela e tradicional família brasileira. Uma ova! Permitam-me ressaltar que, embora eu frequente a igreja, tenho alguns surtos psicóticos de vez em quando e acabo xingando as escondidas como qualquer ser humano... Sentindo raiva ou frustração quando percebo que me querem controlar.

A Paula era a única filha do Sr. Raimundo Nonato e da sua esposa, Eleonor, com quem meus pais mantinham uma amizade de longa data. E por mais que nossos pais desejassem ver-nos casados um dia, eu sei, dentro de mim, que não tenho que prolongar essa farsa por muito tempo, já que há tempos eu não sinto o mesmo amor que uma vez senti por ela. Paula se tornou tão possessiva e controladora quanto a minha mãe – e eu não precisava de mais uma. Se eu desse um passo em falso em casa, a minha mãe estaria lá para me vigiar, agora se eu fizesse algo de errado na escola, lá estaria a Paula me observando com aqueles olhos super vigilantes. Não posso nem sair com alguns colegas para uma ida ao shopping que minha namorada já reage de maneira negativa ao afirmar que eu deveria fazer igual a ela em não ter amizades com certos colegas de classe, me fazendo acreditar que eles eram más influências para qualquer jovem que segue ao Senhor. Mas se eu não fizesse nada de mal a não ser me divertir como qualquer jovem da minha idade se diverte, porque eu deveria me preocupar com alguma punição divina? Paula seguia a mesma linha fanática da minha mãe, talvez por isso ambas se davam tão bem que pareciam mãe e filha.

- Murilo, você deve se assegurar de que nunca deve cair em tentação. Afinal, o que eles fazem não é nada bom visto através dos olhos de pessoas como nós – Paula me disse quando fomos para o recreio. – São más companhias.

- Não pretendo cair em tentação alguma. Para de ser tão paranóica – a abracei, descendo as escadas logo atrás dela. Dei-lhe um beijo e segurei sua mão. – Eu não vou deixar de falar com essas poucas pessoas que falam comigo só porque a minha mãe não quer.

- Eu, assim como a sua mãe, só quero o seu bem! – resmungou, revirando os olhos de tédio. – É apenas uma preocupação que temos por você. Ah, você é tão bobo e inocente.

Parei e olhei os seus olhos. O que ela sabia sobre isso?

- Eu sei me cuidar muito bem, Paula... Já sou grandinho o suficiente.

- Por que você não me chama mais de amor? – ela quis saber. Sua voz engrossou e eu estranhei a sua atitude.

- E-E, me perdoe – gaguejei, sem saber o que dizer. Ajeitei o cabelo e franzi a testa com leveza. – Eu ando no mundo da lua por causa do vestibular.

A máscara que eu pretendia continuar mostrando, agora, caía aos poucos. Sei lá, mas eu conheço a Paula desde criança e tal. E só começamos a namorar há um ano e meio por causa da pressão dos nossos pais. Eu não posso deixar de me sentir aliviado por não ter dito que a amava, mas não também posso ressaltar o quanto ela diz ser apaixonada por mim. O que eu não consigo mais é manter, ou até mesmo forçar, uma coisa que da minha parte não existe mais. Tenho certeza de que se eu começar a me esquivar dela, ela sofrerá muito, contudo não vou viver a minha vida em função dos demais, e eu sabia que em algum momento eu teria que dar um basta! Afim de começar a fazer o que o meu coração manda e não, o que a minha mãe... ou meu pai... ou qualquer um quer. Aprendi tanto sobre livre-arbítrio que chega a me dar náuseas, já que eu nunca soube o que isso, de fato, significa.

A Paula é muito bonita, embora fosse uma versão mais jovem da minha mãe. Ambas usavam saias abaixo dos joelhos, blusas sem decotes e cabelos longos e volumosos. Ver aquilo era o mesmo que ter pesadelos rotineiros. Como alguém poderia se deixar influenciar tanto quanto a Paula? Bom, eu estaria sendo um tanto hipócrita se lhes dissesse, neste exato momento, que não há ninguém ditando minha maneira de ser. O que me torna, também, influenciável. Era horrível pensar dia após dia, quando você descansa a cabeça no travesseiro, tendo a certeza que você não passa de uma marionete. Penso que certo mesmo é o meu irmão, que foi estudar bem longe só pra não ter que conviver com os meus pais. Ele é do tipo rebelde, mas é claro que faz a linha "anjinho" todas as vezes que vem nos visitar, contudo, eu sou o único a saber quem ele realmente é. Não que ele seja uma má pessoa, pelo contrário, ele é um cara com um coração incrível, mas o fraco dele eram três coisas: cigarro, bebida e mulher. Não que um dos três quesitos fosse exatamente mal, cada um com seu cada um, mas era inafiançável pensar que cigarro e bebida estariam sendo consumidos por aquele que sempre teve tudo de mão beijada. É sempre assim, né? Em toda família sempre há um que é da pá virada.

Benjamin é extremamente bonito, mais bonito do que eu. Mas eu não vou me inferiorizar tanto assim e admitir alguma feiura. Ele é daqueles garotos que realmente se sente em uma família diferente e, com certeza, nós partilhávamos esse sentimento.

Entretanto, nós conseguimos ser muito diferentes no modo de nos vestir, agir e falar. Ele era descolado, enquanto eu era formal demais. Era horrível pensar no quanto eu deixo de ser quem eu sou porque devo agradar os outros. Não posso sair sozinho sequer um momento que logo recebo uma enxurrada de ligações da minha mãe perguntando onde eu me enfiei. Me sinto engaiolado desde criança e agora que tenho oportunidades de fugir de tal gaiola, sinto que minhas asas estão fracas para alçar voo novamente. Se eu faço alguma coisa diferente, sou repreendido, se tento mudar o que não me agrada, minha mãe me diz que eu não preciso mudar só porque o resto do mundo está mudando.

(IN)ALCANÇÁVELWhere stories live. Discover now